O dia 7 de janeiro foi escolhido para ser o dia do leitor. Também nesse dia, os católicos celebraram missa festejando o "Dia de Reis" (que, na verdade, foi na véspera, durante a semana). A Epifania, nome de origem grega pelo qual a data é igualmente chamada, significa revelação. Até a chegada dos Reis Magos ― Baltazar, Gaspar e Melchior ― o nascimento de Cristo era um assunto circunscrito à família. Serão eles que, após a visita, irão espalhar a notícia. No mundo do jornalismo e da cultura, ao lado dessas comemorações, houve infelizmente uma manifestação de pesar, marcada pela missa de sétimo dia de Daniel Piza (1970-2011).
Será na qualidade de sua leitora que irei escrever. Sinto-me autorizada por todas as sincronicidades mencionadas que, em um único ponto no tempo e no espaço, uniram, de um lado, as lágrimas de saudades despertadas pelo falecimento precoce do talentoso escritor e jornalista, e, de outro, os festejos tanto da manifestação do divino como da identidade que mais satisfação me trouxe na vida: a de leitora.
Escrever pode até ser bom, mas ler é melhor ainda. Ler o Daniel era maravilhoso. Recordo-me do prazer em abrir a Gazeta Mercantil, às sextas-feiras, lá pelos meados de 1990, e ler de cabo a rabo o "Fim de Semana". Esse caderno era uma maravilha, com textos de nomes do calibre de Ivan Lessa e Sonia Nolasco. Além deles, havia indicações de restaurantes, de roteiros de viagens e de exposições. Contudo, uma das partes que mais me encantava era a coluna de Piza. À primeira vista, inspirada no Diário da Corte, do sempre saudoso Paulo Francis (1930-1997); aos poucos, expressão de temperamento próprio.
Lembrar traz para perto pessoas e coisas que se foram. E, nas palavras de Santo Agostinho, o coração é a sede da memória. Eu trabalhava em um banco de investimento, na Avenida Paulista. Não saía para o almoço para poder ler em paz. Finda a leitura do "Fim de Semana", recortava a coluna do Daniel e a guardava. Maravilhada com que havia lido, eu via um mundo que afinal podia ser bom e dar certo; a possibilidade de uma natureza acolhedora; a esperança da humanidade salvar-se um dia. Meu coração não batia mais só.
Fiquei sabendo que o próprio Piza era o editor do "Fim de Semana". Tempos depois, acompanhei sua mudança para "Caderno 2" de O Estado de S. Paulo. Não posso dizer que ele contribuiu para minha formação, uma vez que somos de gerações diferentes, sendo a minha mais antiga que a dele. Mas, pelas suas mãos, cheguei a coisas importantes. Em minha febre de ler biografias, a indicação de Lytton Strachey e sua Rainha Vitória. No que se refere às técnicas de criação literária, Como funciona a ficção, de James Wood, e A arte da ficção, de David Lodge. A última indicação sua que acolhi foi a leitura de A lebre com olhos de âmbar, de Edmund de Waal. Um livro sonhado, de tão terno, elegante e bem concebido.
Embalada nessas recordações, cheguei à igreja de Santa Terezinha, em Higienópolis (SP), onde a missa em lembrança ao sétimo dia da morte de Daniel Piza teve lugar no sábado. Pouco antes do início do ofício, uma tromba d'água caiu do lado de fora, enquanto dentro ouvia-se o "Intermezzo", da ópera Cavaleria Rusticana (Pietro Mascagni, 1893-1945). O ruído da chuva, o cheiro de ar molhado e as músicas que se seguiram teceram uma moldura de emoção, sob o olhar da imagem de Santa Terezinha de Lisieux no altar ― la petite Thérèse de l´Enfant Jesus ― santa dos pequenos gestos e das pequenas coisas, morta da mesma forma tão jovem, fato que não impediu que viesse ser declarada posteriormente doutora da Igreja.
Paulo Francis ― figura cara a Daniel Piza ― escreveu no Diário da Corte (isso lá pelos idos de 1989) que, apesar de ateu, sempre que experimentou um estado de espírito próximo à plenitude, viu-se em situações que, de uma certa forma, estavam ligadas ao religioso e não lhe custaram nada. Nem um grama de mel coado, usando as exatas palavras dele. Como exemplo, mencionou uma missa assistida na Sainte Chapelle, em Paris, celebrada segundo o rito tridentino.
Várias vezes vi-me tentada a escrever para o Daniel Piza e arrependo-me de não tê-lo feito. Cheguei a conhecê-lo durante o curso sobre biógrafos e biografias ministrado na Casa do Saber, pelo Pedro Paulo Senna Madureira. Piza compareceu para falar sobre sua biografia de Machado de Assis (1839-1908). Será que ele, que havia chamado minha atenção para a ligação entre o texto de Euclides da Cunha (1866-1909) e o do francês J.K. Huysmnas (1848-1907), havia notado que Machado, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, nas páginas em que uma fantasiosa viagem do personagem principal no dorso de um rinoceronte é descrita, transcreve trechos também de autoria Huysmans? Porém, o tempo foi exíguo para tanto assunto. Como parece sempre sê-lo para aquilo que chamamos de dias felizes.
Nunca se escreveu e se publicou tanto como na atualidade. Há quem afirme que há mais escritores do que leitores. Assumindo por completo minha persona de leitora, deixo aqui meu muito obrigada a Daniel Piza pelos momentos de prazer e encantamento que seu texto sempre trouxe para mim.
Nota do Editor
Eugenia Zerbini é ganhadora do Premio SESC Literatura 2004, com o romance As netas da Ema.
Nota-se, em cada palavra escrita, o extremado carinho para com o, podemos dizer, homenageado. Ele, em sua plenitude de alma, sabe disso e recomenda que não se deixe a tristeza ficar junto à sua imagem. Ele se foi. O que deixou, para você, sua leitora, esse espaço entre o "ser" e o "viver". Adorei o ensaio. Maravilhosas as palavras. Parabéns!
Quando eu trabalhava no Ministério da Defesa (1999 a 2002), eu tinha por hábito ler o caderno Fim de Semana, do jornal Gazeta Mercantil. Tenho, até hoje, cópia de muitos textos valiosos, inclusive do Daniel Pizza, que sempre achei um escritor formidável. Para mim, era um dos melhores cadernos culturais publicados nos jornais. Aliás, é de Daniel Pizza a tirada de que o Brasil é conhecido no exterior por três bês: Brasil de bola (futebol), Brasil de bunda (mulata) e Brasil da batucada (samba). Passando pelo aeiou, eu diria que o Brasil é o país da batucada, da bebida, do bico, da bola e da bunda...
Lamentável perda. Que a terra lhe seja leve, Daniel!
Eugenia, cada vez que leio um texto sobre o querido Daniel,sinto uma revolta grande, muito grande pela perda prematura. Não consigo aceitar. Se a falta para mim tem sido imensa, imagino o desespero do pai, da mulher vendo morrer sem que pudesse fazer alguma coisa. Parece que para mim, como médica, seria explicar o inexplicável.
Eugenia.
Que lindas palavras. Eu sei exatamente o que você sentiu acompanhando a trajetória do Daniel Piza desde a época em que eles era editor do caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil. Fiquei extremamente emocionado com suas palavras, ele ajudou a formar meu gosto por literatura e posso dizer que isso mudou minha vida. Fico contente em saber que outras pessoas tinham a mesma conexão emocional que eu tinha com seus escritos. Sei que hoje o mundo se mostra menos encantador com a partida dele e de alguma forma muito estranha, percebo que ele deixou a sua presença marcante em escritos de uma beleza ímpar. Sei que vou levar comigo, pro resto de minha vida, sua influência e forma de ver o mundo. Isso ele soube deixar como ninguém. Um grande abraço. Marcelo.
Gostei tanto do que Eugenia Zerbini escreveu sobre o Daniel Piza que quero ler o livro dela. Tambem eu devo ao Daniel a oportunidade de ter sugerido leituras e exposicoes de arte aos leitores da Gazeta Mercantil. Mas depois de algumas perdas que ainda me doem profundamente fiquei incapaz de escrever como a Eugenia. Obrigada por ter usado palavras que eu usaria.