O mercado editorial brasileiro está se fechando novamente ao autor nacional de ficção, um movimento negativo que se tornou cíclico, mas não inevitável, posto não ser um mecanismo cego. Antes é preciso corrigir os erros que se repetem ciclicamente e que levam ao dito fechamento.
De acordo com pesquisa realizada em 1995 pelo Idart (Departamento de Informação e Documentação Artística da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo), de cuja equipe fiz parte, entre 75 e 79, o mercado editorial e o parque gráfico nacionais expandem-se extraordinariamente em decorrência do chamado "milagre brasileiro" (a grana dos ianques que entrou com a ditadura), 12 anos depois, em 87, ao receber a conta do milagre, o Brasil pede moratória, coincidindo com a ascensão de Paulo Coelho, encabeçando a febre (ou melhor, praga) por obras de auto-ajuda e o fechamento do mercado editorial para os ficcionistas.
Em 90 o Brasil assina o consenso de Washington* cujas políticas perversas ajudarão a manter o referido mercado devidamente fechado por mais 12 dolorosos anos, apenas reabrindo em 2000, com a queda das vendas da auto-ajuda, o sucesso das antologias-balanço de fim de século e a emergência de uma nova geração de escritores.
Agora em 2008, embora ainda não seja abrangente, a tendência "cíclica" ao fechamento já se faz sentir. Como no horizonte não há nenhuma crise especialmente grave nem mudanças estruturais macroeconômicas, a única explicação que me ocorre cabe numa única palavrinha: saturação. Em parte por culpa do próprio mercado, em parte por culpa do autor. Meu Deus, já vi esse filme.
Eis as razões:
1) Inundação e encalhe de maus títulos, algo que se repete igualzinho à crise anterior, mas parece que editores, pequenos e grandes, esquecem as lições históricas, porque durante as vacas gordas apostam em tudo quanto é cavalo manco, metáforas zoológicas à parte, a exemplo do "escritor fofo" exaustivamente inventariado por Mirisola que, a despeito do ridículo, de fato existe e contribui vastamente para o recuo do mercado ― embora ambos (editoras e autores mancos) ainda não saibam: afinal, o leitor não é besta nem está aí para ser subestimado.
Há uma oferta imensa, massiva, indiscriminada ― fica difícil separar o joio do trigo, até porque atualmente é humanamente impossível ler tudo. Aquilo que Mirisola quis dizer com "profissionais qualificados no ramo que organizam antologias, escrevem de graça em jornais importantíssimos do Paraná, dão workshops e oficinas literárias, lançam livros geniais toda semana na Mercearia São Pedro" e que ao leitor parece piada, esculachos à parte, é a expressão da realidade, e o resultado é uma indigestão de maus autores e textos.
Publicou-se demais só pra aproveitar a maré de sorte e como livro não é pastel, publicaram-se bobagens, irrelevâncias ilegíveis, desnecessárias, tinta sobre o papel, alimento para o esquecimento, porque sequer para entretenimento tais textos se prestam. Afinal, é preciso ser competente, trabalhar duro, especializar-se, se o objetivo é escrever um bom policial, uma boa história de aventuras, uma boa biografia, e isso leva tempo.
Naturalmente o que ninguém levou em conta. Ao contrário, era preciso publicar já, agora, mês que vem, e o tempo de maturação e produção foi anulado.
Em nome do mercado, anulou-se o principal, descaracterizando-se assim o escritor e a escrita como profissão e como arte. Algo semelhante aconteceu nos anos 70: a editora Ática só na coleção Tempo Brasileiro lançou na mesma época dezenas de títulos de autores inéditos e onde estão esses sujeitos 30 anos depois? Bobagem.
Naturalmente, em 2000, ocorrem agravantes fazendo baixar ainda mais a qualidade e a seriedade: a ausência de crítica especializada nos grandes jornais, o efeito blog, a anomia (ausência de regras) do campo literário determinada por uma mídia irresponsável, sem critério, autofágica, anômica ela própria.
Ou seja: se qualquer um é escritor, logo ninguém é escritor.
Até porque, com o perdão dos blogueiros, escritor não dá em árvores.
2) A boa produção escrita entre 90 e 2000 já foi publicada, os bons escritores e poetas já foram revelados, posso citá-los um a um e dizer o porquê, e esses ainda precisam ser lidos, assimilados, julgados pelo público-leitor, pela academia, pelos críticos, pelos outros escritores e o momento é de consolidar posições etc.
Gerações de escritores não se sucedem ano a ano, é preciso exatamente o espaço de uma geração ― 30 anos ― entre uma e outra. É um saco ficar repetindo o óbvio, contudo não há mais gavetas dos já consagrados, e não há gavetas do porvir, vivemos uma espécie de entressafra.
Mas não, neguinho insiste, na rabeira do momento que passou. Então desabam concursos e prêmios do caralho. Lemos milhares de páginas, calhamaços, MONTANHAS de originais nada originais, de deixar qualquer um besta.
Repito: não há gavetas, nem produção genial nem gênios incompreendidos a serem descobertos. E se alguém te disser o contrário é porque está tentando te vender alguma coisa. Ou não?
Na primeira crise, o editor da Record, Sérgio Machado (aliás, meu editor), disse que em tempos economicamente bicudos o mercado só aposta em livros que garantem um retorno líquido e certo, tipo memórias, biografias e reedições de autores famosos. Faz sentido.
* O consenso de Washington, chamado também de neoliberalismo, teve como pontos principais: abertura da economia por meio da liberalização financeira e comercial e da eliminação de barreiras aos investimentos estrangeiros; amplas privatizações; redução de subsídios e gastos sociais por parte dos governos; desregulamentação (demolição) das leis trabalhistas.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no siteCongresso em Foco, em 29 de abril de 2008.
Márcia, acho que vc está sendo muito fatalista. Realmente, hoje publica-se muita porcaria e escritores não existem às pencas como quer fazer acreditar a geração Averbuck da vida... Mas daí a dizer que não existe mais ninguém com talento e que devemos esperar 30 anos... já é demais. Aposto que existe um ou outro talento por aí que (ou ainda nao) foi descoberto, ou que está fazendo o que muito "escritor" da nova geração deveria ter feito: esperando a própria escrita maturar. Nem 8 nem 80, por favor...
Marcia! A qualidade dos leitores também deve ser levada em conta! Não faltam "escritores-fantasmas", produzindo coisas abomináveis rotuladas de bibliografias, experências de vida e fórmulas de sucesso pessoal, assinando como artistas, "celebridades" e outros quejandos. Dar um salto de pára-quedas não faz ninguem ser paraquedista, mas é só pagar e pronto! Tem foto e tudo comprovando a façanha. Assim é a epidemia de escritores. A família, os funcionários, alguns amigos e, principalmente, a possibilidade de "imortalizar-se", com um registro na Biblioteca Nacional, além, é claro, daquela historia que dizem ter sido o Confucio quem disse: para ser homem (mulher), é necessario plantar uma arvore, fazer um filho e escrever um livro (é o responsável pelo que voce bem comenta). Ninguem é obrigado a comprar porcaria. Entretanto, a crítica, vez por outra, nos empurra algo absolutamente dispensável. Sigo acreditando que, bem peneirado, este cascalho sempre traz algum diamante... Um abraço, RA
Márcia, você está mais afiada do que nunca! Sou seu fã desde os outros cometas. Depois desse ciclo de publicações vazias a que você se refere, só uma coisa não mudou absolutamente nesses anos: a sua verve cáustica, mordaz e certeira, que sem rodeios junta vaca gorda e cavalo manco no mesmo curral. A verdade é sempre cruel, mesmo pra quem não a percebe. Que dirá pra quem não a aceita? Beijos.
Temos um exemplo capital no texto acima e nos comentários que os seguem. Vejamos: 1) Um texto é escrito; 2) Há os que o detestam e 3) Há os que o adoram. É e será sempre assim. Que isso sirva de lição aos muitos letrados que fazem da sua subjetiva retórica o laço da própria forca. Pôr uma opinião assim, sem pé nem cabeça, Márcia, cria vínculos com o passado e passa a fazer parte de sua biografia. Sua opinião é digna de respeito, porém é limitada pela generalidade como você trata o corpus. E mais uma vez, criticar os Novos e generalizar... é um chover no molhado que não pára nunca!!! Até para (bem) escrever, em site ou blog, é preciso relevância. Se o seu problema são os Novos Escritores, o meu são eternos os críticos dos Novos, com seu pastiche interminável e o discurso "copia e cola", sem qualquer novidade ou corroboração lógica. Há os bons e há os ruins, ué (ou caralho, se você "prefere"... Um salva-vidas, por favor...
Acho que não dá pra ser tão radical. Arte não é matemática, assim não há como estipular que são x ou y bons escritores, a cada x ou y anos. Além disso, o conceito de "bom escritor" é relativo.
Acho que há uma distinção a ser feita: o fato de um autor não ter seu trabalho reconhecido, seja através das vendas ou através das críticas, não significa que ele não tenha valor. Aliás, livros de auto-ajuda vendem muito bem e nem por isso têm qualidade excepcional (eu pessoalmente os acho insuportáveis, mas tem quem goste...). Continuando: Há autores que morreram sem ser reconhecidos (tiveram reconhecimento póstumo) - já pensou se não tivessem sido publicados? Há mesmo muita coisa ruim, mas com isso forma-se massa crítica para que textos de valor surjam... E qualquer autor tem o direito de achar o seu trabalho o máximo, e de tentar ser publicado, certo?