Milton Hatoum nasceu em 1952, em Manaus. Morou em Brasília, na Espanha, na França e nos Estados Unidos. Reside desde 1999 em São Paulo, cidade onde se graduou arquiteto (FAU-USP) na década de 1970. É autor, pela Companhia das Letras, de Relato de um certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Ainda dá aulas de literatura, é tradutor esporádico e colunista da EntreLivros e da Terra Magazine.
A idéia da entrevista surgiu a partir de um curso sobre o gênero romance que Milton Hatoum ministrou em 2005 na Casa do Saber. O objetivo da entrevista era ampliar a compreensão da obra do escritor mas acabou saindo melhor do que a encomenda, foi publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais e abre, agora, esta nova seção no Digestivo Cultural.
Na entrevista, Milton Hatoum fala de seus três romances, com destaque para o último. Revisita suas principais influências e dá conselhos aos jovens escritores. Discute, ainda, o papel do artista em nossa sociedade e esmiuça um pouco o ofício de escritor. Sobre a mesma entrevista, Milton Hatoum depois declarou: “Foi uma das melhores conversas sobre literatura”. – JDB
1. Milton, o que vem depois da obra-prima? Agora entendo por que você parecia tão exaurido, quando da época do lançamento, no curso na Casa do Saber... Depois de Cinzas do Norte, você sente que realizou uma obra – ao contrário de Mundo, seu protagonista?
Cinzas do Norte não é uma obra-prima, e digo isso sem falsa modéstia. Mas com esses três romances, acho que consegui realizar alguma coisa... Tentei construir um universo ficcional... O mais importante é dar forma a esse universo fechado e coeso, mas vivenciado com intensidade e paixão. Por isso estava exaurido. Foram mais de quatro anos de trabalho... E escrever significa reescrever, filtrar toda uma experiência, cujo limite é a morte. O fim de um romance é uma morte simbólica porque o narrador esgota toda sua experiência sobre um assunto ou conflito ou história de vida. Não queria o destino de Mundo para mim. Aliás, de nenhum de meus personagens... a não ser dos narradores, que sobreviveram para escrever um livro. Só percebi isso quando estava terminando o Cinzas do Norte. Pensei: é o terceiro romance que escrevo e é o terceiro narrador que sobrevive para contar uma história. Um pouco como Sherazade, que inventa e fabula para não ser decapitada. Nós vivemos a síndrome de Sherazade.
2. Ainda na Casa do Saber, você falava que queria discutir, através desse romance, o papel do artista na nossa sociedade. Conforme previsto, a mídia não trouxe essa discussão à baila... Enfim: você não acabou provando, até pela sua trajetória desde 1989, que se pode ainda construir uma obra, mesmo em tempos tão difíceis para o artista?
É verdade, não se falou muito sobre isso, embora seja um dos temas centrais do romance. O personagem Mundo se depara com um ambiente adverso em Manaus, onde o pai, a província e o regime militar o oprimem. Ele é um “estranho” em sua própria terra. Mas anos depois, quando mora em Berlim e Londres, ele se torna um auto-exilado, com pouca interlocução, e cerceado pela imagem sufocante do pai. Quer dizer, é um estrangeiro, sem eira nem beira, pois não desfruta da herança de Jano. De certo modo, ele faz o percurso que alguns da minha geração fizeram: de Manaus (ou qualquer outra cidade periférica), para o Rio ou São Paulo e depois para a Europa. Eu me inspirei em romances cujos personagens são intelectuais ou artistas: Retrato do artista quando jovem, Pais e filhos... São personagens desgarrados, que instauram uma fratura na família e na sociedade. Essas questões vêm de muito longe, o exílio, o lugar difícil e improvável do artista num mundo movido pelo consumo e o lucro. Nos dias de hoje a literatura já não tem o interesse que tinha na época de Joyce ou mesmo na década de 1950, mas acho que ainda há e sempre haverá bons leitores em todo o mundo. Esses leitores existem e justificam a literatura.
3. No seu caso, mais uma vez, você acha que encontrou o equilíbrio entre Mundo, o artista bruto e “impoluto”, e Arana, o artista consagrado e “vendido”? Esse dualismo ainda persiste? Você sofreu pressões, por exemplo, como escritor, para pender para um lado ou para o outro? Se, sim, como superou isso?
Mundo e Arana são pesos nas extremidades de uma mesma gangorra. A pressão social e a ambição se refletem na vida de cada um desses personagens. Acho que esse dualismo ou polarização é nocivo para ambos. No caso de Arana, por motivos éticos e estéticos. Ele é o caso típico de intelectual ou artista que promete revolucionar a arte e acaba cooptado, beijando os anéis do poder. Começa sua carreira como artista de vanguarda e no fim ele se revela... No caso de Mundo, sua autocrítica é tão feroz, tão radical, que o imobiliza. Penso que o equilíbrio a que você se refere não significa capitulação nem dissipação total, e sim a busca de uma linguagem que traduza a densidade de uma experiência, sem abrir mão de certos princípios. Não sofri nenhuma pressão editorial, pois demorei dez anos para publicar o Dois irmãos. A maior pressão veio de dentro de mim. O primeiro romance foi bem recebido pela crítica daqui e do exterior, e isso me inibiu. A auto-exigência aumentou e eu não gostei de nada do que escrevi depois do Relato. Mas há também o narcisismo... O narcisismo extremado é nocivo e deve ser evitado. Mas isso só vem com a maturidade. O tempo é fundamental para quem lê e escreve. A passagem do tempo embaça a figura do autor e faz com que a crítica se concentre em sua obra, que é o que interessa. Por isso sou meio neurótico com a autobiografia, pois minha vida não devia ter nenhum interesse para quem lê meus livros.
4. Outras dicotomias se colocam com muita força nesse livro e em sua obra como um todo (principalmente as de família...). Mas, a meu ver, nunca foram tão bem resolvidas, ou “discutidas”, como em Cinzas do Norte. Você, tradicionalmente, não dá “solução” e nenhum personagem se salva no final. Pessoalmente, acredita numa visão trágica da vida – como os gregos, como Nietzsche?
Sim, e também como Conrad, Faulkner e Dostoiévski. Os poucos personagens que se salvam são os narradores. Se não sobrevivessem, não haveria narrativa... É o que acontece com o narrador do conto de Poe: "A queda da casa de Usher". Ele tem de cair fora antes do desmoronamento da casa. Trato a família como um ritual autofágico, em que todos se devoram para no fim sobrar apenas a palavra escrita, a memória inventada da tribo.
5. No caso de Dois irmãos (2000), você contou que Raduan Nassar – que não mais escreve, mas que ainda assim lê – lhe aconselhou, entre outras pessoas, a não pender tanto para o lado de Yaqub, o irmão aparentemente “bom” da história, que você igualmente condena no final. Em Cinzas do Norte, foi premeditado condenar também a Lavo, aparentemente um narrador “impessoal”, através de Tio Ran?
Foi intencional... Bom, quando você chega ao terceiro livro, deve ter assimilado alguma coisa, inclusive as falhas dos anteriores. A verdade é que os três manuscritos passaram por leituras cerradas dos editores e de alguns poucos amigos. Por exemplo, a narrativa de Ranulfo (tio Ran) não existia até a penúltima versão do manuscrito. Nessa versão, o texto de tio Ran era apenas um fragmento que aparecia no fim do livro, com o título "Obituário de Mundo". Na releitura dessa versão, senti falta de uma pré-história da vida de Mundo, de sua mãe e de outros personagens que moravam no Morro da Catita, antes do casamento de Alícia com Jano. Então passei uns oito meses escrevendo essa narrativa, até encontrar o tom da voz desse outro narrador, que conta outra história, diferente da história narrada por Lavo. Quis acentuar a aparente “impessoalidade” de Lavo, embora este sinta atração e medo do pai do amigo. Mas a perplexidade de Lavo é a vida do amigo, e é isso que ele tenta entender. Porque a história de uma amizade é a história de uma compreensão e também das lacunas dessa amizade, daquilo que é inefável ou não pode ser dito... A amizade é uma relação de afeto e cumplicidade, mas com zonas de sombra em que aparecem a dúvida, a perplexidade e o ciúme. Ninguém entende o outro em sua plenitude, nem o outro nem o passado, e eu quis explorar isso nos três livros. O romance é um esforço dirigido a essa compreensão, que nunca se realiza plenamente.
6. Embora o protagonista seja Mundo, e o livro se encerre com ele coroando uma trajetória de muita frustração, todas as personagens terminam também sem realizar suas potencialidades: Jano se frustra com o filho Mundo; Tio Ran não se junta ao amor de toda a vida, Alícia... Talvez só Lavo, com testamenteiro, mesmo que condenado, tenha realizado seu intuito – contar a história toda. Entre a ópera bufa, de Machado, e o som & a fúria, de Shakespeare e Faulkner, você fica com a segunda opção?
Sim, com a segunda, embora não haja nenhum sopro de esperança na obra de Machado, cujo pessimismo era radical. Faulkner é um dos meus escritores prediletos, e toda a crítica de sua obra à sociedade americana é muito atual, sempre sob o signo do trágico, da violência e, às vezes, do horror. O patriotismo exacerbado, o racismo, a apologia ao consumismo, o fanatismo religioso, o puritanismo e o moralismo, tudo isso é elaborado na ficção de Faulkner. Você entende a América de Bush lendo Luz em agosto ou contos como "Setembro seco" e "Dois soldados".
7. Um dos grandes méritos de Cinzas do Norte, e da sua obra, é consolidar uma linguagem, uma visão de mundo, daquele universo brasileiro em torno da Amazônia, misturado com a colonização libanesa e a presença indígena. Ao mesmo tempo, Cinzas do Norte é genuinamente universal, pelo que contém de drama humano. Como foi chegar a essa síntese desde Relato de um certo Oriente (1989)?
Antes de escrever o Relato, eu já estava vacinado contra a literatura regionalista. Não ia cair na armadilha de representar “os valores” e a cor local de uma região que, por si só, já emite traços fortes de exotismo. Percebi que podia abordar questões a partir da minha própria experiência e das leituras. E fiz isso sem censura, sem condescendência, usando recursos técnicos que aprendi com algumas obras. Tive a sorte de nascer e morar numa cidade portuária, onde não faltam novidades nem aventuras ou casos escabrosos. Além disso, os membros da minha tribo manauara, amigos, parentes e vizinhos não eram figuras de uma natureza-morta. Histórias que vinham de todos os lados, de minha casa, da vizinhança, do porto, dos bordéis-balneários e até da casa do arcebispo. Quando penso na minha infância e juventude, percebo que foi a época em que vivi com mais intensidade, dia e noite. Havia tudo, inúmeras peripécias e também a política, pois meus tios participavam da vida política, que era mais um assunto doméstico. Aos 15 anos saí sozinho e fui morar em Brasília, isso em 1968. E depois morei em São Paulo e fora do Brasil, o que foi importante para minha formação. Chegou um momento em que fiz uma pausa e comecei a escrever sobre esse passado. Mas não queria escrever qualquer coisa, me debrucei no trabalho, na forma do texto, na construção dos personagens.
8. Machado de Assis nasceu, morreu e falou do Rio de Janeiro do século XIX; Guimarães Rosa foi médico e diplomata, morou fora, mas falou sempre da sua Minas Gerais; já Euclides da Cunha saiu do Rio e de São Paulo para falar de Canudos. Você, como Mundo, passou um tempo considerável longe da sua terra natal, o Norte do Brasil, acha que é sua sina exorcizar os demônios da época em que viveu lá? Vê, no futuro, a possibilidade de um romance urbano (sei que não gosta da expressão)?
A época em que vivi em Manaus somam trinta anos. Não gosto muito da expressão porque é genérica e tenta classificar ou rotular um tipo de narrativa. Romance urbano é quase uma tautologia. O romance já é, em sua origem, um gênero que nasceu na cidade e está relacionado com a imprensa. O espaço do Rio de Janeiro de Machado é menos importante que o conflito dos personagens e a ordem social e simbólica que representam. Alguns dos melhores contos de Machado, como “O Espelho”, ocorrem fora do Rio, embora tenham uma relação com a sede do Império ou com a capital da República. Ninguém mais “urbano” e paulistano do que Mário de Andrade, mas sua obra-prima é Macunaíma, que mistura tudo: mitos, paisagens, lugares, etnias, a floresta e a cidade. E o que dizer do romance Os ratos, de Dyonélio Machado? O drama de Naziazeno não reside na violência de Porto Alegre, uma cidade pacata e provinciana na época da narrativa, e sim no ritmo tenso de uma vida medíocre e dilacerada pela pobreza, desespero e angústia. O norte dos meus romances é uma cidade, Manaus, que mantém vínculos fortes com o interior do Amazonas mas também com São Paulo (no Dois irmãos), e com o Rio e a Europa, no Cinzas do Norte. Manaus foi construída e consolidada a partir dessas relações sociais, econômicas e culturais. Na literatura é importante estabelecer vínculos de afinidade e oposição. Agora mesmo acaba de sair um conto que escrevi (“Bárbara no inverno”, na antologia Aquela canção/Publifolha) ambientado em Paris e no Rio. E é provável que São Paulo apareça com mais força em algum texto futuro. É só uma questão de tempo. Por enquanto, ainda tem seiva na infância manauara.
9. Você seguiu os mestres, daqui e de fora, mas, ao mesmo tempo, inaugurou uma linhagem própria. Acredita que, num futuro, alguém possa continuar a sua obra, em relação a temas e mesmo no que diz respeito à ambientação – ou imagina que cada “literatura” está condenada a ser autônoma?
Penso que nenhuma literatura é totalmente autônoma. Cada escritor procura sua voz, mas essa voz, esse estilo, que é algo pessoal, deve alguma coisa a outras vozes. Uma frase de Mundo resume o quero dizer: Nada é puro, original, autêntico. Quando lemos Borges ou Flaubert, estamos lendo uma biblioteca. Faulkner gostava de Conrad, que gostava de Henry James, que gostava de Flaubert... E todos leram Cervantes... Talvez seja pretensioso imaginar que alguém possa continuar meu trabalho. Mas escrever é inscrever-se numa tradição, que é do Oriente e do Ocidente. Por exemplo, Proust, Stendhal e Machado de Assis foram fascinados pelo Livro das 1001 Noites...
10. Sei que você não parece muito entusiasmado com o tempo presente, e não só no que diz respeito às artes... De qualquer maneira, o que diria a um autor iniciante? Existem conselhos a serem dados? Alguma coisa que você mudaria na sua própria trajetória? Ou o caminho do escritor é sempre solitário, árduo e imponderável – como o destino de Mundo?
Quando eu era jovem, pensava que só devia escrever e publicar depois de ter lido uma biblioteca formada por grandes livros. Eu me obriguei a ler livros que hoje não leria mais, textos que não me deram uma gota de prazer no ato da leitura. Foi um erro, mas não me arrependo. O que eu posso dizer a um autor iniciante? Em primeiro lugar, a vida é mais complexa que a literatura, mas uma literatura consistente parte exatamente da assimilação da complexidade da vida, que inclui a leitura interessada de bons livros. Diria também que a literatura exige paciência e muito trabalho, e que a imaginação é filha desses atributos. Por fim, é preciso ter cuidado para não cair na tentação da vaidade extrema nem do experimentalismo vazio e superficial. A novidade de uma obra vem da configuração do texto pelo narrador, do vínculo necessário e profundo da linguagem com o assunto, e não da moda literária ou de um compromisso neurótico de se escrever algo absolutamente original. Do ponto de vista da linguagem, o nouveau roman francês não tem muita novidade, e o próprio Barthes reconheceu isso. A busca insana de uma “originalidade genial” pode ser algo inibidor e desastroso para um jovem. Acredito que todo ser humano tem uma experiência de vida, aquilo que Giorgio Agamben chama de “infância do ser humano”. Ele diz algo assim: a linguagem aparece como o lugar em que a experiência deve tornar-se verdade. E a literatura é a transcendência pela linguagem de uma vida empírica ou do que nomeamos realidade. Uma linguagem que transmita uma verdade interior, não mascarada nem superficial.
Confesso que fiquei encantado com a entrevista. Agora estou morando em San Cristobal de las Casas... Chiapas. México. Um abraco, Magno Fernandes dos Reis
Parece que a declaração do final da entrevista, onde ele ressalta a complexidade da vida, da qual faz parte umas leituras apaixonadas, coincide tanto com o ponto onde ele menciona as infinitas vivências em sua cidade portuária! É nesse trecho que minha imaginação fervilhou. Baccios do Mário.
Parabéns amigos do Digestivo Cultural!!! Sempre inovando e buscando melhorar seus seus espaços... Agora com as entrevistas, acho que vai rolar muita coisa interessante!!! Espero que o DC continue criativo e com novidades para nossa comunidade cultural on-line!!!
Milton Hatoum, há muito esperava encontrar sua entrevista. Sua literatura tem sido comentada e indicada para leitura em nossa oficina literária de Pelotas. Adorei. Levarei a conhecimento dos demais. Obrigada, Lourdes
Descobri o autor Milton Hatoum este ano e me encantei com o livro "Dois irmãos". Agora estou lendo "Relato de um certo oriente". Adorei ver a entrevista.
Descobri recentemente, para um trabalho acadêmico, a literatura cálida, doce e feroz do Milton. Dois irmãos é um livro belo. E entrevistas como esta fazem aparecer o autor, sua outra voz, que a gente também quer ouvir. Do exílio, um abraço. Silvia
Descobri o Digestivo procurando referências sobre Hatoum para indicar em meu blog. Desde a leitura recente de "Dois Irmãos", o mundo de Hatoum tem me encantado. Tomei a liberdade de colocar um link para esta estimulante entrevista. O DC já está em meus favoritos.
Forte abraço.
Estudo na Universidade Tiradentes em Sergipe e estou trabalhando o romance Dois Irmãos de Milton Hatoum no curso de Letras. Assim como outros que já opinaram, também estou encantada com o trabalho desse amazonense. Entrevistas como essa revelam o pensamento e a visão de mundo encantadora desse autor.