ENSAIOS
Segunda-feira,
2/12/2002
Cordiais infâmias de Satie
Luís Antônio Giron
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Erik Satie tinha 64 anos quando, às 20
horas de 1º de julho de 1925, morreu durante o sono, de cirrose hepática,
em seu quarto no segundo andar da casa "das Quatro Chaminés", situada em
Arcueil-Cachan, subúrbio da região sul de Paris. Nos últimos 27 anos de
sua vida, o músico havia morado naquele endereço. E, apesar de ser
paparicado, mesmo à morte, por gente famosa — Picasso lhe mandava lençóis
novos, Brancusi lhe preparava sopas —, não consentiu a entrada de uma
única alma em seus aposentos. Nem seu irmão mais novo, Conrad, com quem
se correspondia obsessivamente. Este se viu forçado a profanar o ambiente
para recolher os objetos pessoais do morto. Acompanhado por dois amigos de
Erik, o compositor Darius Milhaud e o poeta Paul Claudel, Conrad Satie
destrancou a porta do quarto. Os três se depararam com uma cena
van-goghiana: o quarto possuía apenas cama, mesa, cadeira, roupas
amontoadas (dezenas de costumes de veludo monotonamente idênticos) e uma
pilha de papéis velhos. Ali estavam partituras manuscritas, rascunhos e
cópias de cartas enviadas e centenas de envelopes... todos fechados. Eram
as cartas que os correspondentes endereçavam a Satie, sem que ele se
dignasse a abri-las.
"Ele tinha conservado todas as cartas recebidas, assim como os rascunhos
das que havia enviado, mesmo as mais insignificantes", lembrou-se Milhaud.
E Claudel: "Sob uma montanha de poeira, todas as cartas dos seus amigos.
Ele não havia aberto uma única sequer."
Milhaud fez as partituras achadas, como 3 Gymnopédies (1888) e
Véxations (1893), voltar à vida e semearam a inspiração dos compositores
contemporâneos, sobretudo os minimalistas. As cartas se espalharam. O
livro Correspondência Quase Completa (Correspondance Presque Complète)
as reúne pela primeira vez. O volume com a correspondência ativa e passiva
(põe passiva nisso) de Erik Satie (1866-1925) saiu na França em
edição patrocinada pelos correios locais e organizada pela historiadora e
musicóloga Ornella Volta. O livro compila as 1.165 cartas encontradas de e
para um compositor de papel capital na arte de vanguarda que dominou o
início do século XX. Satie participou da formação de diversos grupos
artísticos parisienses, para depois, naturalmente, desmantelá-los a golpes
de pena própria. Testemunhou, por exemplo, o batismo artístico de
Montmartre, na época em que o bairro ainda não passava de uma montanha
agreste de onde os dândies oitocentistas podiam divisar a ville lumière
com alguma tranqüilidade, e do êxodo da intelligentsia dali quando virou
bairro e foi infestado por casas de cancã.
No início do século XX, artistas e escritores se mudaram para outra
colina, Montparnasse, que passou a abrigar o berço do futurismo e do
dadaísmo — movimentos dos quais Satie fez parte, pelo menos indiretamente.
Apesar de morar numa banlieue, costumava ir a pé ao bairro para
trabalhar.
De Montmartre a Montparnasse foi o percurso boêmio e criativo de Satie.
Trabalhou como pianista de cabarés e ganhou fama como compositor de
cançonetas de caf'conc, como o gênero "café-concerto" era chamado na
Paris da Belle Époque.
Em uma carreira de imensos tropeços e glórias escassas, Satie privou da
amizade tanto dos últimos músicos impressionistas e simbolistas como
daqueles que construíram o alicerce da vanguarda. Neste aspecto,
representa um caso único de longevidade estética. O preço que pagou foi a
incompreensão de sua geração; seus colegas de turma tachavam suas
composições de bizarras e esotéricas. Só passou a ser aceito com a chegada
da geração que se seguiu à de Debussy, mais aberta para o grotesco e o
bas fond e conscientemente iconoclasta. A troca de guarda na Paris da
virada dos século XIX para o XX se faz sentir nas cartas de Satie.
A edição das cartas é resultado de três décadas de pesquisas por parte da
maior especialista contemporânea em Satie. A publicação era esperada havia
muito tempo. Ornella denominou a correspondência que coletou de "quase
completa" tanto por preciosismo como por temor de ser acusada de haver
faltado com o rigor. Exagero, claro. Ela consultou diversas fontes
ligadas a Satie que poderiam ter as cartas e se encarregou de escrever
textos que esclarecem as circunstâncias da correspondência de cada
período, além de oferecer, na segunda parte do volume, biografias sobre os
principais correspondentes do músico. Embora crítica, a edição não está
atulhada de notas de rodapé. Quase tudo é explicado em textos fluentes,
estampados em corpo grande.
A reunião forma um quadro extenso de uma das correspondências mais
excêntricas da história da arte. Por meio dela, o músico destilou seu ódio
pelos críticos, projetou suas aspirações artísticas, teorizou sobre
estética e religião e manteve amizades com heróis da modernidade. Entre
eles figuram os músicos Claude Debussy, Maurice Ravel, Stravinsky e Edgard
Varèse, os artistas plásticos Francis Picabia e Pablo Picasso, os poetas
Paul Claudel e Guillaume Apollinaire, os cineastas René Claire e Claude
Autant-Laura, o coreógrafo Serge Dhiaghilev e até mesmo os tão abominados
críticos de música. É o caso de Roland Manuel, biógrafo inaugural de
Ravel e um dos primeiros a ter publicado um texto escrito de Satie. O
título do texto é típico: "Observations d'un Imbécile (moi)" — "Observações de um Imbecil (eu)". Ele saiu em 1912 na revista L'Oeil de
Veau, que Manuel editava. As circunstâncias da publicação ressurgem na
troca de cartas entre músico e jornalista. Evidentemente, era um diálogo
no qual pelo menos uma das partes fazia papel de surda. Ou cega. Satie
escrevia sem responder. Suas cartas eram literalmente unilaterais.
"A correspondência privada é uma espécie em extinção", escreve Ornella
Volta. "Por suas inumeráveis variantes, a de Satie constitui um exemplo
representativo de um costume cuja morte é lamentável."
A estudiosa chama atenção para a beleza dos documentos que encontrou.
Satie escrevia com cuidado caligráfico impressionante — "a meio caminho da
escrita chinesa", nos termos de Jean Cocteau. Segundo Claudel, ele era
capaz de levar 20 minutos para redigir seis linhas de diatribe contra um
crítico, como o wagnerita Jean Wiéner, a quem acusava de produzir
"excrementos do espírito" (expressão de Victor Hugo) e de ser um "bufão
infame".
"Em Satie, a relação epistolar aparece como uma forma de expressão
privilegiada que acompanha todas as circunstâncias marcantes de sua vida",
segue Ornella. "Pelas cartas abertas, ele se iniciou na sociedade; com
cartas formais, obteve o primeiro exame de sua produção no teatro
nacional. Um pacote de cartas nunca enviadas nos dá a oportunidade de
tomar contato com sua única paixão amorosa, e foi via um cartão postal
injurioso que ele conheceu seus piores embaraços." Morreu gritando por uma
carta desaparecida.
Se constituem uma das peças que faltava ao quebra-cabeça da história da
música moderna, tais cartas devem embaralhar ainda mais as peças em vez de
resolver a questão. O "músico medieval e doce, perdido neste século", nas
palavras de seu amigo e colega Debussy (carta de 27 de outubro de 1892),
ainda oferece campo para decifração.
Conforme demonstram suas cartas, o músico escrevia como compunha, breve e
fragmentariamente, com caligrafia cuidadosa e os mais variados tipos de
papel. Chegou a compor em cartas ou dar indicações sobre esta ou aquela
obra. Exemplo do cuidado está na missiva enviada em 26 de março de 1913 ao
pianista Ricardo Viñes, intérprete responsável pela execução de muitas
peças de Satie. Ali, o compositor se ocupa em corrigir um "mi" estampado
erroneamente na partitura da peça On joue. E arremata: "Você compreende?
Erro do gravador, o mi. Assim, ruim. Muito ruim." Em outra carta, de 8 de
dezembro de 1909, convida o jovem compositor Robert Monfort (morto em
1941) para jantar no restaurante de Douau. O texto não tem um conteúdo
notável e muito menos seu destinatário, obscuro funcionário do Ministério
das Finanças francês ligado ao círculo dos poetas fantasistas e, segundo
Ornella, "compositor sutil e original". Mas Satie escreveu sua carta sobre
uma folha de pentagrama, com capricho de escriba e frases de operador de
telégrafo. "Devo confessar-lhe, com rubor na fronte, que esse Douau é um
mercador de... vinho?"
Satie ironizava a própria persona. Apresentava-se como "gimnopedista" e
não mestre de música. Isso numa época, pouco distante da nossa, em que os
títulos eram tão importantes quanto o talento. Não conseguiu ter formação
musical acadêmica. No Conservatório de Paris, onde estudou entre 1879 e
1882, foi reprovado por total incompetência em lidar com contraponto e
harmonia. Seu professor de piano, Mathias, anotou num relatório sobre o
desempenho do aspirante a concertista: "Nada. Três meses para aprender uma
peça. Incapaz de ler à primeira vista." Ainda assim, insistiu em escrever
música à margem do grande mundo e estudou harmonia na Schola Cantorum de
Vincent d'Indy. Para compensar deficiências, usou uma técnica
primitivista, para não dizer primária, a fim de escrever peças, suítes e
canções com melodias repetitivas e progressões harmônicas inauditas para a
época. Dava-lhes nomes humorísticos, como as peças para piano Embryons
desséchés (Embriões ressecados, 1913) e Choses vues à droite e à gauche
(sans lunettes) — Coisas vistas à direita e à esquerda (sem óculos), de
1914. O compositor privilegiava o instrumento, até porque só sabia
tocá-lo. Suas obras orquestrais e para grupo de câmara se destinavam a
cerimônias rosas-cruzes e a balés dadaístas.
Auto-intitulando-se fundador de uma suposta Igreja Metropolitana da Arte
de Jesus Condutor, expedia bulas de excomunhão para meia crítica
parisiense. Daí, talvez, o reconhecimento tardio como autor. Foi citado em
obra de referência somente em 1910, no Dicionário de Hugo Riemann nestes
termos: "Compositor da Rosa-Cruz, autor de Gymnopédies, orquestradas por
Debussy".
Talvez ironizando Riemann, em maio de 1915, a pedido do pianista Paul
Viardot, Satie mandou seu currículo para constar de um verbete de
enciclopédia da música: "Eric Satie — dito Erik Satie — nascido em
Honfleur (Calvados) em 17 de maio de 1866. Realizou péssimos estudos no
Conservatório de Paris. Tardiamente, foi aluno de Albert Roussel & Vincent
d'Indy. Assinou, em 1892, obras absolutamente incoerentes: Sarabandes;
Gymnopédies (orquestradas por Debussy); prelúdios do Fils des Étoiles
(orquestrados por Maurice Ravel), etc... Escreveu também fantasias de uma
rara estupidez: Véritables Préludes Flasques, que Ricardo Viñes bisou na
Société Nationale; depois, Embryons Desséchés, que Jane Mortier igualmente
bisou em um de seus concertos. O sr. Satie passa, a justo título, por um
pretensioso cretino. Sua música não tem sentido e provoca o riso ou o dar
de ombros."
À medida que os "novos jovens", como dizia, iam aceitando sua música,
Satie mudava o registro das cartas. Mostra autoconfiança nos anos 20,
como na carta a Cocteau, de março de 1920, na qual descreve o projeto de
criar uma Música de Mobília (Musique d'Ameublement) — aparentada da
futura música pop: "A Música de Mobília é profundamente industrial (...)
Queremos estabelecer uma música feita para satisfazer as necessidades
úteis. Arte não entra nesse negócio. A Música de Mobília cria vibração.
Ela não tem outro objetivo: tem o mesmo papel que a luz e o calor — & o
conforto sob todas as formas". Musique d'Ameublement, para piano,
trombone e três clarinetes, estreou naquele ano no intervalo de uma peça
de Max Jacob. Nesta época, a obra do autor ganhou apelido de "cubista";
Satie, o "Picasso da música". Os atributos se revelaram inadequados.
Melhor seria chamá-lo de "belo excêntrico".
A leitura da abstrusa montanha de cartas pode levar a um raciocínio
fácil: o estilo direto, o modo informal e a rapidez de comunicação
exibidos por Satie remetem à estética do e-mail. Seria ele precursor do
correio eletrônico? Pouco lógico. Uma figura milenar define a criatividade
musical e epistolar do artista e que tem a ver com internet: a elipse. Por
este motivo, a organizadora do volume completou as lacunas deixadas pelas
alusões e pilhérias. O ouvido também deve preencher as reticências para
dar conta das peças de Satie.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil.
Luís Antônio Giron
São Paulo,
2/12/2002
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