Não há dúvida: Pablo Picasso e Marcel Duchamp foram os dois artistas de maior influência no século 20. Picasso, pelo conjunto de obras; Duchamp, pela negação da própria noção moderna de obra de arte. Podemos dizer que Picasso produziu arte em padrões clássicos: pintura, escultura, gravura, cerâmica. Enquanto Duchamp, depois de ter abandonado sua notável pintura, iniciou a construção da antiarte. Ambos passaram por seguidas metamorfoses. Em Picasso, as metamorfoses surpreenderam durante meio-século; mas, a inatividade de Duchamp não foi menos surpreendente, nem menos fecunda. Picasso foi o retrato do século 20. Suas mutações freqüentes estiveram pari passu com as transformações da época moderna; desde o fim do Impressionismo até a II Guerra Mundial.
Octavio Paz, no prólogo de Marcel Duchamp o el Castillo de la Pureza, no Brasil editado sob título Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza, editora Perspectiva, coleção Elos, em tradução de Sebastião Uchoa Leite, diz haver encarnações e profecias em Picasso, quando o compara com as necessidades urgentes do século 20. E Paz conclui sobre Picasso: “Encarnações: em suas telas e em seus objetos, o espírito moderno se torna visível e palpável; profecias: em suas mudanças, nosso tempo só se afirma para negar-se e só se nega para inventar-se e ir mais além de si. Não um precipitado de tempo puro, não as cristalizações de Klee, Kandinsky e Braque, mas o próprio tempo, sua urgência brutal, a iminência imediata do agora”.
Picasso busca a vertigem da aceleração; Duchamp opôs à vertigem da aceleração de criar, o retardamento. Na Caixa Verde, o francês anota: dizer “retarde” em lugar de pintura ou quadro. E acrescenta: “pintura sobre vidro se converte em ‘retarde’ em vidro, mas ‘retarde’ em vidro não quer dizer pintura sobre vidro”. Esta frase explica o método de Duchamp, se a pintura é a crítica do movimento, o movimento é a crítica da pintura.
Por que a escolha desses dois artistas neste ensaio? Porque são parâmetros, pólos opostos e limites de todos os artistas do século 20, além de precursores da criação artística do século 21 e a crise que recém se instalou nas artes visuais de linguagem contemporânea. Voltemos aos dois gênios.
Picasso é o artista do devir e o que está passando, a um só tempo, do hoje e do arcaico, o artista que mudou tudo para que tudo restasse no mesmo lugar. O artista veloz que se permite ser do século 20 e de todos os séculos, sem deixar de ser do agora. Picasso foi um movimento que se fez pintura, mais que todas as escolas do século 20; foi e é o pintor-tempo.
A pintura de Duchamp, ou sua “retarde”, é de análise, de decomposição, o reverso do artista veloz. Se as figurações de Picasso saltam veloz do espaço imóvel da tela; nas obras de Duchamp, o espaço caminha e se incorpora, e finda como máquina filosófica e hilária, e com ironia refuta todo e qualquer movimento com o retardamento. Como conclui Paz, a metalinguagem de Duchamp baseia-se na metaironia.
As telas de Picasso são imagens; enquanto as obras de Duchamp são uma reflexão irônica sobre a imagem. Picasso pintou dentro da tradição da pintura, como a arte sempre foi; Duchamp fez antiarte. Tentou criar uma arte, partindo do pressuposto de como seria a arte, caso não existisse do modo como a sabemos; como se tudo começasse a partir dele. Se Picasso for uma tese, Duchamp será sempre sua antítese.
Picasso foi artista de fecundidade rara e inesgotável, enquanto as raras telas de Duchamp não passam de meia centena, criadas em menos de dez anos, depois disso foi jogar xadrez e tornou-se mestre, um fato raro para quem começou a jogar tardiamente, como foi o seu caso.
O que Duchamp produziu, depois de 1913, ao deixar a pintura-pintura pela pintura-idéia, foi o início de um conceito novo de arte – a antiarte. A partir daí, Duchamp criou uma obra sem obras. Não há mais telas, mas objetos, como o Grande Vidro ou La Mariée mise a nu par ses celibateires, même – que é instalação, a primeira que se tem notícia, abandonada em 1923, sem terminar. Antes disso, Duchamp criou os ready-mades, objetos industriais dos quais se apossou e os indicou como obras de arte. Havia os ready-mades assistidos, nos quais interferia, como a roda de bicicleta, na qual pôs um banco como suporte; e havia os ready-mades plenos, aqueles que sua mão sequer tocou. Depois disso, alguns gestos esporádicos e um profundo silêncio.
Picasso e Duchamp foram mais destruidores do que construtores. Picasso destruiu a forma, usando da linguagem tradicional da arte, com técnicas diversas e diversificadas. Duchamp criou uma metalinguagem que, no fundo, quer mesmo é destruir a arte, em prol da antiarte, aproveitando-se de que as artes, inclusive as visuais, findam em zona invisível e obscura, daí sua subjetividade.
Se Picasso usou da paranóia para destruir a forma, Duchamp destruiu a definição de arte de maneira esquizofrênica, sem deixar margem a qualquer tipo de reconstrução. Nestes dois criadores do século 20 está o cerne da crise por que passa a arte hoje, seja a pintura, seja a instalação, sejam os novos meios de produzir arte.
Duas definições de arte foram destruídas; a de Hegel: arte é a manifestação do espírito que o próprio espírito vem a superar; e a de Heidegger: arte é a projeção da verdade do ser, como obra. Em nenhuma dessas duas definições cabe a arte dita contemporânea.
Nota do Editor
Texto inédito, especialmente redigido pelo autor, para o Digestivo Cultural. Alberto Beuttenmüller é poeta, jornalista e crítico de arte (membro da AICA).
Caro Alberto,
li hoje seu texto muito precioso. só queria comentar algo que creio ser uma generalização. a frase final, de que as categorias hegelianas e as heidegerianas não cabem na arte contemporânea. se partimos de
"do espiritual na arte" de kandinsky e chegarmos à arte abstrata, afinal o que temos? uma busca da síntese espiritual que a linha, o movimento e a cor podem proporcionar. isso é uma postura que remete ao pré-renascimento e a uma obra como "da arte e do belo", do pensador católico francês do sec. XIX Lamennais.
claro que no caso de picasso e duchamp você está correto. apenas creio que nem toda arte contemporânea foi devedora destes dois. a arter abstrata, posterior ao que de mais relevante os dois fizeram, é o caso. e há outros casos. o que acha?
abraço,
jardel
Caro Jardel: não vamos confundir arte moderna com pós-moderna (a partir de 1960). Picasso, Kandinsky et caterva não mais influenciam a arte atual, a arte de Linguagem Contemporânea. Esta está toda baseada em Duchamp, o causador de idéias geniais, mas também o causador da crise que se instalou na arte atual.
A maioria dos artistas em atividade não está preparada para a arte conceitual de Duchamp, mas procuram imitá-lo. Por isso, as instalações mal resolvidas, os vídeos de arte sem qualquer sentido, que vemos nas bienais. A Arte está deixando de comunicar-se com o fruidor, o qual passou a ser um neo-bobo, como diria o nosso FHC. Abraço. AB.
Prezado Alberto Beuttenmüller,
Gostaria apenas de sanar uma dúvida. A primeira instalação nao foi Merzbau-Kurt Schwitters como afirma Ferreira Gullar em Argumentacoes contra a morte da arte?
Abracos do Rodrigo Vivas e parabens pelo artigo
Não respondo a pessoas que se escondem por trás de nicknames. Meu caro Rodrigo:
O Gullar está certo do ponto de vista oficial da História da Arte. Não havia instalação,quando Duchamp fazia o Grande Vidro.Se vc olhar com atenção para o Grande Vidro verá que foi o precursor das instalações de hoje. AB
Que beleza de texto: interessante e fundamentado. E seus comentários também. Parabéns a todos que entraram nessa discussão. Mas para mim cabe uma pergunta, por pura curiosidade: "Estamos prestes a uma girada de roda?" Digo: se os movimentos artísticos vêm e vão ao longo dos séculos, e atualmente sinto que todos concordam que a arte contemporânea está em crise, será que não estamos prestes a uma retomada do passado, com um novo olhar, assim como o Renascimento foi, de certa forma uma retomada da antiguidade clássica? Qual seria o próximo passo? Voltar a valorizar mais o figurativo? O que acham? Abraços a todos.