Lúcia Guimarães ficou conhecida, na televisão brasileira, como a face feminina do Manhattan Connection, do qual participou desde o início, em 93, até outubro do ano passado. E, desde janeiro deste ano, engrossa o time do Saia Justa, comandado por Mônica Waldvogel.
Lúcia Guimarães nasceu no estado do Rio de Janeiro e reside em Nova York desde 1985. Já foi editora de internacional da Rede Globo, redatora do Jornal Nacional e produtora de Paulo Francis. Além do GNT e da TV Cultura, foi colaboradora de revistas como Bravo!, Playboy e Imprensa. E acaba de inaugurar seu site luciaguimaraes.com.
Nesta Entrevista, Lúcia recorda seu saudoso colega de Manhattan: "O Francis foi genial, único". Fala da área que escolheu para trabalhar: "Não dá para ser atingido por um raio aos 25 anos e decidir ser jornalista cultural, não é a mesma coisa que ser setorista de agropecuária". E, também, do seu próprio zelo no exercício da profissão: "Não importa se estou de pijama e descalça, eu preciso ter medo de errar, de ser imprecisa nos fatos, de ser autoindulgente, de entediar o leitor".
Lúcia Guimarães, contudo, é modesta: "Eu não fui pioneira em nada, apenas tive sorte". E reforça suas admirações: "Meu parâmetro na imprensa é o Sérgio Augusto, que, além de brilhante, é o mais rigoroso jornalista cultural brasileiro". Lúcia, porém, não é nostálgica: "O que me deleita hoje é que leio um livro sensacional, descubro o autor on-line e marco uma entrevista (on-line, pelo telefone, pessoalmente) — e há este fluxo de informação e energia". E aposta nos jovens: "Meus três assistentes têm menos de 30 anos. Prefiro mil vezes passar uma tarde de ócio ou de trabalho intenso com eles do que com um burocrata blasé da minha geração." — JDB
1. Lúcia, eu queria começar pela maior referência, envolvendo você, para a minha geração. Estou falando do Manhattan Connection. Lembro que quando ele começou, em 1993, foi junto com a TV a cabo, no Brasil. Eu não tinha GNT ou Globosat, no início da faculdade, e ficava pescando os comentários semanais do Francis, retransmitidos por um colega que não perdia um único programa. Vem, até hoje, à minha lembrança a imagem do Francis metralhando, simbolicamente, o Robert Zemeckis, por ter dirigido Forrest Gump (filme de que, também, não gostei, ao contrário de todo mundo por aqui...). Enfim, depois que o Jô Soares desistiu da inteligência na telinha, o Manhattan virou o nosso último refúgio. Queria que você contasse como foi criar e desenvolver o programa, junto com o Lucas, nestes quinze anos. Falando, se possível, da sua saída, desde outubro do ano passado...
Eu participei do Manhattan desde o começo mas não como autora da ideia original do programa, que não foi discutida comigo. A mim coube a tarefa de produzir e fui em frente. No começo escrevia textos pro Lucas, depois veio o Caio e eu continuei, o meu papel foi evoluindo de acordo com as instruções do GNT e do Lucas. Não estou me excluindo do processo criativo porque um programa que começa é produto da contribuição da equipe, nas reuniões de pauta, na escolha de convidados. Neste sentido, acho importante lembrar que o Nelson Motta e o Francis são criadores do programa também. E lamento que não se dê mais crédito ao Luis Gleiser que dirigia a Globosat na época, e à Letícia Muhana, que dirige o GNT desde o primeiro momento e bancou o risco, participou de decisões. Não havia parâmetro para este tipo de produção em TV brasileira e não havia tradição de TV a cabo. Então, os executivos foram cruciais para o programa começar e sobreviver à incerteza inicial.
2. Antes de falar no Saia Justa — para onde você foi depois do Manhattan —, queria lembrar um pouco do Francis, afinal você, além de amiga, foi produtora dele na Rede Globo. Aqui, no Digestivo, nós homenageamos ele desde os 5 anos da morte, em 2002, depois, nos 10 anos, com o estímulo da própria Sonia, a quem, igualmente, já publicamos. O Paulo Francis foi, certamente, uma das maiores influências para a minha geração — para quem se interessava por cultura e não se contentava com a televisão, abastecia-se de revistas importadas e crescia com a Companhia das Letras. Naquele seu texto, que republicamos aqui, você lembra casos engraçados dele, opiniões iconoclastas e se mostra surpreendida por ele continuar sendo evocado. Entre seguidores e imitadores, não encontro ninguém que me convença, hoje, a voltar a ler a imprensa em papel, por exemplo. O Francis foi um produto da época ou era aquele tipo de gênio que se destacaria em qualquer tempo?
O Francis foi genial, único. E foi também produto de uma época que nos deu gente como Millôr, Geraldo Mayrink, Sérgio Augusto e o Lucas Mendes. Vamos lembrar que o Lucas trabalhou na mesma redação da Fatos e Fotos onde trabalhavam Sérgio Augusto, Argemiro Ferreira e Luis Lara Resende, irmão do Otto. Mas o Lucas começou na Globo, na década de 70 e o texto dele se tornou o melhor do jornalismo eletrônico. Quando eu comecei na Globo, mesmo que a gente estivesse fazendo texto para o Jornal Nacional — scripts curtos com linguagem simples —, o nível da redação era alto. Meu chefe era o Luís Edgar de Andrade, que espinafrava quando focas como eu escreviam besteira.
A impressão que tenho hoje é que algumas redações estão no piloto automático. E não acredito na desculpa do jornalismo em tempo real porque, no Jornal Nacional, eu e a Margareth Cunha (que me treinou na Globo) recebíamos três satélites diários recheados de VTs para editar numa ilha U-Matic, enquanto atualizávamos o script do locutor numa Olivetti (naquela época não se usava a palavra âncora). Os editores não deixavam passar besteira.
Às vezes, sou entrevistada por jovens e fico triste com o despreparo. Não é questão de inteligência. A culpa não é deles. É dos veteranos, dos chefes que soltam a turma. Como o nível em geral baixou muito, o leitor não cobra qualidade, o editor não edita e o repórter jovem vai perpetuando sua rotina solitária.
Se os editores do Estado não ficassem de olho saía erro na minha coluna e no "Aliás". Todo mundo precisa de editor.
3. Queria falar do seu blog. Sei que você não aprecia essa designação ao seu site, mas estou falando do blog em específico (como uma seção do seu site, se você quiser pensar). Você é muitíssimo admirada pelo Manhattan Connection — isso todo mundo já sabe —, mas eu confesso que fiquei espantado com a repercussão do seu site — e do seu blog. Insisto neste último, porque um dos blogueiros mais interessantes do momento (a meu ver), o Tiago Dória, logo elegeu sua empreitada na internet como uma das melhores coisas de 2008. Sendo que você tinha alguns meses, apenas, de site e de blog... Como está sendo a experiência? Até há pouco, eu te via atualizando incessantemente (como poucos blogueiros do Brasil fariam, aliás), forjando a "redação" da Lúcia Guimarães, enquanto "frilava" para jornais e revistas daqui. Você parecia entusiasmada, apesar dos e-mails inconvenientes, e do ambiente de guerra que permeia textos e comentários na internet... Era o que você esperava? Recomendaria?
Devo agradecimento aos leitores que se queixaram do meu sumiço em dezembro. Uma viagem ao Brasil e um vírus que me derrubou durante duas semanas me deixaram atrasada em tudo o que tinha para entregar.
Eu ainda estou aprendendo a fazer o site e suspeito que quem elogia está apontando o fato de que não é um blog convencional. O que é o jornalismo senão uma narrativa? Se você tem uma boa história para contar, se sabe contá-la e, melhor ainda, se ao ler a história a pessoa faz ligações entre o fato e o mundo à sua volta, está selado o pacto com o leitor.
Este pacto não dura se for baseado em ataques de narcisismo pueril, com histórias de gatinhos de estimação e o umbiguismo geral que é tão contagioso neste meio. O umbiguismo é de mão dupla e eu não o alimento quando me correspondo com leitores do site.
Vamos admitir também que nem todo mundo que escreve bem brilha em todos os estilos. Grandes repórteres podem ser cronistas fracos. Confesso que fiquei um pouco chocada com o que li em blogs há seis anos, quando escrevi aquela coluna "ego.com" (primeiro no Diário de Notícias de Lisboa, depois reeditei o texto para uma versão mais longa na saudosa revista da Livraria Argumento). Encontrei jornalistas que respeitava patinando numa maionese de autorreferência embaraçosa. O que mostra que, quando você confunde a liberdade permitida pela tecnologia com o simples abandono dos critérios tradicionais, o blog se reduz a um filho bastardo do jornalismo.
Quem aposta na pobreza da imaginação do leitor merece ouvir "Feelings" durante horas numa cabine, até pedir penico.
É claro que há uma diferença editorial entre mídias. Um texto meu sobre Israel e Gaza no "Aliás" (desculpe puxar a brasa para esta sardinha, mas considero o "Aliás" o melhor caderno de think pieces do Brasil) não vai conter observações como as que faço no site. No Estado de S. Paulo tenho um compromisso de sobriedade e contribuo para uma publicação cujo controle editorial não é meu. O jornal tem responsabilidades que não tenho no site. Dito isto, assim como as crianças têm amigos imaginários e conversam com eles, eu escrevo para o site sentindo o bafo quente do editor-feitor que vai me colocar no meu lugar. Não importa se estou de pijama e descalça, eu preciso ter medo de errar, de ser imprecisa nos fatos, de ser autoindulgente, de entediar o leitor. E tento também evitar um problema do jornalismo on-line e aqui não estou falando só de blogs. Acontece com jornalismo on-line de quem tem carteira assinada, seguro médico, aposentadoria e uma empresa por trás. É o parasitismo jornalístico de copiar e colar. Há uma diferença entre eu ler quatro jornais daqui para escrever um texto opinativo e escrever um post cheio de fatos cobertos por um repórter de uma publicação sem dar crédito. Por isso, uma das seções do site chama-se "Leituras". Eu seleciono um artigo que vale a pena ler, cito o autor, comento e se o leitor quiser mais, acha o link no meu texto.
4. Você, inclusive, desembarcou o nosso amigo Sérgio Augusto no meio do fogo cruzado do seu blog... Queria aproveitar a referência a ele e falar de jornalismo cultural. Uma das razões para a sua saída do Manhattan foi o fato de as pautas culturais estarem perdendo espaço lá. O que, convenhamos, não é propriamente uma novidade na imprensa brasileira (eletrônica, mais ainda) — sem contar que eu acho que você resistiu bastante, depois da saída do Francis (1997). Enfim, outro dia li um perfil sobre você, feito pela Maria Lucia Rangel, e depois um outro texto seu, uma crônica memorialística, e aqueles anos em que ser "jornalista cultural" era uma profissão me pareceram distantes... Na internet, que eu conheço relativamente bem, a coisa se diluiu bastante — as pessoas começaram a se servir das opiniões dos amigos, de virtuais desconhecidos... A gente volta na figura do Francis e na imagem do grande crítico, que era alguém simplesmente respeitado na sua área. Como você enxerga o futuro do jornalismo cultural? Tem futuro (como teve passado)?
Primeiro eu preciso admitir que leio imprensa brasileira muito menos do que deveria. É percalço da rotina de correspondente, o volume de mídia aqui é brutal, os sites em inglês mais ágeis e eu ainda tento me manter um pouco em dia com a mídia britânica. Não vou arriscar uma previsão, mas o melhor jornalismo cultural brasileiro foi feito por gente que não fazia faculdade de comunicação. Era gente que se interessava por cultura. Não dá para ser atingido por um raio aos 25 anos e decidir ser jornalista cultural, não é a mesma coisa do que ser setorista de agropecuária. Quem chegou à vida adulta sem ler, sem ir ao teatro ou ao cinema, ouvir música, nunca pôs o pé num museu ou galeria de arte vai ter dificuldade de cobrir esta deficiência.
O outro problema é o da cultura consumida em guetos de geração. O adolescente consome cultura de adolescente. Na minha casa se ouvia Frank Sinatra, Sarah Vaughan, Pixinguinha e Lamartine Babo (Beatles e até Black Sabbath quando meu pai não estava por perto). Ainda que você, como qualquer adolescente saudável, buscasse rebeldia nos livros e na música, a experiência cultural adulta entrava no seu sistema como vitamina e proteína, e você caía no mundo relativamente bem nutrido. Hoje a indústria de entretenimento trata a infância, a adolescência e outros segmentos de idade como um fim em si, estágios de vida congelados. As crianças e os jovens se isolam cada vez mais no quarto e têm tolerância zero para a conversa e o mundo adulto.
Uma vez minha filha chegou do campus de Boston no fim de semana com um amigo que cursava comunicação. Estávamos acabando de jantar; um grupo pequeno. Havia editores e escritores na sala. Ninguém mudou de assunto, é claro, para perguntar sobre a MTV. Eles sentaram conosco um pouco, ouviram em silêncio e, depois, minha filha me contou, comentaram entre si, espantados: que conversa inteligente, que pessoas incríveis. Não havia nenhum gênio na sala. Era como se os dois tivessem saído de um prédio abafado (o gueto jovem) e tivessem recebido uma lufada de ar fresco na cara.
5. Voltando ao Francis, mais uma vez, ele falava que, para produzir alguns minutos de televisão, era preciso dispor de horas... Você, como ele, se dá bem na tela como no texto — o que é uma raridade. A maioria dos nossos jornalistas que escreve bem, geralmente, se dá mal ao se expor em TV. Queria que nos contasse um pouco sobre essa intimidade com a televisão. Ainda no Manhattan, eu te via como alguém que foi conquistando cada vez mais espaço, até efetivamente dividir a bancada com aqueles senhores de terno... De qualquer forma, queria perguntar como vê — até ao longo da sua carreira — o "desenvolvimento" dessa mídia. Você me parece tão exigente com as pautas culturais, rigorosa na pesquisa, criteriosa na execução — que eu fico às vezes pensando... quem será que é parâmetro para a Lúcia? Decerto que os seus modelos não estão no Brasil (digo, na TV que se pratica aqui)...
Eu não fui pioneira de nada, apenas tive sorte. Não era ambiciosa e se estranhos me perguntassem quem eu era, provavelmente a maternidade seria citada antes do jornalismo. Sou um pouco teimosa, não costumo aderir a unanimidades. Para cada pessoa que tem algum reconhecimento, como eu, há dezenas de outras tão ou mais talentosas.
Veja a redação do "Caderno B" do JB na década de 70, da qual fazia parte a Maria Lucia Rangel. Se um jornalista tivesse o bom senso de gravar depoimentos semanais da Maria Lucia, sairia com um gordo volume de testemunhos de uma fase riquíssima da cultura brasileira. Quando eu quero ser recebida por um artista no Brasil, invoco o nome da Maria Lucia.
Meu parâmetro hoje na imprensa é o Sérgio Augusto que, além de brilhante, é o mais rigoroso jornalista cultural brasileiro. Apesar do conhecimento enciclopédico, pesquisa feito um condenado para escrever qualquer coisa, independente do destaque e do tamanho do texto.
Acho importante desmistificar a minha carreira. Eu fui mais ou menos empurrada para a frente da câmera porque estava na sala ao lado, porque não custava caro, sabe-se lá por que motivo. Quem ia entrar no ar depois da morte do Francis era a Katia Zero. Sei pouco sobre a negociação mas o fato é que não se completou, o programa precisava voltar ao ar e, como eu já estava no ar no Metrópolis e no Jornal da Cultura, alguém disse: "Experimenta com a Lúcia".
E eu acho graça da resistência que os jornalistas da mídia impressa têm com quem escreve para a mídia eletrônica. Em 99 eu escrevi um perfil do físico Marcelo Gleiser (irmão do Luís) para a Playboy. Deu uma trabalheira danada porque, quando cheguei no campus de Dartmouth, descobri que a importância maior do Marcelo nos EUA não tinha nada a ver com A Dança do Universo, o livro em que ele falava de ciência de forma acessível. Ele pesquisava uma área tão complicada, de física de partículas, que tive de repetir as perguntas várias vezes. O texto saiu mais ou menos saboroso e tentei incluir algum humor sobre a minha ignorância naquele ambiente acadêmico tão rarefeito.
Pois um importante editor de São Paulo, ao tentar me elogiar pelo perfil do Gleiser, disse o seguinte: "Poxa, eu não sabia que você escrevia bem assim!". Apesar de eu estar no ar há tanto tempo, o meu texto de TV não contava. Como não sofro de personalidade múltipla, concluo que o meu texto era o mesmo, no ar ou na página impressa.
6. Agora, o Saia Justa. A gente, aqui no Digestivo, tem algumas histórias com o Saia Justa. Eu escrevi em 2002 — e você lembrou, no ano passado — que havia um "parentesco" com o formato do Manhattan Connection. Na mesma época, o meu amigo Eduardo Carvalho, que o Lucas conheceu pessoalmente, desceu a lenha no Saia Justa. Mas fez tanto sucesso — e aquele título dele faz até hoje, no Google — que a própria Mônica veio responder nos comentários. (Espero que ela não tenha ficado desapontada conosco...) Enfim, o Saia Justa passou, como o Manhattan, por muitas encarnações e, para a minha surpresa (e do Eduardo), sobreviveu longamente no GNT. No site da revista Imprensa, você declarou que a Mônica te convida há anos... Queria saber como está sendo a sua experiência no programa. Eu elogiei o Saia Justa por apostar num lado da mulher brasileira que a TV pouco aposta, o lado da inteligência — ao contrário do sentimentalismo das novelas. (Como você sempre fez...) É por aí?
É totalmente por aí. A Mônica e a equipe toda detestam papo de mulherzinha. Todas são leitoras vorazes e cada uma sabe muito bem quem é, e a contribuição que tem para dar. Eu estou engatinhando no programa e ainda tenho que encontrar espaço para o que eu faço — enquanto me adapto ao formato que já existe e faz sucesso.
7. Fiquei surpreendido com o fato de que você não vai trocar Nova York pelo Rio, apesar de ter mudado do Manhattan Connection para o Saia Justa. Naquele perfil da Maria Lucia Rangel, você falava alguma coisa sobre ter uma ligação eterna com a cidade e, também, sobre ter se acostumado a viver dividida, como muitos "exilados voluntários"... Para nós, espectadores e leitores, é melhor que você esteja em Nova York, afinal, quem vai nos abastecer com novidades de lá? Fora que eu imagino que a riqueza cultural da — ainda — capital do mundo seja algo difícil de se encontrar em outro lugar... Suas visões do Brasil devem ter mudado, umas tantas vezes, de 1985 pra cá. Queria que compartilhasse algumas conosco. Você saiu na época da abertura democrática, encontrou o País presidido por um sociólogo, depois por Lula, veio a estabilidade econômica, vieram as privatizações, o "grau de investimento"... Como é enxergar o Brasil do seu ângulo? Entende, melhor do que nós, as aflições do (sempre inevitável) Francis?
Eu compartilhava de muitas das exasperações do Francis. Mas ele viveu numa Nova York diferente da cidade onde vivo hoje. O tráfego de brasileiros aqui é muito mais intenso, o Brasil é muito mais visível, relevante, conhecido e admirado nos EUA. Eu gosto de trabalhar aqui. As coisas funcionam. Outro dia tive uma experiência que nunca vou esquecer, fui ver o Gustavo Dudamel reger a Filarmônica de Nova York, o programa era a Quinta Sinfonia de Mahler. O Dudamel vai assumir este ano a Filarmônica de Los Angeles, de modo que era apenas o regente convidado. Saí completamente chapada do Lincoln Center, o cara é a maior estrela da geração dele. Em menos de uma hora a Filarmônica de Nova York já tinha me enviado material visual para eu fazer um post. E o Dudamel nem é o regente titular da orquestra.
8. E os Estados Unidos? E — assunto inescapável — a crise? Eu tenho um amigo que estava em Nova York durante o 11 de Setembro e, por algum tempo, a esposa dele não aguentava mais os pedidos, das pessoas, para saber como foi a experiência... Hoje, o momento é tão histórico quanto, eu penso. Afinal, desistir de acreditar nos Estados Unidos é, para muitas pessoas, como desistir de acreditar em Deus — fica-se um tempo, ainda, duvidando da própria descrença, como se não fosse possível um mundo sem uma grande nação (ou uma religião dominante)... No século XX, os EUA permearam nossa vida, nossa cultura, nosso imaginário — para o bem e para o mal. Este momento, na sua opinião, é tão crucial para os Estados Unidos como todo mundo diz que é? Ou a imprensa quer vender manchetes, a televisão quer vender sensacionalismo e os catastrofistas querem concretizar suas profecias? A esquerda se descaracterizou, mas a direita, também, não é mais o que era antes... Como você enxerga este novo milênio, Lúcia?
Eu sou míope física e psicologicamente. O Lucas Mendes dizia que eu enxergava a árvore mas não a floresta. Na minha miopia idiossincrática, vou chutar:
Sim, o mundo fica melhor quando os Estados Unidos não estão afogando os prisioneiros para obter confissões falsas, quando financistas não roubam 50 bilhões de dólares e quando o presidente, qualquer presidente, consegue articular pensamentos sem assassinar a língua inglesa. Não importa o seu antiamericanismo, não há país, no momento, capaz de se tornar o farol como foram os EUA no século XX.
Aqui vai um dado interessante: enquanto se disparava a hostilidade contra o país na era Bush, aumentou muito o consumo de TV americana no mundo, até na França. Estou falando de séries de qualidade como CSI, que deixa os franceses presos em casa. Outro termômetro é a adoração internacional ao Barack Obama. Culturas completamente diferentes estão projetando nele muito do que esperam de positivo dos Estados Unidos. Se os ingleses descolassem um primeiro-ministro negro não haveria uma fração deste entusiasmo.
9. Naquele mesmo perfil da Maria Lucia, você se revelava — como era de se imaginar — uma consumidora voraz de cultura. Queria saber, portanto, como vê o desaparecimento, progressivo, das mídias físicas. É uma questão que muitos jornalistas, oriundos do papel, evitam abordar — porque imaginam que, junto com o jornal (e as revistas), vão igualmente desaparecer. Mas você não tem medo e fala do livro eletrônico, e mete a colher nos blogs, há alguns anos, e tem uma abertura, para a "digitalização", maior do que a média dos jornalistas "pré-internet" no Brasil. Eu sei que o diletantismo on-line, principalmente no jornalismo cultural, preocupa você, mas queria saber, também, o que acha de outros movimentos culturais, como o do download em música, o da queda do DVD (e, não necessariamente, sua substituição pelo Blu-ray), a quebradeira de jornais agora nos Estados Unidos, a ligação mais estreita (e mais recente) da televisão com a Web, o Kindle e outros leitores de e-books... O que te deleita e o que te assusta nisso tudo?
Estou fascinada e assustada. Acho que, para começo de conversa, há um entrave corporativo para que certas transformações sejam menos destrutivas. O exemplo clássico é o da indústria do disco que, no começo, decidiu patrulhar e não abraçar a tecnologia. Foi dizimada. Quando o interesse principal é proteger o privilégio de uma minoria, quem quebra a cara são os produtores de conteúdo, os músicos, os jornalistas, os romancistas.
O problema do outro lado do espectro é quando as corporações, temerosas de perder o bonde, abraçam a mudança pela metade e montam um circo novidadeiro que nada mais é do que uma fachada para perpetuar um modelo de negócio. Os criadores de conteúdo continuam na senzala.
O que me deleita é que eu leio um livro sensacional, descubro o(a) autor(a) on-line e marco uma entrevista (on-line, pelo telefone, em pessoa) e há este fluxo de informação e energia. Uma vez liguei para o Gore Vidal, quando ele morava em Ravello e ele me atendeu porque usei a senha: Sérgio Augusto. "SSSerrrgio, how is he?" perguntou ele. Por conta de ser recomendada pelo Sérgio, ele me chamou para visitá-lo em Ravello. Ora, eu não podia viver de tantos frilas, criar filha e ir dar um pulinho em Ravello só porque me dava vontade. Não haveria publicação que tornasse a viagem economicamente viável. Hoje em dia eu tenho acesso a ícones culturais pelo Skype e, se isto não substitui uma tarde em companhia do entrevistado, aumenta o leque de opções. O acesso é facilitado quando escrevo um e-mail afiado, mando links do meu trabalho e eles entendem que não vão ouvir a pergunta, "como começou sua carreira?".
Mas a questão da queda de qualidade é terrível e eu não sei como apontar soluções. E devo deixar claro que atualmente meus três assistentes frilas têm menos de 30 anos. Prefiro mil vezes passar uma tarde de ócio ou trabalho intenso com eles do que com um burocrata blasé da minha geração.
10. Como é praxe, aqui, gostaria que você deixasse uma mensagem para os jovens jornalistas — ou mesmo diletantes culturais da internet (blogueiros?) — que nos lêem agora. Você foi privilegiada, pegou um Rio de Janeiro, e um Brasil, em que borbulhava a cultura, em que havia ainda grandes referências, em que mestres passeavam nas ruas... E pegou uma Nova York, e um Estados Unidos da América, numa ascensão, ainda que entre bolhas econômicas, com os anos Clinton, a internet, a globalização... Hoje, para quem é jovem, parece mais difícil separar o joio do trigo — ou é minha impressão? O sucesso da autoajuda e mesmo o tamanho do Google indicam, a meu ver, que as pessoas estão cheias de dúvidas, consultando oráculos, porque o relativismo cultural tomou conta... Para quem está começando agora, quais são as melhores bússolas, Lúcia? Conte, se puder também, da sua formação. Os tempos são — cada vez mais — outros, mas você deve ter lições a passar adiante...
Depois de ler a pergunta, pensei em tomar um Prozac. Eu não gosto da idéia de que vi o melhor e o que vem por aí é rebotalho. Realmente, eu desfrutei de um período cultural que era meio a Siena do Brasil. E, embora admita que tantos jovens foram roubados — servidos com educação medíocre e baixas expectativas, o Brasil é uma usina de talento jovem. Suponho e espero que segmentos desta geração vão chegar a certos destinos por caminhos desconhecidos para mim. Espero que eles rejeitem a mediocridade da autoajuda, as platitudes, rejeitem o narcisismo patológico na cultura, mantenham a curiosidade afiada, a compaixão — sim, a compaixão — , e não sejam fragilizados pela confusão entre arte e comércio, jornalismo e marketing. E não se sintam desencorajados porque a tecnologia tornou a atenção do público uma commodity tão rara e a celebridade, um termômetro tão perverso. Minha rotina depende cada vez mais de jovens e eu espero que continue assim.
Excelente entrevista, apesar carregada de valores que discordo. Superficialidade e impropriedade há em toda a parte, em todo o momento. O formato não irá medir ética ou competência.
Hoje os jovens jornalistas (e outras profissões) são mes ruins, por causa da péssima qualidade da educação. (Afigura-se-me que os políticos querem deixar o povo na ignorância, só para se perpetuarem no poder...)
Lúcia Guimarães é uma jornalista inteligente, culta, articulada e altamente consciente do seu trabalho. Concordo com muitas coisas que ela diz e até já disse coisa parecida em relação ao jornalismo cultural: hay que ter cultura: ler, ir a teatro, cinema, frequentar galerias e museus, enfim, saber do que rola nas áreas que se pretende cobrir e pesquisar muito. Parabéns e sucesso para ela no site onde acabei de dar uma passada. Ah, sim: ela enriqueceu muitíssimo o Saia Justa...!
Maravilhosa entrevista! Que experiência, Lúcia, na área do jornalismo cultural junto a ícones da área: Paulo Francis, Lucas Mendes e tantos outros exemplos de dedicação, profissionalismo e talento!
beijos pra você
do
Sílvio Medeiros.
Campinas, é fevereiro de 2009.