No ano de 1992, quando eu ainda acreditava que a função do crítico literário fosse a de produzir avaliações, veredictos e sentenças, caiu-me nas mãos Sonhos tropicais, o décimo segundo romance de Moacyr Scliar. Há muito deixei de ver no crítico uma espécie de juiz de peruca, que interroga, absolve, ou condena uma obra. Naquela época, contudo, por insegurança, por teimosia, por medo de errar, ainda insistia em dizer se um livro era bom ou ruim.
Não gostei de Sonhos tropicais e, em uma resenha que escrevi para uma revista semanal, disse isso com todas as letras. Baseado na trajetória do sanitarista Oswald Cruz ― figura central na vida de Scliar, ele próprio um médico sanitarista ―, Sonhos tropicais me pareceu um livro temeroso em que seu autor, refém das rigorosas exigências da pesquisa, não conseguiu se dar a liberdade que deveria e merecia se dar.
Hoje não sei se teria a mesma opinião. De fato, não aprecio as biografias romanceadas, gênero que me parece, em geral, preguiçoso e frouxo. Ocorre que Scliar não apresentava seu livro como uma biografia romanceada, mas como um romance ― e foi isso, talvez, o que me incomodou. Talvez, pensei, ele não tivesse se decidido muito bem a respeito do livro que queria escrever. Talvez... mas o que importa! Nunca mais voltei a ler Sonhos tropicais, mas planejo fazer isso em breve, para matar um pouco as saudades do amigo que perdi.
Publicada minha desagradável resenha, pensei: Scliar me odiará para sempre. Não o procurei mais, nem ele me procurou, o que parecia provar a tese da ruptura. Quase um ano depois, porém, caminhava eu pela Rua da Praia, em Porto Alegre, quando o avistei de longe. Vinha em minha direção. Pensei em mudar de caminho, mas o correto era seguir em frente e enfrentá-lo, e foi o que fiz.
"Precisamos nos falar por dois minutos", ele me disse, sem disfarçar a ansiedade. Pensei: "Pronto: chegou a hora de ouvir o que mereço ouvir". Não me deixou pensar, foi rápido: "Por que não tomamos um café?". Aceitei; eu não tinha escolha. Na esquina, nos perfilamos diante do balcão de uma confeitaria. Durante um ou dois minutos, nem eu, nem Scliar conseguíamos dizer qualquer coisa. Até que ele, num desafogo, me disse: "Você sabe no que estou pensando". Não podia negar que sabia: "É claro, no livro do Oswaldo Cruz".
Admitiu, então, que, ao ler minha resenha, ficara furioso. Mais ainda, ficara decepcionado, pois nela sentira a ponta secreta de uma traição. Durante alguns dias, recordou ainda, ensaiou respostas incisivas que me daria em um telefonema. Aos poucos, contudo, a dor abrandou e, me disse Scliar já com um esboço de sorriso, ele conseguiu enfim pensar.
Não adoçou as palavras: "Quero lhe dizer que você tem toda razão no que escreveu". Abriu, então, um sorriso vasto e longo, de alívio, mas também de gratidão. Enfim, continuou: "Depois que a raiva passou e que controlei a vaidade, consegui enfim aceitar o que você me dizia". Nos dias seguintes, refletiu sobre seu caminho literário, lutou para se observar desde fora. Quanto a mim, estava imobilizado. Cedesse à vaidade, e passaria a acreditar, enfim, que era um "grande crítico". Quanta tolice! Minha resenha era não só pequena, mas despretensiosa. Limitei-me a esboçar uma impressão muito breve. Forte era Scliar que, machucado por minhas palavras, soube, ainda assim, lhes emprestar uma grandeza que não tinham.
Vitória do leitor: são os leitores, no fim das contas, que fazem os grandes livros. Era só nisso, na verdade, que eu conseguia pensar. Se ainda tinha dúvidas a respeito do destino de nossa conversa, elas se dissiparam quando Scliar me disse: "Deixe eu lhe dar um abraço. De agradecimento. Agradecer pela sua coragem, e lhe dizer que você me obrigou a ser corajoso também". É com dificuldades que recordo as palavras que trocamos. Não só porque muitos anos se passaram, mas também porque estávamos, ambos, engolfados pela emoção. Em silêncio, nos abraçamos ― e aquele abraço foi mais eloqüente que qualquer palavra. Guardava uma força crítica que, em minhas resenhas literárias, jamais consegui. Não era uma crítica para me destruir, era uma crítica para me acolher. Era para dizer: "Podemos divergir e, apesar disso, caminhar juntos".
Não que, quando escrevi minha resenha de Sonhos tropicais, eu tenha desejado destruir a reputação de Scliar ― tarefa, aliás, em que eu teria sido derrotado. Ao contrário: julguei que, ao escrever, apenas me submetia às exigências da verdade ― e Scliar foi grande o bastante para entender isso. Existem, porém, muitas maneiras de dizer uma mesma coisa. Só um coração corajoso como o de Scliar suportaria meus restos de imaturidade (aos 40 anos!) e meus atropelos.
"Você tira um elefante de minhas costas", consegui, enfim, dizer. "Eu sempre me perguntei se tinha sido cruel. Se errara não só no que pensava, mas na maneira de dizer o que pensava". Nesse momento, o médico Scliar se impôs ao escritor Scliar. Ele me interrompeu: "A verdade é sempre dolorosa, mas precisa ser dita". Desde então, uma amizade muito funda, sincera, um forte laço de confiança, nos ligou. Nunca fomos amigos íntimos, mas nos tornamos amigos intensos.
Encontrei-o, pela última vez, em dezembro passado, na Bienal do Livro de Campos, onde chegamos escoltados por Suzana Vargas. Logo percebi o cansaço imenso que carregava. "Soube que ainda temos um jantar pela frente", ele me disse. "Não sei se conseguirei ficar até muito tarde". Fui rápido, talvez até ríspido: "Você não vai a jantar algum, meu amigo. Vai direto para o hotel, pedirá um lanche no quarto e irá para a cama". Abraçou-me em outro imenso silêncio. Os abraços silenciosos são os mais belos: eles simplesmente nos acolhem, sem nada exigir em troca, e sem nos impor significado algum.
Não resisti e lhe dei um beijo no rosto. Senti que levou um susto, porque se empertigou um pouco, como se fosse fazer uma continência. Depois percebi que tinha a face vermelha e dela arrancou, com força, um sorriso. A que correspondi sorrindo também. Achei que nos reveríamos logo, em alguma outra bienal, ou feira literária. Mas não: era um sorriso de adeus.
Obrigado, Scliar, por me levar a entender a insignificância de minhas pequenas opiniões. Obrigado, também, por me ensinar que a grandeza é a falência da vaidade. Nossa amizade nasceu de um desencontro. Como somos misteriosos! Vá se entender os homens! Até hoje sinto o calor de seu abraço e é só isso o que interessa.
Em primeiro lugar, o grande mal do crítico (seja de literatura, seja de arte) é que ele se julga dono da verdade, ou seja, em vez de emitir uma opinião pessoal, enche sua crítica de chavões pseudo-técnicos e, no fim das contas, satisfeito, pensa ter produzido uma obra-prima. Não sei se é regra geral, mas quantos textos de crítica tenho lido me passam essa impressão. É de dar pena. Em segundo lugar, não posso julgar a obra de Scliar apenas por ter lido um livro dele, mas se tudo que ele escreveu for do mesmo nível do Manual da Paixão Solitária, afirmo sem medo de errar que Scliar não passará de um escritor de segunda linha, quando muito. Infelizmente, não posso falar muito bem do que tenho lido em termos de literatura brasileira, salvo com algumas excessões. Jorge Amado não leio mais, dada a mediocridade de sua obra. Outro dia li o Memorial de Maria Moura, da Rachel de Queiroz, lamentável. Será que para consagrar-se como escritor neste país a tônica é escrever mal?