Sendo a sorte generosa, Ernesto Sabato completará este ano um século de vida. É uma pena que homens como ele sejam submetidos à mesma recôndita justiça que, assim como deu a vida, dá também a morte a todos. Porque a vitalidade deste senhor quase centenário é de fazer inveja aos jovens de hoje.
Quem sabe neste momento, em Santos Lugares, onde mora, Ernesto Sabato esteja desfrutando de algum prazer muito simples, rememorando, por exemplo, a campana das suas horas de infância em Rojas, pintando um autorretrato em azul e negro ou contemplando em silêncio, na ruína da sua casa coberta de trepadeiras, a imagem da sua própria velhice.
Ernesto Sabato é um homem que pode se mirar, a essa altura da vida, sem o medo de encontrar pegada à cara qualquer espécie de máscara sinistra. Não por acaso o ano de explosão da bomba atômica em Hiroshima oficializou sua entrada para a literatura. Entre as torres da ciência e um caminho escarpado de perigos, Sabato escolheu o que julgava ser o seu destino. Onde se encerrava uma prestigiosa carreira de físico, tinha início a peregrinação do artista, seu respeito pelo mistério de uma realidade que a razão não domina, sua observância a valores transcendentes que não se negociam, uma luta contra aquilo que, adoecendo o mundo contemporâneo, ele chamou de "indiferença metafísica".
Em uma manhã de janeiro de 1975, Borges e Sabato, em um de seus últimos encontros, conversaram sobre Hölderlin e sobre a loucura que levou o poeta a viver em uma torre durante mais de trinta anos, aos cuidados de um carpinteiro. Borges fala dessa loucura como um cerco da noite. Sabato recorda, então, uma frase de Hölderlin citada anteriormente em seu livro O escritor e seus fantasmas: "O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa".
Frase emblemática da trajetória de Sabato como artista, como criador que, separando a luz das trevas, hospedou-se, também ele, dentro da noite, levando para ali sua lucidez, uma lucidez que, se teve algo de louco, foi sua resistência, sua esperança em uma vida mais humana, feita de convívio, de memória e de experiência, e não uma vida avassalada pela tecnologia, pela hipnose das telas, pelo utilitarismo. Se faltam encontros verdadeiros e horas livres, é porque sobeja do outro lado um entorpecimento, uma esterilidade dos sentidos, uma epidemia de cegueira da qual já se teve notícia uma vez pelas páginas da literatura. Foi inclusive José Saramago que, na ocasião do aniversário de 98 anos do escritor, escreveu em seu Caderno: "Estou certo de que ao século que acabou se virá chamar também o século de Sabato, como o de Kafka ou de Proust". Espera-se que o início desta nova década mereça também um século de vida de Ernesto Sabato.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no siteVida Breve.