Eu morava na França e, como exigência final da pós-graduação em Direito Internacional, concluía o mémoire (equivalente à dissertação de mestrado). Era junho, início de verão, e todos os colegas de casa de estudante ― o Foyer International des Etudiants, em Dijon ― arrumavam as malas. Alguns para as férias, outros, como meu namorado americano na época, de volta a seus países de origem. Como francófila assumida desde a infância, era fluente em francês. Mas quase enlouqueci para escrever aquelas cem páginas, sobre um assunto novo (um tratado sobre a venda internacional de mercadorias), com pouca bibliografia, antes do advento da internet e do Google, em uma máquina de escrever manual emprestada.
Foi nessa época de partidas e de pouco dinheiro que fiquei sabendo que García Márquez mantinha o hábito de ter uma flor amarela em cima da mesa em que escrevia. Apesar da minguada bolsa de estudos, esforcei-me na compra de um vasinho com flores daquela cor para tê-lo sobre minha escrivaninha. Não diminuiu minha ansiedade; porém, não sei se por causa delas, passei a acordar de madrugada com mil e uma ideias e o desejo incontrolável de escrever. Tinha impressão de psicografar, tão rápido era o pensamento e a escrita. Mais ou menos como os mágicos cadernos portugueses descritos por Paul Auster em Noite do oráculo. Os textos, em um misto de línguas, longe de serem jurídicos, eram poéticos, com até mesmo algumas reflexões profundas e metáforas originais.
Três meses depois, deixei Dijon, carregando um sonoro título universitário e um diário repleto de trechos oníricos, ao qual às vezes ainda recorro.
Por uma questão de sobrevivência, mas também movida por uma espécie de desafio, experimentei a escrita em diferentes registros: como advogada, professora universitária e, de uns anos para cá, como escritora. Mundos à parte, embora com intersecções frequentes: como todos lembram, em literatura, o movimento romântico brasileiro, por exemplo, cresceu à sombra da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Nela, quando aluna, fui membro da academia de letras. Fiz jus à cadeira de número 13 ― cujo patrono era Álvares "Se eu morresse amanhã" Azevedo ― depois de apresentar um ensaio sobre o simbolismo europeu e suas influências na poesia brasileira. Trabalho escrito durante as noites de uma semana (trabalhava durante o dia e li o edital próximo à data final). Quando tenho que cumprir um prazo, recordo-me dessa façanha e, principalmente, do exemplo deixado por Balzac, capaz de escrever maravilhas com os credores batendo na sua porta.
O tempo foi passando e não deixei de cultivar o ato de escrever nesses mundos paralelos. Tomei por inspiração o filósofo Gaston Bachelard (1884-1962) que, voltado para a filosofia da ciência (A formação do espírito científico), foi autor, também, de textos de um lirismo infinito (A água e os sonhos, A terra e os devaneios da vontade, entre outros). Ele dava conta de tudo desdobrando seu pensamento em diurno e noturno. Assim, fui autora de uma tese de doutorado, de artigos publicados em revistas jurídicas e de capítulos em obras conjuntas. Nesse campo, arrisco: o difícil é começar; depois, não desistir. Entretanto, nas diferentes oportunidades em que me sentei para escrever cada um desses trabalhos, visualizei uma cena descrita por Erica Jong, em Fanny: Being the true history of the adventures of Fanny Hackabout-Jones. Estrondoso hit dos anos setenta, autora do libelo pró-liberação sexual intitulado Medo de voar, a senhora Jong coloca sua heroína, no século XVIII (uma espécie Casanova de saias), a redigir suas memórias. Essa o faz apoiada em uma elegante papeleira de época, em uma ensolarada casa na Nova Inglaterra. Dos janelões abertos, descortina-se a vista de um imenso gramado. Sem fim, como minhas fantasias. Sim, porque contrastando com esses devaneios, cheguei a escrever tais trabalhos às vezes escondida, como uma ladra, em instantes furtados do trabalho ou da família, ou espremida nas mesas de uso comum das bibliotecas dos departamentos da faculdade em que estudei.
O prazer real em escrever veio com maturidade, quando tomei a decisão de concluir um romance para concorrer ao Prêmio SESC Literatura. Desde a infância desejei ser escritora. Só que me envergonhava disso. Era muita pretensão e, na qualidade de leitora compulsiva, preferia ler. Tudo mudou em julho de 2004, quando soube daquele prêmio. Entre esboços literários inconclusos, escolhi aquele que considerava o menos difícil de tocar: As netas da Ema. O enredo gravitava em torno de um grupo de mulheres baby boomers que alcançaram os fifties (eufemismo menos doloroso para os cinquenta anos). Na sequência, planejei de forma matemática quanto tempo livre eu disporia e comecei. Planejamento de executivo, com metas a cumprir. Assim, descobri ser mais produtivo acordar de madrugada e trabalhar quando tudo dormia. Foram tempos cansativos, mas felizes.
O prazer da escrita era físico. Eu, que sempre achei Hemingway um exagerado, ao afirmar, em Paris é uma festa, que, depois de escrever suas páginas diárias, a sensação que o invadia era parecida com a satisfação do depois do amor... Com ou sem exagero, fiz minha inscrição no último dia do prazo. O resultado ainda não havia sido publicado e eu já tinha o mote para o segundo livro.
Dante, no "Purgatório", descreveu a imaginação como um lugar em que chove: poi piovve dentro a l´alta fantasia. Como um raio, a ideia para esse segundo livro despencou sobre mim. Sendo um romance histórico, exigiu até o presente muita pesquisa e algumas viagens. Escrevê-lo, embora em algumas passagens tenha sido exasperante (a busca do equilíbrio entre ficção e histórico, entre informação e excesso), no cômputo geral está sendo prazeroso.
Como gostaria de ser lembrada enquanto o segundo livro não vem, passei a escrever textos curtos, aventurando-me nos contos. Durante três meses, em 2006, fui semanalmente à Curitiba para assistir às oficinas de criação literária organizadas pelo José Castello. Como Verdi faz cantar Violeta Valéry, na ópera La Traviata: "croce e delizia, delizia e croce". Cruz e delícia. Cansativo, afinal, toda semana seis horas de ônibus para ir, outras tantas para voltar. Mas um deslumbramento, por ser Castello a pessoa generosa e sensível que é. Dois anos depois, em 2008, estreei como contista no jornal Rascunho. Depois desse, outros contos se seguiram.
Por um lado, já sonhei com a abertura de meu terceiro romance. Por outro, tive que pesquisar para escrever alguns de meus contos. De volta à comparação amorosa, são como casos de amor no decorrer de uma vida. Todos, sentimentos; cada qual do seu jeito. Há dias em que escrevo direto no computador, outros, à mão. Às vezes usando lápis e borracha, buscando uma primeira versão organizada. Outras vezes, à caneta, riscando e sujando o rascunho até recear não entender o que está no papel. Já escrevi dentro do carro, esperando filha na saída da escola; escrevi triste e magoada; alegre e esperançosa; comemorando meu aniversário e tomando champagne. E, embora tenha lido que Nélida Piñon se arruma como se fosse sair, todas as manhãs, antes de escrever, passei vários fins de semana de pijama, escrevendo sem parar. Talvez por isso arrisque nunca presidir uma academia.
Nota do Editor
Eugenia Zerbini venceu o Prêmio SESC Literatura 2004 na categoria romance, com o livro As netas da Ema. Tem contos publicados no jornal Rascunho, revista Cult e no blog do caderno "Prosa e Verso" de O Globo.
Sou um pouco assim, escrevo mais à mão do que no computador. À lápis ou caneta. Em qualquer lugar. Como não tenho prazos a cumprir, apenas as metas que eu mesma me dou, não preciso de regras e disciplinas. Não importa o lugar ou o "como", importa a sensação do que foi escrito (e revisado). Essa sensação é um prazer único. Adorei "As netas da Ema". Quando sai o segundo romance? Vou buscar seus contos no Rascunho... Bjs