ENSAIOS
Segunda-feira,
6/10/2003
Paulinho da Viola: o melhor do Rio
José Nêumanne
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Houve um tempo - e não faz tanto tempo assim - que se chamava o Rio de Janeiro de Cidade Maravilhosa. Não se tratava apenas do resultado espetacular do sucesso da marchinha de carnaval de André Filho. Não, era o resultado de toda uma imagem construída por belas paisagens com lindas canções, falando de sol e mar, o amor, o sorriso e a flor. O que poderia parecer uma desvantagem era visto como um benefício: os pobres, obrigados a subir as encostas dos morros para erguer suas moradias precárias com péssima qualidade de vida, na verdade estavam morando "mais pertinho do céu". Essa mentalidade - definida jocosamente como "macumba para turistas", muito tempo atrás, pelo poeta paulista Oswald de Andrade - teve seu símbolo máximo no filme Orfeu do Carnaval, do francês Marcel Camus.
Atualmente, apesar de se ter tornado comum até fazer turismo nas favelas cariocas, essa mentalidade está completamente fora de moda. O Rio deixou de ser a "cidade maravilhosa" desde que os morros deixaram de ficar "pertinho do céu" e se tornaram a própria forja do inferno depois que passaram a ser dominados pelos traficantes de drogas. Ao contrário daquele tempo em que era o símbolo da beleza e do charme, da saúde e do prazer, a antiga Capital Federal tornou-se sinônimo do perigo e da dor.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Nem o Rio daqueles "anos dourados" era o Éden transplantado para os Trópicos nem o de hoje em dia se transformou súbita e exclusivamente numa sucursal do inferno. Da mesma forma que há meio século, também havia feiúra e dor às margens plácidas da Baía de Guanabara, há ainda hoje recantos de paz, beleza e harmonia numa cidade sitiada pela violência. A cineasta Izabel Jaguaribe mostra isso com simpatia, sensibilidade e competência em seu documentário Meu Tempo É Hoje, sobre o sambista Paulinho da Viola.
O filme retrata com vigor e mão leve a vida de um príncipe. Paulo César Baptista de Faria é um carioca exemplar. Filho de César Faria, violonista do conjunto Época de Ouro, que fez história no choro sob a liderança de Jacob do Bandolim, compôs e interpretou sambas geniais e canções que entraram pela porta da frente nas galerias da História de nosso cancioneiro popular. Com seu estilo suave de cantar, encanta o público. E com seu porte de cidadão reto e cumpridor de seus deveres, dá um exemplo de ética numa sociedade corrompida pela necessidade da ascensão social obtida por meio da competição a todo custo e permanentemente seduzida pelos apelos vulgares ao prazer fácil de um onanismo narcísico. Com seu taco de sinuca, suas artes de mestre marceneiro e suas manias de montador de engrenagens, tanto as de relógios quanto as de motores de automóveis, Paulinho da Viola transporta o espectador do documentário em que sua vida e sua obra são o centro a um mundo pacato, onde os valores são o sossego e a solidariedade, opondo-se à pressa egocêntrica que o cerca.
Pode um crítico mais severo de cinema encontrar no documentário lacunas de informação, como, por exemplo, o pouco destaque dado a um grande parceiro de vida e música do protagonista, o poeta Hermínio Bello de Carvalho. Mas esses eventuais defeitos são compensados pela descoberta que a câmera faz de um burgo oculto que se esconde atrás da névoa de sangue que omite a visão completa da antiga Cidade Maravilhosa. A desprezada zona norte, isolada e esquecida da nata da sociedade que festeja e badala nas Praias de Copacabana, Ipanema e Leblon, empresta sua alma comovida e generosa ao filme nos encontros do sambista com seus colegas de arte e seus familiares em torno de peixadas e rodas de samba, na quadra da Portela, no sítio de Zeca Pagodinho no Xerém e na intimidade do lar do cantor. É uma alma que "canta", como no inspirado Samba do Avião, do maestro Tom Jobim, e que também chora e faz chorar, mas um choro suave e terno, como aqueles de Pixinguinha, ídolo maior do País e de seu príncipe negro, que o filme revela.
Quando o coração de Paulinho da Viola se deixou levar pelo rio que passou pela vida dele e de todo o seu público fiel, a Cidade Maravilhosa era uma espécie de noiva encantada e encantadora do País inteiro. Nestes tempos de chumbo em que agora vivemos, o moço vem nos aconselhar a fazer como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar. Como o intérprete aprendeu na letra do samba de Wilson Batista, que gosta de cantar, seu tempo é seu mundo. Ou, melhor ainda, como ele próprio se expressa se dirigindo a todos nós numa lição perene sobre a evolução e a transitoriedade da vida:
"Eu não vivo no passado, o passado vive em mim."
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno2" do jornal O Estado de S.Paulo.
José Nêumanne
São Paulo,
6/10/2003
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