ENSAIOS
Segunda-feira,
27/1/2003
O homem que comia demais
Sérgio Augusto
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"O homem não necessita apenas de um assassinato. Ele também necessita de uma sólida refeição."
Esta frase é de Alfred Hitchcock. Que também disse esta: "Certos filmes são pedaços de vida. Os meus são pedaços de bolo."
Sempre que a ocasião permitia, ele arrumava um jeito de enfiar metáforas culinárias em suas conversas e entrevistas. Glutão e gourmet, para Hitchcock, comer era tão prazeroso quanto matar alguém diante das câmeras e oferecer à platéia os mais deliciosos bolos deste mundo, envenenados de charme, malícia e perversidade. Prazeroso e calmante. Quando seus pais o deixavam sozinho em casa, o pequeno Alfred aplacava o medo do escuro e eventuais fantasmas atacando a geladeira e devorando fatias de carne assada. "Só aquilo me acalmava", revelou no prefácio de uma coletânea de contos de terror de Edgar Allan Poe. Bulimia e frisson não freqüentam o mesmo capítulo apenas nos compêndios de psicanálise. Na vida e na obra de Hitchcock também sempre andaram juntos.
Os maiores fãs de Hitchcock, François Truffaut e Claude Chabrol, admiravam tanto essa faceta do cineasta que tentaram imitá-lo. Truffaut submeteu-se a uma superalimentação, para ver se engordava. Chabrol preferiu transformar-se em gourmet e, a exemplo do mestre, encher seus filmes de cenas de refeições e referências a acepipes.
O epicurista número um da tela era de tal modo ligado em comidas e bebidas que, segundo as más línguas, não conseguia filmar direito quando submetido a uma dieta. Mas nem em seus filmes ruins deixou de encaixar pelo menos uma tomada com alguma conotação culinária. Em Cortina rasgada, por exemplo, que ele deve ter rodado sob a mais rigorosa dieta, o bandidaço encarnado por Wolfgang Kieling era agredido, numa única cena, com um caldeirão de sopa e uma faca de cozinha, recebendo o seu golpe de misericórdia no forno de um fogão a gás.
Hitchcock adorava um velho desenho de Sennep em que aparecia sentado a uma mesa, preparando-se para cortar uma bobina de filme como se fosse uma pizza, tendo ao lado alguém que lhe serve um prato de salada onde as verduras são fitas de celulóide. "É o mais fiel retrato que fizeram de mim", ironizava. Foi por isso que resolvi prestar minha homenagem ao mestre lembrando exclusivamente de suas cenas com garfo e faca, drinques e restaurantes, piqueniques (havia dois em Rebeca e Ladrão de casaca) e alimentos em geral. Para não falar em referências indiretas, como a fábrica de chocolate onde os espiões de O agente secreto se escondiam.
Um de seus primeiros filmes, rodado em 1928, intitulava-se Champagne, bebida que, 18 anos depois, teria fundamental importância na estruturação dramática de Interlúdio (Notorious). Havia também nele um restaurante, como, aliás, em duas outras preciosidades de sua fase inglesa, Rich and Stranger e Waltzes from Vienna. Perdi a conta de quantos restaurantes Hitchcock usou em seus filmes. Os bandidos de O homem que sabia demais aproximavam-se de James Stewart e Doris Day num restaurante de Marrakesh. Era no Oak Room no Hotel Plaza, em Nova York, que Cary Grant caía nas malhas de James Mason em Intriga internacional. O epicentro do clímax de Os pássaros era a lanchonete de Bodega Bay. Em Topázio, algo de muito importante acontecia no restaurante Chez Pierre, em Paris, onde, aliás, o cineasta tinha mesa reservada para o ano inteiro.
Por também ser louco por trens, Hitchcock volta e meia arrastava seus personagens até o vagão-restaurante. À mesa de um deles, esboçavam-se as tramas de Pacto sinistro e Intriga internacional. Um jantar ao redor de um cadáver oculto - assim poderíamos resumir o plot de Festim diabólico. Várias cenas de Sombra de uma dúvida articulam-se em torno de refeições domésticas, durante as quais fica claro que o apetite de tio Charles (Joseph Cotten) sempre se aguça à simples menção dos assassinatos por ele cometidos na Costa Leste. O alívio cômico de Frenesi são as cenas em que Vivien Merchant prepara e serve exóticos pratos franceses ao seu enojado marido. Por falar em Frenesi, seu serial killer é um verdureiro - como o disfarçado detetive de O marido era o culpado (Sabotage) -, que além do mais esconde o cadáver de Anna Massey dentro de um saco de batatas.
E ainda nem tocamos nos copos de leite de Suspeita e Quando fala o coração. Nem no café com arsênico de Interlúdio. Nem no hadoque de Os 39 degraus. Nem nas costeletas de carneiro (um pouco cozidas demais) que Robert Walker comia em Pacto sinistro, bem antes de estrangular Laura Elliot num parque de diversões, enquanto ela saboreava um sorvete com a voluptuosidade de uma Messalina. Nem na ratatouille que Oscar Homolka devorava quando Sylvia Sidney o esfaqueou mortalmente em O marido era o culpado. Nem no garfo que precipita a cura de Gregory Peck em Quando fala o coração. Nem nas facas de Chantagem e confissão (Blackmail), O homem que sabia demais, Intriga internacional, O homem errado e Psicose. Nem nos ovos de Ladrão de casaca.
E que ovos! Um deles lambuzava uma vidraça, atrás da qual Cary Grant se protegia. O outro, bem, o outro estava bonitinho, fritinho, com a gema no ponto (sunny side up, como dizem os americanos), quando Jessie Royce Landis, a mãe de Grace Kelly no filme, apagava nele um cigarro. Foi um dos mais belos e surpreendentes planos que Hitchcock nos legou. E um dos mais sugestivos do ponto de vista simbólico. O homem que comia demais também sugeria demais. Os lacanianos que o digam.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Bundas, em sua edição de 24 de agosto de 1999, por ocasião do centenário de Alfred Hitchcock.
Para ir além
Sérgio Augusto
Rio de Janeiro,
27/1/2003
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