Oito da manhã de sábado, e um lamento lúgubre invade nossa casa: "Espíritoooooooooooo..... espíritooooooooooo...".
É o terceiro fim de semana seguido em que isso acontece. É como um uivo alto e incômodo, acompanhado por um teclado meio progressivo. É o que se poderia chamar de música, mas que prefiro definir como trilha sonora de execução medieval.
O autor é meu vizinho. Mal amanhece o dia, ele liga seu possante soundsystem e põe a maldita canção. Sempre a mesma.
A janela do nosso quarto fica a uns 50 metros dos alto-falantes do sujeito, mas parece que a banda está tocando no pé da cama. A voz ecoa pelas paredes como um mantra do além. É apavorante.
Neste sábado, não aguentei e fui falar com ele.
Fui atendido por um senhor que recolhia folhas no quintal: "Ele não está, saiu para comprar pão". Ah, entendi, então ele deve ter calculado o volume do soundsystem para ser ouvido na padaria, que fica a uns 1600 metros da casa.
Depois de 15 minutos, chega o vizinho. Confesso que não era o que eu esperava: o sujeito era forte como um halterofilista, usava uma regata e tinha o corpo inteiro coberto de tatuagens. Parecia um roadie do Social Distortion.
Expliquei minha situação: minha filha de dois anos está em casa chorando, com medo dos espíritos. Será que eles não poderiam baixar lá em casa um pouco mais tarde? Precisava ser às 8 da manhã de sábado?
Ele foi surpreendentemente compreensivo. Pediu desculpas e baixou a potência do soundsystem para um volume mais adequado ao horário, algo no meio do caminho entre o trio elétrico da Daniela Mercury e a turbina de um 767.
Fui embora, satisfeito e otimista com a possibilidade de entendimento entre homens de boa vontade.
Aqui, vale um parêntese: não vou dizer a que igreja o vizinho pertence, mesmo porque não sei. Hoje em dia são tantas as denominações que corro o risco de me enganar. Além do mais, o tema deste texto não é religião, mas a falta de civilidade de quem acha normal impingir seus gostos ― musicais ou religiosos ― nos vizinhos.
De volta à nossa rua. Passamos um sábado tranquilo, ouvindo os espíritos ao longe. Mas, à noite, o bicho pegou.
Lá pelas 9 horas, outro som da pesada começou: "Welcome to the jungleeeeeeeeee!" Era Guns N' Roses. Axl Rose espantou todos os pássaros, cães, minhocas, enfim, todos os seres vivos que costumam buscar refúgio em nosso quarteirão.
Foi duro. Mas deixou uma lição: falta de civilidade não tem religião e nem horário. É universal.
Alguns leitores lembraram, num outro texto meu, de uma grande frase de Chesterton sobre música ao vivo em restaurantes: "Música com jantar é um insulto tanto ao cozinheiro quanto ao violinista".
Chesterton morreu em 1936. Não teve tempo de experimentar o boom dos possantes soundsystems caseiros. Se tivesse, certamente teria escrito algo sobre meu vizinho.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog de André Barcinski, hospedado no Folha Online.
É incrível a falta de percepção das pessoas. Todos os dias uso transporte coletivo e sempre tenho que escutar esses "soundsystems" portáteis que esses cidadãos possuem, como se não bastasse o ônibus lotado ainda sou obrigada que aguentar aquelas músicas.