É a típica crônica da morte oculta. O cantor Floriano Belham morreu no Hospital Santa Lúcia, Rio de Janeiro, dia 20 de setembro de 1999, de choque septicêmico decorrente de uma infecção pulmonar. Nenhum jornal ou revista noticiou o fato, embora Belham merecesse referência entre os melhores intérpretes ativos nos anos 20 e 30 – a denominada "época de ouro da música popular brasileira". Belham foi um menino-prodígio. Assim como o cantor Mário Reis já foi apelidado de "a nossa Greta Garbo", por ter-se retirado da cena do show business, Belham é o Mickey Rooney autóctone, a criança que prolongou a infância e optou pela segurança e riqueza na vida adulta, tornando-se referência enciclopédica de um ontem artístico distante. Soube pular da glória antes de ela o tragar em definitivo. Conviveu com os principais astros e estrelas da Era do Rádio brasileira. Ei-lo perpetuado na infância do estrelato nacional, em dezesseis canções que gravou para os selos Victor e Odeon.
Ao enterro, no cemitério do Caju, compareceu um único fã – fato que surpreendeu a viúva, Teresa, e os três filhos, os empresários George, Eduardo e Floriano Júnior. A família não contava com os pêsames de um admirador do cantor que encerrou a carreira em 1936, época em que Orlando Silva ainda trabalhava no coro da Victor e Noel Rosa, amigo de farras de Belham, estava vivo. Isso só pode ser explicado pelo "pathos" da reprodução do som, que impregna a memória afetiva pela insistência das audições repetitivas. Os discos mais esquecidos dos músicos mais obscuros continuam a tocar em algum lugar. Belham orgulhava-se de ter sido a primeira criança do mundo a ter gravado um disco profissional. Sua voz era de criança quando fez sua primeira gravação, para a RCA Victor, em 1929, lançada no ano seguinte. A temática retratava situações infantis. No lado A do disco, interpretava "Mamãezinha está dormindo", de André Filho (autor de "Cidade maravilhosa" e órfão quando menino), canção que mostra um menino fascinado pela imagem da mãe que ele julga estar dormindo numa cama cheia de flores. A música descreve o processo da descoberta da morte por uma criança. O lado B traz a "Canção do ceguinho" (Cândido das Neves), sobre o menino que se lamenta por Deus não lhe ter dado o direito de contemplar a lua.
Revelou-se um sucesso instantâneo. Floriano da Costa Belham comoveu o Brasil com sua voz aguda e o timbre aveludado de criança, características que se mantiveram até a idade de 22 anos. Como até então era muito baixo – 1,40 metro de altura – e franzino, o rosto e a voz de garoto, passava por mais jovem. Por instinto de sobrevivência, prosseguiu até tarde na cena musical como um Peter Pan, entidade de eterna infância, só que contando histórias trágicas em canções de autoria dos maiores compositores de seu tempo, como, além dos já citados, José Luiz de Morais, o Caninha, Roberto Martins, Sylvio Caldas e Orestes Barbosa.
O selo de sua infância foi a orfandade. Nascido no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, em 3 de fevereiro de 1913 em uma família tradicional, perdeu a mãe, Maria Luíza, aos 3 anos. Seu pai, João Henrique Belham, funcionário do Ministério da Fazenda, era filho do inglês William Belham, al mirante da Marinha Inglesa, herói da Guerra do Paraguai. Durante o conflito, o oficial se casou com uma índia guarani. O casal terminou por se estabelecer no Rio. O abrasileiramento se completou com a mudança do acento do sobrenome. "Belham" passou a ser pronunciado como se lido em português, "béliã".
Floriano foi criado pela tia, irmã de seu pai, Leopoldina, professora residente na ilha de Paquetá. De temperamento forte, o pequenonão se submetia a ordens. Leopoldina deixava até mesmo que o menino fumasse. Seu cigarro favorito era Liberty Ovaes, sem filtro, o mesmo do amigo Noel Rosa. Fumou três maços por dia até completar 80 anos. Foi quando o médico detectou um enfizema pulmonar e o proibiu de manter o vício. Floriano Jr. atribui a degeneração física recente do cantor ao cigarro.
Mas o tabaco não prejudicou a voz do menino. Percebeu que a tinha aos 10 anos e passou a se apresentar nas festas e reuniões de sua escola, o tradicional Colégio D. Pedro II. Num espetáculo em benefício a crianças órfãs tuberculosas em Paquetá, foi ovacionado. Ao show comparecia o empresário teatral Armando Alvim, que convidou o menino a integrar sua companhia, chamada de Centro Artístico Regional. Corria o ano de 1927 e Floriano, aos 14 anos, ia ganhar um cachê alto para a época: 50 mil réis, quantia somente reservada aos grandes medalhões. Iria se apresentar como "O Menino Floriano Belham". Em um caderno onde fez anotações autobiográficas, datado de 1988, recém-descoberto pela viúva, o cantor conta como foi seu início na companhia: "Lá conheci Rogério Guimarães, violonista canhoto, apresentado e conhecido como o Rei do Violão. Sempre cantei nas minhas apresentações acompanhado pelo Rogério e pelo Carlos Lentini." Este era também violonista. Belham relembra, então, diversos músicos com quem se apresentou na companhia, como João Martins – "um gênio do bandolim", segundo ele –, a cantor Ruth Franklin e os cantores Augusto Calheiros, Lourival Montenegro, Arthur Costa e Francisco Alves. As anotações do cantor revelam que a Companhia era itinerante e costumava se apresentar em duas sessões diárias em temporadas de quinze dias a um mês. "Cantou lá também um menino como eu, Nelson Vargas, que tinha uma bela voz de tenor. também fez parte dessa companhia o maior seresteiro do Brasil – Sylvio Caldas!" A fama do cantor-menino sobreviveu à da Compahia, que se extingiu em 1928. No ano seguinte, Rogério Guimarães continuava a se apresentar com o garoto. Francisco Alves, já então a divindade vocal suprema do Brasil, ouviu o ensaio da dupla nos camarins do Teatro Lírico e perguntou a Belham se sabia cantar alguma música de seu repertório. O menino disse que sim: "A voz do violão", o último êxito do cantor; e a cantou. Alves gostou tanto que falou a Guimarães: "Qualquer dia desses vou mandar esse garoto bisar por mim 'A voz do violão'!". De acordo com o diário de Belham, Rogério ficou feliz, mas observou: "Você não acha, Chico, que é muita responsabilidade para um menino?" O cantor respondeu: "Levo fé neste garoto!"
Dois ou três dias depois, Alves finalmente cumpriu o prometido. Nas memórias, Belham se extasia: "Estávamos atuando no teatro Lírico, famoso teatro de ópera, onde Toscanini estreou em regência e onde Caruso e outros astros famosos artistas líricos se apresentaram". Casa lotada, Francisco Alves atacou de "A voz do violão". Como de hábito, a platéia veio abaixo e pediu bis. Era homem de palavra, agradeceu e anunciou: "Agora vou fazer uma surpresa para vocês. Vou trazer um menino para bisar por mim 'A voz do violão'!" Belham disse ter sido "pegado de surpresa" porque o cantor não havia avisado que seria naquela noite. "Contudo recebi o chamamento com a maior naturalidade e ingenuidade", narra. "O Rogério Guimarães estava sentado numa cadeira no meio do imenso palco do Lírico. O Chico Alves pediu outra cadeira e o seu violão. Sentou-se também e mandou que eu me colocasse entre ele o Rogério." Rogério solou a introdução "e eu, O Menino Floriano Belham, comecei a cantar". Notou nervosismo nos dois veteranos. Alves lhe recomendou, "nos momentos de maior responsabilidade": "Respira!" Antes de terminar, notou espectadores se levantando para saudá-lo. "O velho Chico, entusiasmado, pegou-me no colo, abraçou-me e beijou-me." Teve que cantar a música mais duas vezes. "Foi uma das maiores glórias da minha curta vida artística!"
Nos estertores do ano de 1929, era chamado ao estúdio da Victor, acompanhado por Guimarães, para gravar seu primeiro disco. Em depoimento ao historiador Abel Cardoso Júnior, Belham afirmou que Mr. Evans, diretor artístico da gravadora, sugeriu que o menino imprimisse mais dramaticidade à gravação, fazendo de conta que via sua mãe morta.
O grande sucesso fez com que os compositores lhe oferecessem mais música inédita e aparecessem seguidores. Algumas crianças passaram a gravar. Em 1930, Dircinha Batista estreou como cantora infantil. Julinha do Amaral gravou uma toada em 1936. Indicado por Belham como seu sucessor, Jonas Tinoco registrou a "Canção do jornaleiro", de Heitor dos Prazeres, com grande sucesso. Era 1933, ano em que Belham, já com a voz adulta, atuava no Programa Casé, na Rádio Philips, gravando diversos sucessos, entre eles o samba "Saudades do meu barracão", música de estréia de Ataulfo Alves, em 1935. Integrava o coro um estreante: Orlando Silva. Freqüentador do Café Nice, ponto de encontro da classe artística, entrou em contato com os astros da época, entre eles Pixinguinha, Orestes Barbosa (marido de sua professora em Paquetá, dona Regina), a dupla Joel & Gaúcho, Castro Barbosa, os irmãos Hélio e Noel Rosa, Luiz Barbosa ("para mim o verdadeiro criador do samba-de-breque"), Moreira da Silva, Cyro Monteiro, João Petra de Barros e Aracy de Almeida ("criatura simples, pura mesmo, não me lembro de ter visto a Aracy bebendo ou fumando", escreve no caderno). Em 1934, comprou seu primeiro carro de Francisco Alves. Ao lado de Noel, disse ter feito farras memoráveis. Como o "Bernard Shaw do Samba", criava paródias. Ficaram famosas as de "Amélia" e "Touradas em Madri".
O intérprete se dava ao deleite de recusar canções para integrar seu repertório, entre elas "Último desejo",de Noel Rosa, e, de Ataulfo e Mário Lago, "Amélia". Não conseguia abstrair e filtrar o valor delas, pois eram cantadas diretamente por seus autores. E se arrependeu.
O derradeiro sucesso foi a valsa "Mariza", de André Filho, em disco lançado em junho de 1936. Nesta época, resolveu mudar radicalmente de atividade. Sua vida ganhou um aspecto de impressionante normalidade. Tornou-se fiscal do imposto de consumo (auditor fiscal) da Fazenda Federal, ganhou porte de arma e viajou pelo Brasil, caçando inadimplentes. Mudou-se para Vitória no início da década de 40. Lá, casou-se com Teresa. De volta ao Rio, formou-se em Direito em 1955. Nasceram os três filhos. Aposentando-se em 1961, decidiu transferir a família para Paris, para conhecer a Europa. De 1968 a 1973, mudou-se com a família para Los Angeles, para cuidar da educação dos filhos.
Ainda que exonerado da vida artística, nunca deixou de cantar para os amigos e nas reuniões familiares. Em 1976, chegou a gravar uma fita com canções clássicas. acompanhado pelo violonista João Pereira Filho. Mostrava a mesma voz lírica que exibia no fim de sua carreira. A nostalgia do auge artístico o levou a começar a escrever memórias.
Floriano Belham revelou-se cantor de imenso engenho. Na maturidade, aprimorou o estilo seresteiro, que teve em Sylvio Caldas o protagonista (Belham tinha voz mais bonita que Caldas). Outro traço nas suas gravações é registrar, num caso único, mudanças de voz profundas em um cantor: soprano na infância e adolescência, tenorino aos 20 anos e logo barítono; em todos os estágios, manteve o timbre limpo e uma alta dose de inspiração. Mais do que obra completa, Belham legou uma virtualidade. Foi, talvez, o maior cantor que o Brasil deixou de ter.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil.
Caro Giron, só agora vi este texto seu. Está mais amplo do que a enciclopédia Alvim, por exemplo. Parabéns! Temos que combinar retorno a Minas. Abraços.
Caro Giron, é com muita emoção que volto a ler seu excelente texto sobre meu querido pai. Parabéns pelo precioso trabalho de pesquisa com o qual você evocou toda uma vida. Um abraço e obrigado!