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ENSAIOS

Segunda-feira, 30/12/2002
Kane era um amador
Sérgio Augusto
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Quando, poucos anos atrás, vinham me falar da última maravilha da Internet – o jornalismo pontocom, com empregos a granel e salários fabulosos, inimagináveis no jornalismo impresso –, eu dizia sempre a mesma coisa: "Isso é bom demais pra ser verdade."

Se me chamavam de incrédulo, cético, pessimista ou coisa parecida, esticava o verbo, comparando o oba-oba pontocom à corrida do ouro na Califórnia, que, como todos sabemos, foi um negoção apenas para meia dúzia de afortunados. "Durante a corrida do ouro, só quem ganhou dinheiro sem correr risco foram os fabricantes de pás e picaretas e a Levi's, que fabricava os jeans dos mineiros." Cansei de dizer isso aos mais entusiasmados com a bonança pontocom – muitos dos quais tiveram de mendigar sua volta às redações tradicionais, depois que o sonho acabou, não raro aceitando salários bem inferiores aos que recebiam antes de trocar a merreca do jornalismo impresso pela cornucópia dos sites que por uns tempos se multiplicaram como cogumelos na grande rede.

Cumpriu-se, afinal, mais uma Lei de Murphy: "O que é bom demais pra ser verdade ou não é bom ou não é verdade."

Quando, recentemente, anunciaram a abertura de nossa mídia ao capital estrangeiro, só não houve festa no arraial porque a maior parte dos interessados está desempregada e sem dinheiro até para a cerveja. Mas a euforia foi digna da miragem pontocom. Torcendo, como de hábito, para estar errado, oraculei: "Se os gringos entrarem com alguma grana, não será pra investir no jornalismo impresso, mas na televisão." Continuo duvidando que algum gigante da mídia internacional possa se interessar em injetar dólares em jornais e revistas comatosos, podendo faturar algum (ou até muito) nos meios de comunicação favorecidos pelas nossas massas analfabetas e semiletradas.

Por ser, exclusivamente, um profissional da imprensa impressa, não posso ser acusado de oracular em causa própria. Mas ainda que meu meio fosse o jornalismo televisivo, meu otimismo, a esta altura, seria relativo. Digo isto porque conheço o tamanho do buraco de nossas TVs fechadas, há meses de pires na mão.

Pires? Disse-o mal. Até bandeja talvez já seja insuficiente para recolher o que os nossos canais a cabo precisam para se ressarcir de suas dívidas em dólares. Graças ao meu ceticismo, não devo um tostão em dólares, pois nunca acreditei naquela paridade de carochinha: 1 real = 1 dólar. Tampouco tenho dívidas em real porque há décadas sou adepto do equilíbrio fiscal. Vai ver também é por isso que não disponho de uma rede de televisão nem de uma editora de jornais e revistas.

A alma ao diabo – Corre na praça o wishful thinking de que Rupert Murdoch e sua News Corporation poderão ajudar os canais da Globosat, comprando-lhe as ações que a nova legislação brasileira sobre propriedade dos meios de comunicação permitir. De fato faz mais sentido Murdoch comprar as emissoras a cabo (e satélite) da família Marinho do que acrescantar ao seu portfólio a Gazeta Mercantil e transformá-la num The Adelaide Times ou apropriar-se do Jornal do Brasil para fazer dele um tablóide sensacionalista, com uma garota em trajes sumários fazendo pose na página 3, como há 32 anos tem o londrino Sun, apelação inventada pelo próprio Murdoch.

Tenhamos cautela com a expressão wishful thinking. Murdoch pode ser a salvação da lavoura dos Marinho e de um contingente razoável de profissionais, um alento para o mercado, pororó, pão duro, coisa e tal, mas ele, definitivamente, não é flor que se cheire. Quem o espera como a um deus ex machina, cuidado. Murdoch está mais para diabolus ex machina. Bom não esquecer que Ted Turner já o comparou a Hitler. Se bem que concorrente (a CNNI concorre com a Fox News, do Murdoch), Turner não exagerou muito, se considerarmos a sede por espaço vital (ou seria virtual?) do magnata australiano, naturalizado americano em 1985, e sua falta de escrúpulos para saciá-la.

Murdoch não compra empresas pelo mundo afora só para ganhar dinheiro, mas também ou sobretudo para ampliar seu poder, expandir um ideário político e econômico que talvez fizesse corar o finado dr. Roberto Campos e promover seus outros negócios, às vezes, diga-se, de forma nada ética. O colunista de economia, no Daily Times-Mirror, de Sydney, já recomendou a seus leitores a compra de ações da News Corp, alegando ter informações de cocheira sobre a pujança da empresa. Murdoch é dono do Mirror.

A única publicação em cuja política editorial ele, sabiamente, nunca interferiu foi o semanário alternativo The Village Voice, por ele tonificado financeiramente em 1977, a pedido de Clay Felker, que também dava as ordens nas revistas New West e New York, ambas beneficiadas por Murdoch – que, na primeira oportunidade, passou a perna em Felker. Fizera o mesmo com a família de sir William Carr, por ele usada para comprar de Robert Maxwell The News of the World, sua ponta-de-lança na Inglaterra. Foi com a venda de uma parte das ações do News que lançou, em 1969, o vulgaríssimo The Sun.

Na terra dos cangurus – A primeira vez em que ouvi falar de Murdoch foi em 1976, numa viagem à Austrália. Embora estivesse no ramo havia 23 anos (herdara do pai a News Ltd e um pequeno jornal de economia em Adelaide) e já fosse dono de três jornais em San Antonio (Texas), era ainda, basicamente, um magnata australiano. E numa Austrália sem a acústica de hoje. Os únicos australianos famosos que me vinham à cabeça na época eram o ator Errol Flynn, o golfista Jack Nicklaus, a feminista Germaine Greer, o roqueiro Johnny O'Keefe, a escritora Colleen McCullough e os jornalistas Clive James e Robert Hughes – o que já era um exagero. Esperto (ou clarividente), o brasileiro Tião Maia já se estabelecera por lá como uma espécie de rei do gado, mas isso, que eu saiba, não teve a menor importância na trajetória do Murdoch.

Em Sydney conheci três jornais nativos (The Sunday Daily Telegraph, Sunday Telegraph e The Star, ex-The National Star) e achei-os piores até que os de San Francisco (Califórnia). Batiam tanto, e por notória picuinha ideológica, no Primeiro-Ministro Gough Whitlam, que os jornalistas australianos fizeram greve de protesto contra o império do Charles Foster Kane de Melbourne. Comparado a Murdoch, Kane era um amador.

Logo estaríamos tomando um chá do australiano, sabendo de todas as suas aventuras empresariais e matrimoniais. A mída internacional lhe deu notoriedade a partir de 1977, quando ele atacou Manhattan e, além das publicações de Clay Felker, comprou o New York Post. Quando a década de 80 teve início, ele já se metera em cinema (co-produziu Gallipoli), conseguira alterar em benefício próprio as regras de licenciamento de TV na Austrália (uma de suas especialidades, inclusive em outros países), fundado a News Corporation e comprado dois bastiões da imprensa britânica, The Times e The Sunday Times.

É um trator. Não tem o menor escrúpulo em usar suas publicações e emissoras de TV para seduzir políticos e alterar legislações criadas para evitar concentração de poder, monopólios e outros malefícios à democratização dos meios de comunicação. Perseguiu o senador Edward Kennedy por ele zelar pelas regras da Comissão Federal de Comunicações (FCC) dos EUA, que, no vigente reinado republicano, deverão ser abrandadas para amplo usufruto de Murdoch. O homem é assim com a administração Bush.

Beira a promiscuidade o seu relacionamento com os cardeais da Casa Branca. Roger Ailes, presidente da Fox News, vem assessorando às escâncaras o atual governo americano, deslavado conflito de interesses que já foi tema de uma recente coluna de Paul Krugman, no New York Times. O bravateiro Brit Hume, também da Fox News, afirmou com todas as letras num talk show que os republicanos deviam a sua recente vitória nas eleições legislativas ao canal de notícias de Murdoch:

"As pessoas assistem aos nossos programas e absorvem as nossas mensagens eleitorais. Ninguém deveria duvidar da influência da Fox neste assunto."

Comentário de Krugman: "Imaginem a reação se os democratas tivessem vencido as eleições e Dan Rather, âncora do CBS Evening News, tivesse atribuído o mérito pela vitória ao seu programa jornalístico."

E pensar que o slogan da Fox News é "Nós relatamos os fatos. Você decide."

Negócios da China – As ligações de Murdoch com os republicanos transcendem o campo das idéias. E do decoro. Tinha o seu dedo a pertinaz campanha que seus jornais e canais de TV moveram contra Bill Clinton. Ofereceu 4,5 milhões de dólares de adiantamento por um livro ao então bambambã do Congresso americano Newt Gingrich, não porque farejasse um best-seller, mas porque necessitava de sua ajuda para abrir brechas na legislação da FCC.

Apesar de ferrenho anticomunista, não economiza agrados ao governo chinês. Não quer perder o fabuloso mercado que de certa forma já controla com a sua TV por satélite, a StarTV, sediada em Hong Kong desde 1993. Quatro anos atrás, tirou a BBC do cardápio da Star porque os manda-chuvas de Pequim não gostavam da maneira como a emissora britânica cobria a China. Em seguida, não apenas suspendeu a publicação das memórias do último mandatário britânico em Hong Kong, Chris Patten, que sairiam pela HarperCollins, conglomerado editorial formado por Murdoch em 1989, como ofereceu 1 milhão de dólares à filha de Deng Xiaoping para que escrevesse a biografia do pai, afinal recebida como um monumento ao clichê, à propaganda e à pieguice.

Só na Austrália Murdoch controla mais de 60% da imprensa, é dono da mais poderosa operadora de TV a cabo, de metade da Qantas (a Varig australiana) e de toda a liga de rugby. Também fez uma limpa no mercado internacional. Além de 93% da Star TV e 100% da HarperCollins, a News Corp possui mais de uma centena de revistas e jornais, a Fox TV, os estúdios de cinema da Fox e interesses em empreendimentos televisivos de cinco continentes. Na Europa, suas últimas investidas foram na Alemanha (em cima do cambaleante império midiático de Leo Kirch) e na Itália (avançou sobre a Telepiù).

Não faz muito tempo, comprou os Dodgers (time de beisebol de Los Angeles) e já está de olho no L.A. Lakers (a mais badalada equipe de basquete da Costa Oeste). Há quem diga que tais aquisições visam fortalecer o canal de esportes da Fox, que, de certo modo, foi chocado no ventre da BSkyB, quando Murdoch lhe assegurou a transmissão exclusiva dos jogos da Liga inglesa de futebol, em 1992.

O Fox Sports promete chegar ao Brasil no primeiro semestre de 2003 e já deve ter gente sonhando com a compra de algum time de futebol brasileiro pelo magnata australiano. Esqueçam. Murdoch não joga dinheiro fora. O máximo que, em breve, poderá acontecer é uma transação da Fox com a Sports Promotion, que se transformaria numa espécie de Shoptime do futebol, concorrendo com o Sportv e o pay-per-view. É o que dizem no mercado.

Quem já assistiu ao Fox News (canal 54 da Sky Net), em especial ao tendencioso O'Reilly Reports, pode ter uma idéia do que nos espera uma rede de emissoras nas mãos de Murdoch.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado n' O Pasquim 21, em sua edição de número 43, com data de 10 de dezembro de 2002.


Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 30/12/2002
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