Dorival Caymmi é pintor. De tanto elaborar paisagens e retratos da
sua Bahia natal nas horas de ócio, chegou a pensar em virar um profissional
das tintas, assim como havia se tornado um artífice dos sons. Só que existe
na sua obra um abismo entre um código e outro, a paleta de tintas e a
quadratura do violão ferido com dedos nus. Sua música lhe forneceu todos os
elementos para pintar, ficando à pintura propriamente dita um mero recurso
da inspiração. Caymmi pode ter se inspirado em determinada personagem ou
fenômeno natural. Mas sua pintura se traduz especificamente em notas,
escolhidas com cuidado e intuição para mimetizar os fatos e as formas do
universo.
Caymmi pode ser designado como artista figurativo no sentido mais profundo
do termo. Para criar as crônicas por meio de versos de inspiração
folclórica, o compositor lançou mão de um vocabulário harmônico mais amplo
que o até então utilizado na música brasileira. As melodias, seu maior
tesouro, nasceram dentro de tais balizas. Caymmi compõe "de ouvido": a idéia
sonora começa por um refrão ou uma trova popular, uma obstinação recorrente
que termina por desencadear um raciocínio mais amplo, mas que retorna à
noção inicial, dentro do esquema A-B-A da forma-canção clássica.
A sua quase centena de canções forma um clube fechado. Elas foram depuradas
ao longo de 70 anos de carreira com um perfeccionismo inédito na música
popular brasileira. Para ingressar na confraria, a canção aspirante precisa
observar pré-requisitos com equilíbrio, ordem, beleza clássica,
regularidade, harmonia liberta das amarras formais, mimetismo natural e um
certo sabor evocativo do folclore e do samba urbano. O teste do criador em
relação a suas criaturas é sempre rigoroso.
O método composicional de Caymmi não se revela à primeira análise. Isso
porque as músicas parecem filhas de Laplace, nascidas por geração
espontânea, de tão naturais soam aos ouvidos. Sim, parecem acontecimentos
vindos diretamente da natureza para nossa sensibilidade, manifestações
involuntárias de brasilidade e baianidade. Na realidade, porém, cada canção
perfeita do compositor sugere uma metodologia e deixa transparecer o gosto
refinado do seu autor. Caymmi utiliza todo tipo de recurso a seu alcance:
tonalidade, modalidade e até cromatismo; só não avançou pelo atonalismo por
uma espécie de apego a uma pressuposta "ordem natural" - que ele respeita
como atmosfera necessária para sua obra. A fronteira máxima está nas escalas
modais, presentes sobretudo na série das "Canções Praieiras". Em geral, as
melodias praieiras são descendentes, adequando-se à sua própria voz grave,
como se usasse uma afinação mesotônica, não-tonal. Seus acordes parecem
soltos, folgados, e vibram numa atmosfera mais modal que tonal. A liberdade
aqui está relacionada à contemplação das forças inexplicáveis da natureza.
Não que ele não conheça, e em profundidade, as grandes linhas da música
erudita e contemporânea. Sua produção é toda enfocada em uma meta: a
perseguição da "função exata da canção". Ele definiu o termo numa
entrevista a Paulo Mendes Campos, publicada no primeiro número da hoje
esquecida "Revista da Música Popular", de outubro de 1953. No artigo, Caymmi
disse ter descoberto tal procedimento aos poucos, lendo a poesia de Jorge
Guillén, Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda, Jorge Amado e Manuel
Bandeira, ouvindo as sutilezas de Debussy, Fauré, Bach, Mozart, Gershwin,
jazz e principalmente do folclore mágico de Salvador da Bahia, a sua querida
Roma Negra, fonte principal de temas e cenários. Para ele, enfim, a
experiência sensorial e intelectual da vida deve ser a fonte da excelência
estética e da precisão.
Não é inutil notar que, naquele ano de 1953, enquanto Caymmi fazia tais
declarações a Paulo Mendes Campos, João Gilberto ainda cantava como
Lúcio Alves e Tom Jobim compunha boleros eruditos no piano-bar (aliás, muito
à maneira de uma das vertentes de Caymmi, a urbana). A senha do material de
Caymmi está no domínio intuitivo da harmonização ao violão, que ele põe a
serviço da poesia. O artista conhece muito as duas dimensões e sabe
assimilá-las num objeto íntegro, indivisível - e que tem uma terceira dimensão mais ou menos oculta: a da cor, inspirada na pintura e traduzida em timbres. Na infância, disse ter
chegado a odiar a música por não conseguir se apoderar de sua essência. Foi
então que escolheu a canção como meio privilegiado de expressão, pois ela
lhe revelou a porção amigável e controlável da arte dos sons. Isso sem levar
em conta sua paixão de melômano, que lhe proporcionaram o impacto do
contraponto de Bach, dos arranjos coloridos do maestro Paul Whiteman para os
acordes de sexta e sétima diminuta de "Rhapsody in Blue", de George Gershwin (Caymmi tinha em casa a gravação, por Whiteman e Gershwin, de 1924), o modalismo dos cantares do candomblé e das obras vocais de Gabriel Fauré e os tons inteiros do "Prélude à l'Après Midi d'Un Faune",
de Debussy. E sem citar os refrões do sambista carioca e urbano Sinhô
(1888-1930), uma das poucas influências que reconhece na música popular.
Diante de tantos referenciais eruditos, há quem possa tachar Caymmi de
elitista? Certamente não. Mas é um clássico cujos ensinamentos têm de
ser considerados pela posteridade. Considera o jazz uma das mais genuínas
manifestações da cultura musical, ainda que ouvisse com desconfiança, em
1953, o bebop ("é uma espécie de dadaísmo musical", definiu com a sabedoria
que sempre lhe foi peculiar). Na época da moda do baião, denunciou o
"comercialismo" e a "falsidade" do gênero lançado no Sul por Luiz Gonzaga.
Nunca credenciou o samba dos morros, vendido como "genuíno".
No que diz respeito à atual música pop baiana, Caymmi não chega nem a
considerá-la música brasileira; afirma que se trata de música caribenha
enxertada em trios-elétricos. Nunca apreciou de fato seus intérpretes, até
resolver cantar suas músicas. Não comungou dos maneirismos da Velha Guarda
e, com sua voz de baixo profundo, forneceu argumentos para que os
compositores das novas gerações assumissem o encargo de interpretar suas
próprias músicas. Como intérprete de Caymmi, nunca houve melhor cantor que
Caymmi. Até porque ninguém salvo ele conseguiria entender o que está por
trás de cada estrutura aparentemente simples.
A riqueza de recursos do compositor pode ser atestada pelo exame de algumas
de suas composições. "O mar", de 1942, canção praieira, dá início à
modulação harmônica à maneira de Debussy (a música foi inspirada na peça
sinfônica "La Mer", do compositor francês). Nos compassos introdutórios,
desenha-se um prelúdio: uma nota alongada em nove tempos, em tonalidade de
fá sustenido maior, deriva logo depois para um fá bequadro, na tonalidade de
fá maior. É um tipo de mutação improvável no sistema tonal clássico e ainda
mais na música popular brasileira - cujos fundamentos harmônicos são
conservadores, baseados na tradição portuguesa e na assimilação por ela da
música tonal africana e na quase rejeição ao modalismo microtonal indígena.
Pois a modulação em "O mar" é um dos marcos iniciais da liberdade harmônica
na MPB. Não chega a ser um atrevimento em termos de história da música
(Wagner, Schumann e Liszt modulam bem mais que Caymmi), mas estabelece um
novo degrau de experimentação.
A "Suíte dos Pescadores" já aponta para a expansão da forma da composição.
Caymmi insere a suíte como recurso de linguagem popular na música
brasileira. Como numa obra erudita, a suíte compreende diversos
"movimentos", ou "estâncias", que se desvelam por meio de cores e
atmosferas, ora paisagísticas, ora psicológicas, revezando gêneros como a
ladainha, o samba, o hino, o recitativo e a ária. O autor atua como um
enciclopedista que recolhe os ritmos e gêneros comuns entre os pescadores da
Bahia dos anos 40.
Caymmi possui um ouvido antropológico, que dá o ar de sua presença em muitos
episódios. Os pregões são recolhidos e transfigurados em músicas como o
samba "A preta do acarajé", armado em ré menor, com uma marcha de dez
acordes básicos e uma melodia quase plana, em escalas descendentes e em
revezamento de compassos binário e ternário. Outro samba "Balaio grande",
igualmente inspirado em pregões, apresenta uma estrutura ainda mais simples,
em dó maior, e melodia descendente. Neste tipo de música evocativa de tipos
urbanos populares, a harmonia se revela simples, retrógrada até.
Mas as composições que fornecem o efeito de inquietação harmônica são
diversas em Caymmi. Expressiva é "A lenda do Abaeté", em mi menor, na qual o
autor promove uma conjuração de harmonias dissonantes, apoiadas no motivo
rítmico ostinato e colcheado e na melodia modal. É difícil, de fato,
encontrar compositor tão lúcido, tão purista e, de certa forma, tão
artíficioso quanto Caymmi.
Mesmo num samba fácil como "Modinha de Gabriela", o engenho se materializa
por meio da estrutura, em díptico (A-B), com um recitativo em Lá menor, em
tempo rubato, e uma "ária", modulada para Lá maior.
O refinamento com a armação da clave as marchas harmônicas é uma constante
na produção "urbana", nos sambas e sambas canções composos no fim dos anos
40.
No samba "Doralice" (parceria com Antonio Almeida), o vocabulário harmônico
é amplo na concatenação de acordes de sétima e na melodia que passeia pelos
meios-tons. Mas a armadura da clave está num simples sol maior, com
dois sustenidos pré-determinados.
O quase-bolero "Não tem solução" (em parceria com Carlos Guinle) é dotado de
um repertório de acordes expandido. A tonalidade de ré maior é rasurada por
acordes de sexta diminuta, sétima e até quintas. O ritmo em 2/2 propõe uma
estrutura mais elástica para o samba-canção.
Mas se é para escolher a canção de Caymmi mais complexa melódica e
harmonicamente, é certametne o samba-canção "Só louco". O tom em mi-bemol é
reafirmado nos dois motivos melódicos: um pontuado, descendente, e outro
arpejado e dramatizado em colcheias, que se concatenam em rubato. Isso em
acordes de sexta e sétima. A razão para tais saltos ornamentais na melodia e
aparente instabilidade dos acordes está na letra, geralmente do próprio
Caymmi. Nas letras, bastante breves e reiterativas, Caymmi representa
situações. Para ele, a missão de uma canção é retratar "a crônica de uma
época, a linguagem de uma gente", como comentou em 1953.
Em "Só louco" e "Não tem solução" faz o retrato íntimo do desiludido
amoroso. "Doralice" manifesta a ironia do amante desprezado. "A preta do
acarajé" e "Balaio grande" fazem painéis de tipos da cultura de rua.
"Modinha de Gabriela" pode ser escutada como o auto-retrato de uma
personagem; um episódio dramatizado, teatral. "O mar" e "A lenda de Abaeté"
descortinam marinhas. A primeira é uma aquarela: acontece em doces
pinceladas melódicas, só quebradas pela modulação, que metaforiza a mudança
da maré. A segunda é elaborada em semitons carregados e repetições em
colcheias pontuadas, como se invocasse as tintas pesadas a óleo. A música em
jogo, entretanto, ultrapassa a idéia da pintura, a metáfora e as análises
gramaticais.
Na obra tão reduzida como intensa de Dorival Caymmi, sílabas e notas se
combinam para formar um organismo artístico de grande durabilidade. Suas
composições pintam retratos e paisagens com a força da natureza adestrada
por uma intuição superior. Esta invoca um figurativismo inaugurador de um
paradigma funcional e eclético de representação na canção brasileira. O
modelo se revelou moderno e ainda está em progressão.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no livreto que acompanha a caixa Caymmi amor e mar, lançada em 2001.
No aniversário de 90 anos de Dorival Caymmi, parabenizo o ensaísta por um estudo inteligente e profundo sobre a obra desse grande poeta da música popular. Os brasileiros são felizes porque Caymmi existe!