Citar vem do latim: citare. Referir ou transcrever
(um texto) em apoio ao que se afirma, segundo o Aurélio. Mas, se a língua favorece os tagarelas e soneteiros, os que falam pelos cotovelos e abusam da linguagem antisintética, quantas palavras imprecisas, ditas ao vento, são necessárias para descrever o silêncio? "Sobre aquilo de que não se pode
falar, deve-se calar", sintetizou o filósofo Wittgenstein.
Dicionário das Citações (Ed. Martins Fontes) é um
livro que descreve o pensamento de Homero a Goethe, de
Shakespeare a Beckett, de La Rochefoucauld a Oscar Wilde,
entre outros. Coletânea de aforismos e epigramas, máximas e
pensamentos, sentenças e ditos memoráveis.
A tradução não é um primor. Também pudera, traduzir é trair.
Tudo na vida é por aproximação, da matemática ao amor. E pode
crer, "o que hoje é demonstrado, um dia foi apenas
imaginado", como afirma o poeta Blake.
Toda citação maior é uma espécie de pensamento
lúcido, fragmento condensador de uma possível beleza-verdade,
farol que ilumina o mundo em ruínas. A citação é nuvem "onde
o sol cala", como no "Inferno" de Dante: "No meio do caminho
desta vida/ me vi perdido numa selva escura,/ solitário, sem
sol e sem saída".
Jorge Luis Borges era um escritor pródigo em
citações. Rescreveu argumentos, lendas e fantasias deste e de
outros séculos. No ensaio intitulado "Livro", Borges anota
que, "certa vez, perguntaram a Bernard Shaw se ele acreditava
que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu:
Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo
Espírito Santo". A Bíblia não é nada mais do que um mosaico
de citações, sermões e parábolas.
Muitos leitores acreditam que os citadores são
pensadores originais. Lucrécio achava que "nada pode ser
criado a partir do nada". Já Andre Gide, por sua vez, diz
que, "todas as coisas já estão ditas, mas, como ninguém
escuta, é preciso recomeçar sempre". A citação é uma
lembrança do que "poderia-ter-sido", do "não-mais" ou
do "tarde-demais". "O que não é destino é frivolidade", diz
Ortega e Gasset.
Poetas, filósofos, pregadores e animadores sempre
foram mestres em citar o pensamento dos outros. Mas há quem
use as sentenças para ter uma visão do mundo ou para
simplesmente levar a vida. No entanto, "um fragmento tem de
ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do
mundo circundado e perfeito e acabado em si mesmo como um
porco-espinho", como definiu Friedrich Schlegel.
Erza Pound, que ditou as regras usadas pelos poetas
concretos, era um citador dos tempos medievais, um reinventor
dos caracteres (ideogramas) orientais. Vivia com o nome de
Confúcio e Bashô na ponta da língua. O visionário Nietzsche
desenvolveu toda a sua filosofia a partir dos pensadores
gregos. Seu pensamento filosófico é uma trama de fragmentos,
máximas e relâmpagos. Para ele, "aquele que escreve em sangue
e em máximas não quer ser lido, mas aprendido de cor."
James Joyce, em Ulisses, disse uma frase que ficou
célebre: "depois de Deus, Shakespeare foi quem mais criou". A
obra de Joyce serviu como fonte de idéias, e ainda recurso
estilístico para a construção da obra de Samuel Beckett. Por
sua vez, Joyce bebeu nas águas da memória de Proust.
A República, de Platão, outro exemplo de livro de citações, é uma narrativa, discussão dialética encabeçada por Sócrates a um auditório anônimo. Segundo Goethe, a dialética é um desenvolvimento do espírito de contradição, dado ao homem para que ele aprenda a reconhecer a diferença das coisas.
A citação nos leva a um livro, a um lugar qualquer, a
um tempo exato. Desafia a realidade, ensina a ver o mundo com
os olhos dos outros e a conhecer as coisas do nosso jeito de
ser. "Ser ou não ser, eis a questão", pergunta o poeta. Já
Freud afirma que "sou onde não penso". "Nada do que é humano
me é estranho", pensa Terêncio. Esse era um dos aforismos
preferidos de Karl Kraus, especialista em citar para
ironizar.
Um aforismo é a síntese do conhecimento. No entanto,
segundo Kraus, um aforismo jamais diz a verdade; ele sempre
diz uma meia verdade, ele sempre diz uma verdade e meia.
Senhor Maciel, um aforismo é uma mentira bem dita, bendita mentira que se espraia no espírito na espécie de dinheiro valioso do espírito. Parabéns pelo seu texto.