O texto a seguir foi escrito em 1991, quando Sérgio Augusto fazia a cobertura diária da Guerra do Golfo para o jornal Folha de S. Paulo. Dada a sua atualidade, e sua relação com o presente conflito no Iraque, o texto é republicado exclusivamente para os Leitores do Digestivo Cultural. (N. E.)
O conflito no Golfo já derrubou pelo menos um mito: a Guerra Fria não acabou. Na melhor (ou pior) das hipóteses, mudará de nome. Sugiro qualquer coisa que lembre hipocrisia. Se os soviéticos decidirem ter voz mais ativa num emergente plano de paz para o Oriente Médio, como ontem se anunciou, a Guerra Fria velha de guerra nem sequer perderá um dos seus dois principais protagonistas.
O sinal mais evidente de que a Guerra Fria não foi removida junto com Muro de Berlim é a sobrevivência da principal regra de conduta diplomática, segundo a qual os inimigos dos nossos inimigos são nossos amigos automáticos. Foi sempre por ela que os EUA nortearam sua política externa. O que explica as espúrias, e invariavelmente nefastas, relações de Washington com gente da laia de Chiang Kai-Shek, Diem, Somoza, Rezah Pahlevi, Strossner, Pinochet, Ferdinando Marcos, Noriega. E Saddam Hussein.
Quando ouço e vejo o presidente Bush comparar Hussein a Hitler e ameaçá-lo com todos os raios do céu, peço logo os meus sais. Hussein já possuía um razoável currículo de sanguinário antes de invadir o Kuwait. Bush era vice de Reagan quando o Iraque usou contra os curdos as mesmas armas químicas que agora ameaça usar contra os soldados aliados. Reagan fez vista grossa, mas Bush deveria ao menos ter anotado no seu caderninho: "Hussein, perigoso, não confiável". Bush já era presidente quando Hussein mandou enforcar o correspondente de um jornal inglês, no começo do ano passado, e nada fez. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.
Reagan não moveu uma palha em favor dos curdos para evitar atritos não apenas com Hussein, mas também com o turco Turgut Ozal, outro odioso ditador, violador contumaz dos direitos humanos, a quem os EUA não se envergonham de apoiar. Ozal não deveria ter lugar numa "nova ordem mundial livre e justa", em nome da qual Bush diz ter apertado o botão da guerra no Golfo. Nem o homem forte da Siria, Hafez Assad, responsável pelo massacre, nove anos atrás, da cidade de Hama, onde mais de 5 mil civis foram dizimados pelas tropas do governo.
Por enquanto, Bush está com Assad e não abre. Como já esteve com Hussein quando ele virou inimigo do maior inimigo dos EUA no Oriente Médio nos anos 80, o Irã de Khomeini. Apavorados com as intimidações de uma guerra santa contra o Ocidente, lançadas pelo fanático aiatolá, os americanos ficaram do lado do Iraque quando Hussein mandou invadir o Irã em 1980. Certo de que o atual "Hitler do Oriente Médio" era o mais confiável fator de equilíbrio no Golfo - o que vale dizer a melhor sentinela para os interesses da comunidade petrolífera - o governo Reagan deixou o Iraque se armar até o último camelo.
A partir do momento em que o Irã ameaçou vencer a guerra, ali por volta de 1983, Reagan também abriu o seu bazar de guerra para Hussein, organizou um embargo no fornecimento de armas ao Irã, trocou figurinhas com o serviço de inteligência iraquiana e, de lambujem, transformou o Iraque no segundo (o primeiro é o México) cliente de cereais subsidiados dos EUA.
Em 1986, Hussein mandou executar sumariamente centenas de iraquianos, a maioria desertores, membros de partidos políticos banidos e estudantes. A 4 de novembro de 1987, o código penal iraquiano sofreu uma emenda estendendo a pena de morte a quem insultasse em público o presidente da Republica, o partido Baas e o governo. Hussein já era um demônio na década de 80. Os EUA o fizeram mais poderoso, ironicamente com a ajuda dos emirados árabes, que emprestaram US$ 40 bilhões ao Iraque ao longo do conflito com o Irã. Hussein não estava mentindo quando disse que os iraquianos derramaram o seu sangue para manter os emires a salvo de uma revolução xiita.
O ministro das Relações Exteriores do Iraque, Tariq Aziz, também não mentiu quando, numa conversa com Milton Viorst, enviado especial da revista The New Yorker a Bagdá, acusou os emirados árabes de acumular fortunas, consumir supérfluos, investir US$ 220 bilhões em países do Ocidente e nada fazer para melhorar a situação dos árabes esquecidos por Alá. Enclave de milionários, o Kuwait foi uma invenção geopolítica do imperialismo britânico para manter os poços petrolíferos da região do Golfo fora do alcance dos turcos, dos alemães e, mais tarde, dos iraquianos. Sua independência, em 1961, foi ditada pelos mesmos objetivos que levaram os EUA a comandar a guerra em curso no Golfo. Na hora de demarcar as fronteiras com o Iraque, os ingleses se guiaram pela posição das palmeiras. Pode?
Não deveria poder. Se outras voltas o mundo tivesse dado, o otomano Kuwait seria um território do Iraque, que há decadas o reivindica, mas só agora levou a cabo o que Israel há muito fez com territórios palestinos. Apoiado pelos EUA. Amigos é pra essas coisas.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo, em sua edição de 1º de fevereiro de 1991.
Adorei o texto, que não tive conhecimento do mesmo na época da
sua publicação.
Se possível, publicar outros textos relacionados para maior análise dos
leitores.
Sucesso.
Gina Paola
Conhecer a história do que se escreve,é, não somente importante, mas fundamento básico, para quem queira escrever artigos e publicá-los. Este artigo do Sérgio Augusto de 1991 mostra um pouco da história das relações promíscuas dos EUA. Quem tem este fundamento não escreve superficialidades ingênuas.
César de Paula.