Vestido de Noiva é a segunda peça escrita pelo dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) e até hoje provavelmente a mais conhecida dentre sua obra – que inclui não apenas peças de teatro, mas também romances, crônicas, contos. Sua primeira e célebre montagem, realizada pelo diretor polonês Zbigniew Ziembinski em 1943, é considerada uma espécie de marco do nosso teatro moderno. Tão célebre que, durante muito tempo, era difícil dissociar o texto de Nelson da concepção cênica de Ziembinski.
Acerca desta estréia, gostaria de reter a seguinte fala do poeta Manuel Bandeira: “Sem dúvida, o teatro desse estreante desnorteia bastante, porque nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da realidade física. Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação”.
É por este mesmo texto de Nelson que Ziembinski se apaixonou ao chegar no Brasil resolvendo realizar com ele uma montagem que revolucionou o teatro brasileiro. Certamente o potencial revolucionário já estava presente ali, no universo criado por Nelson Rodrigues. Universo este que de fato “desnorteia”, perturba, excede nossa percepção do mundo e das coisas, da moral e das relações familiares. É neste sentido, principalmente, que ele pode ser considerado poético. Mas não só.
E aqui, no entanto, nada que transcorra em um tom grave, exagerado – pelo contrário: a linguagem de Nelson é simples, direta, os diálogos são rápidos, eficientes. Seu estilo beira a mais estrita simplicidade, o quase “não-estilo”. Daí que a leitura flui naturalmente, lemos Vestido de Noiva em um sopro, como se escorregássemos pelo texto, sem pausa. Ler uma peça de Nelson Rodrigues – e esta é uma regra que não se aplica apenas ao Vestido – é uma aventura deliciosa e instigante pelo reino das sensações e das surpresas.
É também por esta característica que devemos concordar quando Bandeira diz que Nelson Rodrigues é um verdadeiro poeta. Em seus diálogos, Nelson mostra uma incrível habilidade para fazer os personagens saltarem diante de nós, vivos, concretos. Daí sua força para provocar sensações no leitor, ou na platéia. Somos afetados por múltiplas emoções, quase contraditórias: hora nos pegamos rindo, hora aflitos, no minuto seguinte chorando, e, quase constantemente, tomados por um ambiente de angústia irremediável.
Já se falou em uma certa estética expressionista, acerca de Vestido de Noiva, um certo gosto pelo sombrio, pelo exagero. Vestido é uma peça onírica, que ousa investir no fantástico, na fabulação. Sua estrutura é o que em geral mais chama a atenção logo à primeira vista: a divisão entre os planos da realidade, da alucinação e da memória. Planos que se intercalam, em uma narrativa que se faz como resultante destes cruzamentos de temporalidades disparatadas: da memória de Alaíde, de sua alucinação e dos acontecimentos reais. Não são apenas três histórias, mas três tempos que se mesclam, compondo um plano maior de ação – ou ainda, uma resultante da ação dramática que se compõe destas três camadas. Uma ação dramática que parece ganhar espessura, dimensão a partir desta composição de tempos diferentes. Está aí uma das grandes inovações rodrigueanas: este ziguezaguear entre os planos, criando uma espécie de vertigem no leitor (ou na platéia) que é jogado em diversas temporalidades simultaneamente.
Aqui uma ressalva à nova edição da Nova Fronteira – edição econômica e com caráter didático, voltada para o vestibular – na qual o leitor irá encontrar na quarta capa um breve resumo da história da peça: para quem quiser acompanhar o efeito de expectativa que este entrelaçamento é capaz de provocar, cabe não ler este resumo que, logo de cara, estraga toda a surpresa contida no enredo. Surpresa e um certo clima de mistério que conferem à trama um suspense instigante, que tem o poder de nos prender na cadeira. Em Vestido temos muito bem armada a estrutura da tragédia grega, com a presença marcante das “peripécias”: momentos em que alguma informação nova entra na trama, modificando todo sentido que vinha se armando até então. A peça é toda montada assim, por sobressaltos, que vão pouco a pouco fazendo o sentido deslizar de um nível a outro. Que efeito pode ter uma peripécia que tiver sido antecipada?
Para ler Vestido de Noiva é preciso saber ouvir o constante senso de humor presente em Nelson Rodrigues. A tragédia não se faz aqui separada do cômico, das situações absurdas, exageradas, “barrocas” ou, como muitos já disseram: melodramáticas, que tanto caracterizam o universo rodrigueano. Ri-se do ridículo da situação humana, da natureza, afinal, realmente “melodramática” de todas as relações familiares se levadas ao extremo para o qual elas apontam. No limite, somos todos loucos, vivemos todos avizinhados pela loucura. Encontramos em Vestido uma máxima rodrigueana, como bem explicitou Sábato Magaldi: “O irracionalismo estaria no cerne do comportamento humano”. Máxima mais explicitamente presente naquelas que Sábato denominou de “peças psicológicas”, das quais Vestido faria parte, juntamente com A Mulher sem Pecado, Valsa nº.6, Viúva porém Honesta e Anti-Nelson Rodrigues. (Além das “peças psicológicas”, na classificação de Sábato, haveria na obra de Nelson as “peças míticas” e as “tragédias cariocas”.)
São conhecidos os dramas familiares e pessoais vividos por este escritor, dramaturgo, e jornalista por profissão (na qual começou cedo: aos treze anos como repórter policial) nascido no Recife e que, aos 4 anos, foi com a família morar no Rio de Janeiro. Uma vida marcada por mortes violentas, doenças, acidentes... Por si só, a história de Nelson – bem contada na biografia O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro – constitui não apenas uma única, mas diversas tragédias.
Talvez muitos gostem de evocar a vida pessoal de Nelson por julgarem encontrar aí um chão firme que supostamente explicaria o disparate de suas criações. Nelson não negava partir de suas experiências vividas para escrever, e dizia: “Nas minhas obras eu tento transmitir algo que vem de dentro de mim. É trabalho duro, um sacrifício”. No entanto, para ele as obsessões do autor são mero suporte para o trabalho de escrita que surgirá depois e se tornará independente: “Eu acho que, para escrever bem, o escritor precisa de algumas obsessões, algumas idéias fixas, que sustentam a sua obra”. É fácil notar o quanto suas criações extrapolam a mera vivência pessoal, tendo o poder de nos afetar, falar de nós mesmos, de nossa condição humana, coisa que só nos é dada pelos verdadeiros grandes artistas. Nelson é nosso mestre tupiniquim das tragédias, é nosso Sófocles, nosso Ésquilo folhetinesco. Nosso poeta trágico que sempre valerá a pena ser lido e relido.
Como admiradora de Nelson Rodrigues, interessei-me e fiz uma leitura atenta, que agradou-me sobremaneira, pelo conteúdo e pelo estilo. Trouxe-me novas maneiras de ver a obra do grande mestre. Espero que textos desta natureza se multipliquem, para satisfação dos leitores.