No antigo Egito havia pragas terríveis, como ratos e gafanhotos; nós temos celebridades televisivas. Convidadas, indistintamente, para tudo, até para eventos onde em princípio deveriam se sentir mais deslocadas do que um vegetariano numa churrascaria ou o papa numa bacanal, não perdem uma boca-livre, são pragas onipresentes, “parasitas do filé-mignon”, para usar a deliciosa qualificação de Robert Benayoun para certos comensais da burguesia parisiense. Nem à festa, de resto excelente, que encerrou a última Bienal do Livro do Rio, meses atrás, elas deixaram de comparecer. Algumas eram merecidamente célebres, dignas da estima e admiração a que fazem jus os expoentes de qualquer profissão. Outras encarnavam à perfeição aquilo que levou Emily Dickinson a definir a celebridade como a “punição do mérito e o castigo do talento”. Como de hábito, as segundas superavam as primeiras por larga margem.
Tive o infortúnio de adentrar o palacete do Parque Lage exatamente na hora em que ali chegava uma dupla de atores globais. Chegava é modo de dizer. Assim como os baianos não nascem, estréiam, os atores de televisão não chegam, irrompem – e desfilam. À minha frente, um prestigiado mas recatado escritor – no máximo, portanto, uma “cerebridade” – passou anonimamente pelas câmeras de TV, fotógrafos e repórteres amontoados à entrada do palacete. Embora estivesse num rega-bofe que parecia e merecia ser mais dele que de um ator apenas vistoso e uma atriz somente bonita, não fora reconhecido pelos gafanhotos da mídia, totalmente absortos – absortos, não, mesmerizados – pelas duas celebridades televisivas. Mesmerizados e apavorados com a perspectiva de um pito ou coisa pior – quem sabe, até, uma demissão – caso o veículo concorrente conseguisse mais e melhores flagrantes e declarações dos famosos presentes.
Não tenha dúvida: a mídia é a maior responsável pela patética e jeca vassalagem a celebridades que, a partir da década de 90, virou um flagelo mundial. O jeca é uma cortesia de Paulo Francis, que sentia furibundo desprezo pela fama imerecida, por celebridades forjadas pela mídia, criaturas que-são-famosas-porque-são-famosas, que nada fizeram de meritório para o destaque que a imprensa lhes dá. Ou então fazem coisas que a imprensa, por uma questão de decoro, deveria ocultar de seus leitores.
(Se você pensou em Narcisa Tamborindeguy e quejandos, meus parabéns.)
“Sabe por que os editores de jornais e revistas dão tanta luz a essa gentalha?”, comentou comigo Paulo Francis, pouco antes de morrer. “Porque todos eles, com raras exceções, são jecas e deslumbrados, que ainda ontem só andavam de ônibus, vestiam terno da Ducal, achavam o fino tomar vinho rosé, e comeram o seu primeiro patê aos 25 anos”. Evidente que me lembrei do Francis ao chegar à festa da Bienal do Livro.
“Só topei vir a esta festa porque achava que, ao menos aqui, encontraria apenas gente que escreve e gosta de ler livro e não aqueles exibidos de sempre”, resmunguei ao ouvido de minha mulher, partindo do pressuposto de que a dupla de atores sob a mira dos flashes jamais abrira um livro na vida – pura aleivosia, pois é sabido que ambos não só abriram mais de um livro na vida como coloriram todos eles.
De qualquer modo, ali, definitivamente, não era a praia deles. Nem de outras figurinhas globais, que passaram a noite assediadas por repórteres e fotógrafos da Caras e demais bíblias do voyeurismo mundano, que tampouco deveriam estar ali. Seria injusto chamá-los de intrusos, já que, afinal de contas, haviam sido convidados, não eram penetras. Mas por que convidá-los? Por que submeter nossos poetas e escritores ao constrangimento de se verem ofuscados por convivas sem qualquer lastro literário? Tudo bem que escritores, poetas e críticos literários fossem preteridos e esnobados na entrega do Prêmio Sharp ou no aniversário da Vera Fischer na boate LeBoy, mas numa festa dedicada ao livro, convenhamos, é sacanagem. Ainda mais no Parque Laje, locus classicus não só de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade mas também, por tabela, de Mário de Andrade.
Embora tudo neste país pareça girar em torno da televisão, que peças teatrais – e até filmes de ousada feitura, como Lavoura Arcaica – só consigam financiamento com um ou mais atores de TV no elenco, tinha para mim que a indústria editorial, pelo menos ela, estivesse isenta dessa fatalidade. Com base em quê? Com base na certeza de que ler e escrever exigem um tipo de atenção e ativam uma parte do cérebro que não são o forte de quem dedica a maior parte do seu lazer ao consumo de imagens televisivas. Por ser a televisão, em suma, a janela para o mundo dos iletrados e semiletrados. Agora, ando cheio de dúvidas. Será que também para o livro não há salvação fora do vídeo? Ou será que estamos sendo apenas tapeados por editores, jornalistas e promoters chegados a uma tietagem e empenhados na transformação da literatura em show business?
Claro que não creio na hipótese de uma tentativa de evangelização subliminar de atores e atrizes, articulada por promoters. Não consigo imaginar um garotão sarado do elenco de Malhação passando numa livraria depois da ginástica para comprar o livro de ensaios de um autor que conhecera (e achara “um cara muito legal”) na festa do Parque Lage. E se isso acaso acontecesse, duvido que o livro fosse lido até o fim. Como até hoje duvido que Marilyn Monroe tenha de fato lido e apreciado Ulisses, de James Joyce, como nos quis fazer crer uma foto de publicidade da Fox, distribuída à imprensa em meados dos anos 50 [imagem acima]. Joyce, aliás, não fazia a menor falta na vida e na carreira de Marilyn, deusa de outra galáxia, e, a se acreditar nos que a conheceram, muito mais inteligente e bem informada do que 90% das atrizes globais. Seu cérebro, diga-se, era mais pesado que os de Walt Whitman e Einstein.
Apesar dos pesares, alguma vantagem nossos autores teriam se alçados à categoria de celebridades, se inseridos, com todas as benesses, na “sociedade do espetáculo”. Poderiam, por exemplo, ser contratados para estrelar comerciais e animar bailes de debutantes, os dois mais corriqueiros e rendosos biscates dos astros televisivos e esportivos. E ainda que lhes oferecessem bem menos do que atores e atletas costumam embolsar como garotos-propaganda e mestres-de-cerimônias, já estariam no lucro, pois só de direitos autorais nem meia dúzia de escritores brasileiros, se tanto, consegue viver. Tamanho delírio, contudo, não tem a menor chance de materializar-se num país como o nosso, onde a palavra escrita continua sendo uma mercadoria desvalorizada, justamente porque o hábito da leitura não faz parte da cesta básica de interesses daquela fatia da população com dinheiro no bolso para gastar em livrarias. Esses só lêem os best-sellers computados pela Veja, e olhe lá.
Até algum tempo atrás, uma resenha elogiosa na Veja era um passaporte para a consagração. Talvez ainda seja, mas já ouvi mais de um editor dizer que troca uma resenha na Veja por uma entrevista no programa do Jô Soares. Credita-se ao Jô Onze e Meia o mesmo peso que nos EUA tem o talk show de Oprah Winfrey, comprovada fazedora de best-sellers. Não duvido dessa balança, mas, dependendo do livro que se está lançando e caitituando, uma ida ao Jô ou à Oprah pode ser tão lucrativa quanto abrir uma filial do Fauchon no interior do Piauí. Nem recomendados pela Xuxa, James Joyce e Raduan Nassar passariam a ser mais procurados nas livrarias. E se o fossem, não seriam lidos além das primeiras linhas. Só obras de fácil digestão ou totalmente ignoradas pela mídia impressa precisam de programas de televisão para aumentar suas vendas.
Dá para levar a sério uma pessoa que tenha “descoberto” Carlos Heitor Cony assistindo ao programa da Ana Maria Braga ou lendo a Caras? Se bem conheço Cony, e o conheço há exatos 40 anos, nem ele levaria. Tampouco dou crédito à tese de que ler, como coçar, é só começar. Pode ser assim nos países nórdicos. É fato que todo mundo, sem exceção, se inicia na leitura de ficção através de autores bem acessíveis – nem Carpeaux começou a se interessar por literatura folheando Thomas Mann –, evoluindo à medida que seu repertório cognitivo consegue se ampliar e sofisticar. Se não consegue, babau. Há quem acredite que aqueles que hoje devoram Sidney Sheldon, Rosemunde Pilcher & cia., amanhã cairão de boca em Rubem Fonseca, Flaubert e até Joyce. Upgrade assim, em adulto, é coisa rara – tão rara que eu nunca vi. A maior parte da humanidade começa lendo chorumelas, toma gosto pelo negócio – e morre lendo chorumelas.
Por isso, mas não só por isso, se bem que muito por isso, a humanidade, em vez de caminhar, rasteja.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na edição de janeiro de 2002 da revista Bravo!.
Grande Sérgio Augusto...a Bienal foi-se.Agora é mais um coquetel da Ilha de Caras.É preciso uma Bienal alternativa ,uma Bienal com...com...oh,que coisa fantástica : escritores e leitores!!Seria uma grande novidade!!
Dois anos atrás, eu me lembro bem, os livros mais vendidos da Bienal tinham sido escritos por Marcelinho Carioca e Luísa Ambiel...Na próxima, serão as Obras Completas dos Atores de Malhação. Sérgio Augusto, grazie pela bengalada nessa gente - apreciei vicariamente a sensação...A foto da Marilyn Monroe lendo Joyce descalça - também não vou me esquecer disso...Um abraço, Alexandre S. Silva.
Quem pensa com saudades no passado é dito nostálgico. E quem pensa com temor no futuro, que outra classificação pode ter sem ser "pessimista"? Acho raso demais falar-se em pessimismo. Talvez "enojado" seja um termo provisório adequado. Que outro sentimento ter em uma época na qual a mídia toma dessa gentinha descrita e a alça a um imerecido altar? Nem penso tanto no que essas pessoas lêem ou deixam de ler, mas procuro observar o que elas fazem de tão relevante para que dezenas as idolatrem e milhões homologuem essa baixa idolatria (quer alimentando-a através do consumo dos meios onde ela se manifesta, quer imitando, ou tentando imitar esse estilo de vida). Imagino-me no futuro: se tiver descendentes, que poderei contar a eles desta época? "Crianças, fui contemporâneo de Xuxa e Paulo Coelho!". É um legado que não compensa transmitir a nenhma criatura.
Prezado Sérgio Augusto,
é inegável que no mundo de comunicação de massa em que vivemos ser conhecido, famoso, abre muitas portas, até em momentos inoportunos, como o relatado por você com relação ao evento literário do Parque Lage. Só que, vamos ser um pouco realistas, você mesmo, voluntária ou involuntariamente, também se beneficia desta conjuntura que estamos criticando. Quer um exemplo? Acompanho o Digestivo Cultural há pelo menos um ano e lhe asseguro que o DC conta com pelo menos três (se não quatro) colunistas (sem demérito para os demais) que exibem superior maestria no ofício de escrever e no entanto é a sua coluna que tende a ser recebida com relativo maior interesse aqui, pelo simples fato da sua associação com a "popular" revista Bravo!! Para concluir num tom otimista, diria que a internet veio até suavizar a necessidade de se ser conhecido para se ser ouvido embora não consiga, evidentemente, alterar a inclinação humana de "abrir alas" para os chiques, para os famosos...
Um abraço.
Não seja tão relativista assim, Toni. Não me confunda com um atorzinho da Globo ou algum figurante do BBB. Se alguma fama tenho, ela se deve a 41 anos de atividade jornalística, em veículos como Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, revista Senhor (a original), Veja, Pasquim, Opinião, Isto É, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo etc, e não a aparições em programas de TV ou em festas badaladas pela revista Caras. Outra coisa: não disponho de uma coluna no Digestivo. Este site apenas transcreveu dois textos de minha autoria, por acaso publicados na Bravo!, onde, aliás, também despertaram enorme interesse, embora lá eu não possa ser apontado nem como o mais “chique” nem como o mais “famoso” dos colaboradores, o que, portanto, invalida a sua tese de que aqui só me dão guarida e atenção por eu ser quem sou (ou você pensa que sou). No mais, pegou mal insinuar que o editor deste site é um oportunista ou coisa parecida.