ENSAIOS
Segunda-feira,
12/7/2004
Memórias de Lorenzo da Ponte
Luís Antônio Giron
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O poeta italiano Lorenzo Da Ponte (1749-1838)
se esmerou em cenas de disfarce, jogos de esconde-esconde, contraste e
reviravoltas que animaram as óperas do fim do século XVIII. Três delas, de
Wolfgang Amadeus Mozart, figuram entre as grandes criações líricas de
todos os tempos: As Bodas de Fígaro (1786), Don Giovanni (1787) e
Così Fan Tutte (1790). A figura de Da Ponte ficou cimentada à glória de
tais óperas, que formam uma espécie de trípode do espírito revolucionário
cultivado em estufa nas cortes da Europa Central. A trajetória do
libretista se ofuscou pelo brilho de Mozart, como ocorre com quase todos
os poetas dramáticos. Mas ela é tão cheia de peripécias quanto uma ópera
bufa, ou melhor, um drama jocoso que tenha escrito. As Memórias de Da
Ponte, publicadas em Nova York entre 1823 e 1827, também em edição brasileira, jogam luz sobre o sujeito e o mundo de patranhas, fugas vertiginosas por
escadas e tombos em que viveu.
Todo memorialismo realiza a projeção que o narrador faz de si próprio
numa cronologia que, apesar de real, se materializa imaginariamente ao ser
formulada. Os memorialistas do século XVIII se viam, em geral, como
personagens pícaros e licenciosos, veículos de histórias as mais
mirabolantes e joguetes dos fatos. A sinceridade das lembranças de um
Rousseau ou de um Casanova não passa, de fato, de um eficaz expediente
literário.
Da Ponte embarcou no tom das famosas memórias de Giacomo Casanova, seu
contemporâneo e amigo. A exemplo do célebre conquistador, era vêneto, um
tanto velhaco e inclinado à sedução feminina. Como Casanova, Da Ponte foi
banido da República de Veneza, fato que o obrigou a perambular pelas
cortes da Europa e a experimentar aventuras e mudanças repentinas de sorte
e emprego. Casanova, curiosamente, recebeu seu banimento de Veneza por
escrever críticas de ópera que desagradaram o poderoso protetor de uma
cantora. Já Da Ponte, homem da cena lírica, exonerou-se da "Sereníssima
República" por dois motivos: pegou em flagrante um prosaico ato de
adultério da mulher de seu nobre protetor, e, em versos pronunciados em
aula e denunciados aos magistrados, escarneceu os chifres de ouro dos
doges. Não foi a primeira nem a última cena bufa de sua longa existência.
Casanova cumpre a função de aguçador dos brios literários de Da Ponte.
Este jura que só narrou a verdade: “Julguei acertado e honesto não
mencionar alguns fatos”, escreve. “Casanova fez o contrário. Não raro
omitiu o que poderia ou deveria dizer por dever histórico; e para
preencher de alguma forma os vazios e amalgamar sua narrativa, permitiu
que sua prolífica pena contasse algumas patranhas.”
Se tudo é verdade em Da Ponte, ele sustenta um clima de fábula na
narrativa. Tudo se afigura hiperbólico e pueril como num proscênio de
marionetes. O estilo saltitante remete a um libreto como As Bodas de
Fígaro.
A obra se divide em quatro partes. Na primeira, conta do nascimento à
saída de Veneza pela porta dos fundos, em 1779. A atividade como
libretista em Viena (1780-1790) e as arapucas dos invejosos na corte de
José II são aobrdadas na segunda. A terceira trata da
tentativa frustrada de montar uma editora em Londres, voltas eventuais à
Veneza dominada por Napoleão e depois pelos austríacos e a transferência,
em 1805, para os Estados Unidos, com mulher e quatro filhos. Na última
parte, o velho poeta dramático está instalado em Nova York, primeiro como
dono de armazém, mais tarde à frente de um grupo de animadores da língua e
da literatura italiana em território americano. O movimento culmina em
1825, com a primeira montagem local de Don Giovanni, para orgulho de
seu poeta - quatro anos depois da primeira récita da ópera no Rio de
Janeiro.
Da Ponte deu início à elaboração de suas memórias aos 30 anos. Terminou-a
aos 80, o que lhe permitiu repetir, ao cabo da tarefa, um verso de seu
ídolo, o poeta Metastasio: “E minha fábula não findou”.
Na primeira parte do volume aparece o menino pobre, filho de um tanoeiro
judeu de Ceneda (hoje Vittorio Veneto) de nome Geronimo Conegliano
convertido ao catolicismo em 1763. Como padrinho, o bispo Lorenzo Da
Ponte. O filho mais velho, Emmanuele, foi batizado com o nome do protetor.
O jovem entrou para o seminário da cidade. Com a morte do bispo, mudou-se
para o seminário de Portogruaro. Ali se tornou professor de literatura
(1770) e assistente de diretor (1772). Nesse ínterim, compôs seus
primeiros poemas, à imitação dos poetas latinos. Sempre perseguido por
invejosos, abandonou o seminário e se mudou para Veneza. Na “perigosíssima
cidade”, como a descreve, envolveu-se durante quatro anos com Angiola
Tiepolo, de família nobre arruinada. O irmão da moça, jogador, lhe
dilapidou o pouco dinheiro que possuía. Virou lente em Pádua, foi
perseguido pelos inquisidores por fazer, num poema, a apologia da natureza
em detrimento das instituições.
Expulso, teve a sorte de ser recomendado por um amigo ao mestre-de-capela
real da Áustria, Antonio Salieri. Trabalhou em Viena com os grandes
compositores da época. Em conversas com Mozart, por sugestão deste,
produziu suas obras primas. Logo reconheceu o valor do músico: “Conquanto
dotado talvez de talento superior ao de qualquer outro compositor do mundo
passado, presente ou futuro, jamais pudera, graças às intrigas dos seus
inimigos, exercitar seu gênio divino em Viena e permanecia desconhecido e
obscuro”. Da Ponte gaba-se de ter sido o principal responsável pela glória
póstuma do compositor. “A injustiça, a inveja dos jornalistas, dos
gazeteiros e sobretudo dos biógrafos de Mozart não permitiram que se
concedesse tal glória a um italiano.” Da Ponte tinha motivos de se
condoer do músico. Também foi vítima da inveja e das tramas da corte dos
Habsburgo. Barrado em Viena, viu-se obrigado a mudar de emprego e emigrar.
Em uma passagem pitoresca, conta como compôs, em 1787, o libreto de três
óperas, simultaneamente em apenas dois meses, inclusive Don Giovanni:
“Uma garrafinha de Tokay à direita, o inteiro no meio e uma caixa de
tabaco de Sevilha à esquerda”. Para completar, a compahhia de bela jovem
de 16 anos que morava na casa, cheia de mimos e carinhos, “que me serviu
de Calíope”.
O sabor da leitura não se mantém na última parte do tomo. Trata-se de um
anticlímax, como reconhece o autor. A América lhe parecia um deserto: “O
país em que me encontro há mais de cinco lustros, não se prestando a tais
aventuras, coloca-me na posição de um professor de botânica que viaja com
seus alunos para instruí-los e que, depois de lhes ter mostrado as
qualidades e virtudes das árvores, ervas e flores, ao passar por praias
desertas e montes estéreis, lhes mostra propriedades de uma vergôntea ou
sarça para não desperdiçar o tempo.”
Diz isso não sem uma ponta de inveja das aventuras passadas. Revela-se
um erudito de frivolidades. Há no livro bem poucos ensinamentos morais ou
reflexões sobre o processo composicional de libretos de ópera - algo a se
esperar no mais famoso dos libretistas, autor de duas dezenas de óperas em
parceria com Cherubini, Paisiello e Salieri, entre outros. Tiram-se lições
não exatamente estéticas das entrelinhas, digressões e vicissitudes por
que passa. Se há uma moral, esta reside na constatação de que as paixões
destroem o indivíduo. Da Ponte luta para manter a razão, apesar dos
milhões de azares que amarga. Pensando em Casanova, pergunta: “Quem
acredita em sonhos é louco; e quem não acredita, o que é?”
Ora, o poeta foi o primeiro a esquecer o delírio na algibeira. Quando se
tornou especieiro em Nova York contrariando todos os seus projetos
árcades, permitiu-se a auto-ironia: “Quem tiver bom senso imagine como eu
ria de mim mesmo todas as vezes que a minha poética mão era obrigada a
pesar duas onças de chá ou medir meia braça de fumo de rolo para um
sapateiro ou cocheiro, ou servir-lhes, por três centavos, um dracma de
licor que não era o drama da Cosa rara, nem das Nozze di Figaro. Assim
é o mundo. Mas, se o ofício não era nobre, pelo menos a bolsa não
padecia”.
Com estro pragmático, procurou recompor em Manhattan um pouco do cenário
faustoso perdido na Viena setecentista. Com seus alunos no Columbia
College, montou Don Giovanni e compôs a ópera Ape Musicale. Esta
produção fracassou. Mas lhe serviu para mostrar, aos jovens praticantes de
valsas e de temas musicais extravagantes, o valor da medida exata. Sempre
ativo, aos 75 anos abriu livraria, onde se sentava ao cantar do galo para
sair de lá tarde da noite. Confessa que quase não tinha fregueses. “No
entanto, tenho a alegria de ver a todo instante coches e carruagens
pararem à minha porta e deles saírem os rostos mais belos do mundo,
confundindo a minha loja com a loja contígua, onde se vendem doces e
tortas.” Imagina colocar um cartaz com os dizeres “doces e tortas
italianas”: “E se alguém entrar na minha livraria por causa dessa
brincadeira, mostrarei Petrarca ou algum outro dos nossos poetas e
afirmarei que os nossos são os doces mais doces que os dentes podem
degustar”.
Os dias modorrentos do ancião nostálgico da Itália não terminariam na
contemplação de fregueses da loja ao lado. Ainda teve tempo de escrever a Storia della compagnia dell'opera italiana condotta da Giacomo Montresor
in America, publicada em 1833, apêndice às memórias que contava a
introdução da ópera na América.
Esquecido pelos compatriotas e ocupando um papel secundário no Novo
Mundo, Da Ponte afirma que teria cometido menos erros se houvesse lido sua
própria história no início da vida. Aconselha o leitor a disfarçar a
pobreza e ocultar o talento ou a fortuna dos outros. “Não confieis como eu
fiz em algumas palavras adocicadas; não abrais vosso coração para pessoas
cujo caráter e costumes não conheceis por muito tempo; fazei ouvidos de
mercador para os que suplicam piedade com vozes de adulação; não meçais a
retidão alheia pela vossa própria.” Palavras ásperas saídas de um poeta
cujos libretos ainda hoje provocam reações de riso e doçura.
Luís Antônio Giron
São Paulo,
12/7/2004
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