Entrevista com Paula Dip | Digestivo Cultural

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ENTREVISTAS

Segunda-feira, 2/11/2009
Paula Dip
Julio Daio Borges
+ de 20900 Acessos
+ 2 Comentário(s)

Paula Dip se consagrou na televisão, onde apresentou o programa Panorama, o "pai" do Metrópolis, da TV Cultura, e principalmente o Paulista 900, no horário nobre da TV Gazeta, durante o final dos anos 80, pelo qual é, até hoje, lembrada. Teve passagens igualmente marcantes pela imprensa escrita. Começou, no final dos anos 70, nas revistas Nova e Cláudia. Foi, nos 80, repórter de Veja e chefe de redação da revista Gallery Around, depois AZ, publicação da casa noturna de José Victor Oliva que marcou época.

E foi em redações de revistas como essas que Paula conviveu com o escritor Caio Fernando Abreu, que acaba de biografar pela editora Record. Além de amiga, Paula Dip foi musa do escritor — que lhe dedicou, fora inúmeras cartas, peças literárias e contos. A partir dessa correspondência com Caio, Paula estruturou
Para sempre teu, Caio F. — Cartas, Conversas, Memórias de Caio Fernando Abreu, que, mais do que a história do autor, conta a sua própria, desde o final dos anos 70, passando pelos ultimamente badalados anos 80, encerrando em meados da década de 90 (com a morte do escritor). Em 2010, o livro vira documentário, pelas mãos de Candé Salles, conhecido por seus trabalhos na Conspiração Filmes.

Nesta Entrevista, Paula Dip fala do estado da TV brasileira atual: "Hoje, o apresentador também é uma celebridade. Perdeu seu
status de pesquisador, seu lugar de neutralidade. Basta uma mulher ser alta, magra e bonita para virar 'jornalista e entrevistadora'. Os diretores de TV acham que o ponto eletrônico, por onde assopram as perguntas a elas, dispensam que sejam cultas e inteligentes para apresentar programas e entrevistar pessoas." E complementa: "Como telespectadora — que é o que sou agora —, sinto falta de uma TV mais articulada, com mais conteúdo."

Defende, também, os anos 80: "Tem gente que diz que a década de 80 foi uma década perdida, mas eu não acredito nisso. Não existe década perdida, nada se perde, tudo tem seu valor." Relembra como era estar perto de Caio Fernando Abreu: "Não tínhamos, naquela época, uma consciência muito clara de estar convivendo com um escritor vocacional." E fala de sua influência, igualmente, na atual biografia: "Caio era um grande ficcionista e no meu livro procurei 'assimilar' seu jeito de contar histórias, baseadas na própria vida". Para concluir: "Hoje, depois de ter escrito esse livro, parece que o Caio está mais perto de mim do que jamais esteve." — JDB


1. Lembro de você entrevistando o Paulo Ricardo, no auge do sucesso do RPM, quando ele disse que um de seus filmes prediletos era O Iluminado, do Kubrick. Também lembro da Luciana Vendramini, no auge da Playboy, dizendo que às vezes tinha vontade de paquerar alguém, mas que terminava intimidando os rapazes. Lembro, ainda, do Herbert Vianna, falando que o fim de uma relação é sempre doloroso — e imaginei que ele estivesse se referindo ao seu rompimento com a Paula Toller... Enfim, quando penso na Paula Dip, na televisão, me ocorre uma conversa inteligente, que hoje se perdeu... Ou não? Mesmo o Jô Soares, que era o último bastião, acabou se rendendo ao lado "circense" da vida... Todo mundo achava que a TV a cabo iria ser a salvação, mas, de lá pra cá, o nível caiu tanto... Como foram aqueles tempos, no final dos anos 80, e como você vê a televisão hoje?

Sinto saudades daquele tempo. Acho que fui a primeira apresentadora a ter um talk show diário no Brasil e tive a sorte de poder criar um estilo próprio, que pelo jeito deixou uma marca na memória de muita gente. Eu estava chegando de um período profissional muito bom em Londres, trabalhei durante 3 anos na BBC e assisti à melhor TV do mundo. Meu programa era uma novidade. Hoje, 20 anos depois, não há um dia em que as pessoas não me perguntem quando vou voltar à TV.

Eu nunca fui uma apresentadora típica, fiz faculdade, sou historiadora, jornalista, leio muito, sempre fiz questão de trazer um diálogo inteligente para a televisão, e acho que o público sente falta disso. Sempre fiz questão de tratar meus entrevistados, por mais célebres que fossem, como pessoas criativas, e, em nossas conversas, tocar em assuntos que iam desde a situação política do país até o trabalho delas, passando por momentos mais íntimos de suas vidas, sem apelar para a vulgaridade ou o exagero.

Mas naquele tempo não havia ainda a revista Caras, não existia esse culto absurdo às celebridades que afetou todos os meios de comunicação. Hoje, o apresentador também é uma celebridade. Perdeu seu status de pesquisador, seu lugar de neutralidade. Basta uma mulher ser alta, magra e bonita para virar "jornalista e entrevistadora". Os diretores de TV acham que o ponto eletrônico, por onde assopram as perguntas a elas, dispensam que sejam cultas e informadas para apresentar programas e entrevistar pessoas. Mas como a TV é um veículo essencialmente transparente, a falta de profundidade das entrevistas fica evidente.

Hoje eu vejo a TV mergulhada num excesso de ficção e reality shows. Não sei o que é pior: as novelas, que deseducam e se repetem de forma irritante, ou os programas falsamente espontâneos como os BBBs, os sensacionalistas e os shows de modelos e cantores confinados numa casa fingindo naturalidade. Como telespectadora — que é o que sou agora —, sinto falta de uma TV mais articulada, mais profunda. Não podemos nos esquecer que a televisão penetra de forma impressionante na casa das pessoas e num país como o nosso, onde o povo tem tão pouco acesso à cultura, deve ter uma função educativa, e não ser apenas entretenimento.

2. Uma coisa que me agradou na sua biografia do Caio Fernando Abreu foi a reconstituição que você, justamente, fez dos anos 80. Desde a virada, de 1979 para 1980, até os nossos heróis morrendo de aids: Cazuza, Renato Russo e, obviamente, o Caio F. Conforme registrei antes, soava natural, porque era você escrevendo, igualmente, a sua história... Em geral, quando fazem retrospectivas dessa época, ficam muito presos ao movimento das "Diretas Já", deixando a parte cultural meio de lado, ou apenas puxando para aquela "cultura de almanaque" — os videogames, a moda das ombreiras, o nascimento do "padrão SBT de televisão"... Se continuamos cantando aquelas canções até hoje, é porque deve haver algo mais; se o Caio Fernando Abreu vem crescendo desde então, como escritor, é porque deve haver algo mais... Você acha que ajudou a atribuir "novo valor" aos anos 80, no panorama da nossa história cultural?

Fiz questão de retratar os anos 80 em meu livro. Tem gente que diz que a década de 80 foi uma década perdida, mas eu não acredito nisso. Não existe década perdida, nada se perde, tudo tem seu valor. Caio e eu, e toda a nossa geração, éramos jovens nos anos 80, e apesar da ditadura, e todas as dificuldades que enfrentamos então, assistimos e participamos de uma revolução fundamental: foi como a descoberta do fogo, ou da eletricidade. O século XX inventou a internet e desde então o mundo nunca mais foi o mesmo. Foi a partir dos anos 80 que houve a liberação sexual (que hoje tem tantos reflexos na sociedade), foi nos anos 80 que o computador se popularizou, somos a primeira geração de longevos que tem a oportunidade de analisar nossa própria trajetória ao vivo e em cores, e fazer uma retrospectiva histórica a nível global. Fomos nós que acordamos para a ecologia e para uma vida mais saudável no planeta. Caio e eu fomos personagens dos anos 80 em São Paulo, não há como negar isso, e tudo o que minha geração faz ou diz, traz uma nova luz para esse período da nossa história cultural.

3. A gente associa o Caio Fernando Abreu aos anos 80, mas ele, na verdade, é de 1948. Fiquei surpreso, por exemplo, ao saber que ele participou da fundação da Veja — e está naquela foto, histórica, sob o comando do Mino Carta... O interessante, contudo, é comprovar que "Caio F." nunca gostou de jornalismo, fez mais para se sustentar, reservando o melhor de si para a literatura. Cultivou, portanto, um ideal quase mítico — do rapaz que vem de uma cidade menor para uma cidade grande, construir uma carreira e se "consagrar" como escritor... Conseguiu, mas, por ser tão romântico, pagou um preço alto também... Reparei, ainda, que quase todos os depoimentos, no seu livro, são unânimes em afirmar a primazia do escritor, sobre qualquer outra ocupação, em Caio Fernando Abreu. Quero, por fim, te perguntar: como era conviver com um "escritor vocacional", desde o início? E se você acha que a nova geração — da internet, dos blogs — ainda tem esse sonho de escrever, como Caio F. tinha...

A geração que foi jovem nos anos 80 nasceu na década de 1950. O Caio é associado aos anos 80 porque foi nessa época que atingiu seu auge como escritor. Foi quando publicou seus principais livros e se tornou uma referência literária. Não tínhamos, naquela época, uma consciência muito clara de estar convivendo com um escritor vocacional. Quando falamos disso hoje, é sob a ótica de 20 anos depois: só agora sabemos que a literatura de Caio atravessa gerações e continua muito viva até hoje. Ele não ficou datado porque aborda questões universais e seu estilo é impecável e original.

Não sei se essa nova geração da internet e dos blogs tem o sonho de escrever como Caio tinha. Sou contra esses sites de relacionamento tipo Orkut e Facebook etc., acho que perdemos muito tempo com isso. Tem gente que tem a pachorra de ter fazendas virtuais nesses sites! Acho ridículo. (Que falta do que fazer, meu Deus!)

Para quem quer ser escritor e gosta de escrever, sugiro que freqüente a internet apenas para fazer suas pesquisas, trocar e-mails e ler bons textos literários. E leiam muito, sempre. Como dizia Clarice Lispector, que o Caio adorava e que é uma de nossas maiores escritoras: "Ler é uma forma de escrita." É preciso ler muito para se tornar um bom escritor. E acho que quando alguém quer ser escritor, e tem em si esse chamado, essa vocação, nada o impedirá de chegar lá.

4. Você, pelo seu lado, se formou em História mas estreou no jornalismo logo cedo, e foi longe. Você fez, efetivamente, uma carreira dentro do jornalismo brasileiro (e internacional). E, a meu ver, participou de algumas das iniciativas mais importantes de cada período, tanto em papel, quando em mídia eletrônica... Você, ao contrário do Caio, nasceu para o jornalismo, e atingiu o que, para muita gente, é a consagração máxima: o horário nobre da televisão. Depois, você se retirou, conforme soube, para cuidar da sua filha... Então, a pergunta óbvia: o jornalismo, para você, se esgotou, como ocupação profissional — uma vez que "voltar", talvez, significasse aceitar uma posição de menor destaque (do aquela que você conquistou, antes de se retirar)? Ou o jornalismo é algo para se fazer "durante algum tempo", mas não "para sempre", considerando-se o desgaste? Por último: queria saber como vê o jornalismo praticado hoje — tanto no papel (jornais, revistas) quanto na mídia eletrônica (rádio, televisão)...

Já falei um pouco sobre o jornalismo praticado hoje. Acho tudo meio raso, meio banal, especialmente nos programas de entrevistas, mas há momentos inteligentes como, por exemplo, o Jornal Nacional e o Caco Barcellos, o Globo Repórter, especialmente o trabalho da Sônia Bridi, o jornalismo da Record, o Boechat, na Band, o Boris Casoy, enfim, há algumas belas exceções. Não creio que eu volte a fazer TV. Recentemente fiz contato com um canal de TV para voltar com o Paulista 900, o que seria ótimo, e tenho certeza de que daria uma boa audiência, pois é um programa que tem tradição. Mas eles preferiram fazer um programa de entrevistas cujo apresentador é um cantor dos tempos da Jovem Guarda. Eu gosto dele, mas não é a mesma coisa: um jornalista é um jornalista — mas acho que isso não importa mais na mídia televisiva. As pessoas só pensam em sucesso fácil.



5. Entrando na realização do livro sobre o Caio Fernando Abreu, senti que você, justamente, não escolheu o caminho "mais fácil" — que seria procurar uma posição numa mídia que já te conhecesse —, preferindo se lançar num desafio novo... Não deve ter sido fácil, justamente, porque o livro mistura uma personalidade complexa, a do Caio, com a sua própria história (Paula Dip), os seus próprios sentimentos, e o retrato de uma época (sendo que, quando estamos envolvidos, é sempre mais difícil manter a "objetividade")... Você anda lado a lado com o Caio, no livro, mas, lá na frente, prefere se retirar, enquanto deixa o Caio nos seus últimos momentos, que são os mais delicados de se abordar... Estou fazendo quase um julgamento aqui, mas queria que você, naturalmente, contasse como foi tudo isso. O que te custou mais e o que te deu mais satisfação: reunir o material, os dados; coletar os depoimentos, fazer as entrevistas; costurar tudo; escrever; "participar" da história?

Escrever um livro é um mergulho tão visceral que não dá para saber o que custou mais ou o que foi mais fácil. Chega uma hora em que o texto se impõe, assume o comando e vai se desenhando à nossa frente. Escrevo como jornalista que sou, faço entrevistas, citações, checo fontes, leio a bibliografia.

Caio era um grande ficcionista e no meu livro procurei "assimilar" seu jeito de contar histórias, baseadas na própria vida. Tentei me apropriar dessas ferramentas que ele dominava tão bem e comecei com as nossas cartas, depois fui atrás dos amigos, a família, os astrólogos, atores, escritores.

Caio sempre foi a principal personagem, mas ao longo do livro, eu me descobri coadjuvante da história, afinal, eu fui "musa" dele, como ele mesmo dizia: ele escreveu pelo menos um conto claramente baseado em nós e na nossa amizade. Ao incluir certas passagens da minha vida, fiz um contraponto ao universo dele e dei a ele alguém com quem dialogar, que era o que de fato acontecia entre nós: um diálogo. Eu quis exaltar a importância que ele tinha para quem que se aproximava dele. Além disso, certas cartas precisavam ser contextualizadas para serem entendidas.

Caio era um amigo exigente, doava sua alma aos outros, mas exigia doação idêntica. Tinha uma sensibilidade profunda, dolorida mesmo, era um homem muito solitário, a ponto de alguns não acreditarem que ele tinha amigos. Há quem diga que ele estava só atrás de personagens para suas histórias. Mas eu acredito que ele era pura emoção e nos fazer personagens de seus livros era seu jeito de dizer que nos amava.



6. Você fala de um episódio interessante, de alguém que te abordou numa locadora, perguntando se era a "Paula Dip" — aquela a quem Caio Fernando Abreu dedicou um conto... A literatura ainda conserva essa magia de atribuir, a algumas coisas, certa "eternidade"? Uma vez, lembro que chamei uma artista de "figura histórica", e ela fez uma careta, como se aquilo lhe jogasse um peso enorme sobre os ombros... Enfim, você mostra, no livro, como o Caio foi se "consagrando" — mas eu queria saber se vocês, amigos dele, imaginavam que sua obra adquiriria essa dimensão, que adquiriu depois... A ponto de você ser considerada "célebre", no meio da rua — por ter ganho uma dedicatória dele... Eu pergunto isso porque os escritores, no Brasil, não são, exatamente, celebridades... (Tirando o Paulo Coelho.) Você escreveu esse livro, você sabe quanto custa revelar o valor de um projeto a que dedicou tempo, energia, dinheiro... Ser escritor ou "se tornar" escritor é a aposta de uma vida inteira, que se comprova pela trajetória de Caio Fernando Abreu?

Não sei se ser reconhecida por um fã de Caio significa que eu seja "célebre". Mas é realmente impressionante o número de jovens apaixonados pelo texto do Caio. Quanto ao projeto do livro e o tempo gasto nele, é algo que combinei com o Caio que iria fazer e cumpri a promessa.

Não sei se com isso me tornei uma escritora, acho que estou apenas no começo. Escrever um livro de mais de 500 páginas é organizar um enorme quebra-cabeça. Este é meu primeiro e confesso que, em alguns momentos, deu branco e eu parava e pensava no que Caio faria naquele momento, como ele sairia daquela sinuca. E sempre que o invoquei, de alguma forma ele veio em meu socorro: através de um amigo que surgia no caminho, uma citação num livro, um filme, uma daquelas coincidências que ele chamava de "mágicas". Ele dizia que não existiam coincidências, que tudo faz parte de um plano universal que conspira a nosso favor. Não sou mística, mas fiquei impressionada quando entrevistei pessoas que dizem que "sentem" que Caio continua por perto, sonham com ele e sabem que ele está presente em suas vidas. Hoje, depois de ter escrito esse livro, parece que o Caio está mais perto de mim do que jamais esteve.

7. Ainda sobre escritores (acho que esta pergunta vai interessar os nossos jovens leitores)... Outro dia, li uma declaração do Luiz Schwarcz, editor-fundador da Companhia das Letras, admitindo que, nos mais de 20 anos da editora, não se havia dado a atenção — que ele considerava "devida" — aos estreantes... Inclusive, ele complementava que solicitava, agora, aos jovens funcionários da Companhia, que indicassem "novos valores", para tentar preencher essa lacuna... É, no mínimo, interessante; porque foi ele quem, praticamente, lançou o Caio Fernando Abreu (junto com o Pedro Paulo de Sena Madureira)... Paralelo a isso, me ocorre toda aquela explosão de juventude, graças ao chamado "BRock", com as gravadoras investindo maciçamente... Você ainda narra essa, digamos, "efervescência", nas redações em que trabalhou nos 1980s... O que houve com o mainstream, de lá pra cá — por que se tornou tão conservador? A gente vê uma explosão de talentos na internet; mas o rádio, por exemplo, ainda toca "sucessos" do século passado; a televisão tem trilha sonora, também, dos 1900s; os jornais estão cheios de "dinossauros"; as revistas só querem saber de "fofocas"...

Acho mais difícil ser jovem hoje do que naquele tempo... Havia a repressão da ditadura, não havia liberdade, não havia internet, mas, quem sabe por isso mesmo, a gente tinha mais garra, as proibições funcionavam como um "motor" para a gente se superar e superar os obstáculos. Éramos mais românticos, acreditávamos em criar alguma coisa nova, em mudar o mundo. Hoje acho os jovens pouco motivados, como se já tivessem encontrado tudo pronto, não sei... Vai ver que é nostalgia da minha parte. Ou então, nós, da geração baby boomer (nascidos logo depois da Segunda Guerra Mundial), ficamos mais conservadores, como costuma acontecer..

Lutamos muito para conseguir um lugar ao sol, fomos uma geração privilegiada em muitos sentidos: é a maior geração (em número de pessoas) de que se tem notícia. Depois do advento da pílula, e por causa de outras questões econômicas, houve uma enorme queda no índice de natalidade. Somos numerosos, inventamos a "geração saúde", a ecologia, o computador, a juventude "eterna", não queremos sair de cena... Tenho um amigo que diz que nós, os baby boomers, vamos ter que ser abatidos a tiros...

8. Eu falei das revistas, mas, naturalmente, coloco a Around — que vocês fizeram para o Gallery — em outro patamar, se comparada a Caras, Contigo... O Antônio Bivardiz, no seu livro, que foi uma experiência, inclusive, "literária"... E eu li aquele texto do Caio Fernando Abreu — que você republica na íntegra —, e achei uma maravilha, me diverti à beça, é bem escrito... Enfim, acho que até o "colunismo social" era melhor no mainstream de antes... Por exemplo, o Ibrahim Sued — que cunhou expressões como "linda de morrer" e "sorry, periferia" — foi substituído por quem... José Simão? (Tutty Vasques?) Mesmo nos grandes jornais, eu sinto que a coluna social é uma sequência de " resumos"... de releases... Ninguém mais apura nada, "cobre" nada, vem tudo mastigadinho... das assessorias — que, inclusive, "pautam" (porque os editores não tem mais tempo etc.). Estou sendo muito fatalista ou esse é mesmo o quadro do nosso jornalismo? Como você enxerga, como leitora e como profissional de comunicação?

A Around foi uma experiência interessante porque era uma revista leve, bem humorada, tínhamos muita liberdade para criar e inventar novas fórmulas e, de fato, ela não era uma Caras ou uma Contigo. Tinha conteúdo, aliás, era isso que Caio e eu fazíamos lá: fomos chamados para trazer um jornalismo mais profissional e engajado à revista. Sem contar o talento incrível do Antonio Bivar, autor e dramaturgo, cultíssimo a pessoa mais antenada que já conheci. Era gostoso fazer a Around, inclusive, porque vivíamos num tempo em que o jornalismo estava amordaçado, e a gente tinha que inventar um jeito novo e criativo de se comunicar...

Muitas matérias dos grandes jornais eram censuradas, os jornais publicavam receitas de bolo na primeira página (para deixar claro que aqueles eram os lugares de onde os censores haviam tirado os textos). Não havia eleições, as liberdades civis estavam suspensas, a música, a literatura, o cinema eram censurados, as pessoas eram presas se criticassem o regime ou se tivessem qualquer ligação com o socialismo, eram torturadas, morriam. Um verdadeiro sufoco, como foi por exemplo o episódio do Vladimir Herzog.

Quanto à segunda parte da pergunta, confesso que não sinto saudade do colunismo social do Ibrahim Sued, do Tavares de Miranda, do Zózimo, da Alik Kostakis etc. Não se trata de uma crítica pessoal, eles eram todos pessoas maravilhosas, mas não gosto de colunismo social como gênero jornalístico, acho uma grande bobagem, que só vale à pena se não for levado muito a serio. Por isso eu acho o Simão bem divertido, pelo menos ele subverte esse colunismo tradicional... que paparica os poderosos, e que alimenta esse ambiente de celebridades em que vivemos, essa badalação, a "fama pela fama", os paparazzi... Não sinto a menor falta desse tipo de jornalismo.

9. Voltando aos recorrentes anos 80, geralmente falamos que os anos 60 provocaram uma mudança comportamental sem precedentes etc., mas eu também acho que, mesmo com a aids, a geração de vocês rompeu ainda com vários tabus. No seu livro, por exemplo, há aquela história da sua primeira vivência internacional, quando tem de brigar muito para conseguir viajar... Depois, sua ida, para a BBC, em Londres — onde não foi apenas como "acompanhante", mas teve a oportunidade de se desenvolver profissionalmente etc. Fora que toda a sua trajetória, Paula, é a de alguém que abriu outras portas para muitas mulheres que vieram depois — no jornalismo, na televisão... Com relação ao Caio, nem preciso ir muito longe: ele se assumiu como escritor, como bissexual, como outsider... É quase clichê esta pergunta, mas você acredita que as pessoas realizam, efetivamente, mais quando têm alguma coisa por que lutar?

Com certeza, acho, sim, que as pessoas realizam mais quando têm alguma coisa por que lutar (e comentei isso de alguma forma acima)... Apesar da liberalidade quase libertina de hoje, e dessa postura de achar que "tudo é muito natural" (característica da juventude), acredito que as novas gerações sempre devem ter algo por que lutar. Hoje não há mais a ditadura, vivemos numa democracia, a revolução sexual já foi feita, o mundo é globalizado, mas há outros apelos, outras lutas: tais como apelo de salvar o planeta, lutar contra a fome e a pobreza na América Latina, na Índia e na África — e devolver o significado às relações entre as pessoas, em todos os níveis: desde a preocupação com a saúde, a educação, até a paz e o amor universal. Algo de que Caio falava sempre: o amor entre todos os indivíduos.

A violência é um tema importante: existe hoje um nível de violência ligado às drogas, ao roubo, que é quase intolerável. Falta um espírito de comunidade, falta o amor pelo humano, pelo outro. Podemos fazer uma enorme diferença nesse sentido. No micro(e no macro)cosmo. Esse, a meu ver, é o desafio e o grande tema dessa geração que está aí.

10. A última pergunta aqui é praxe... Queria que você pensasse nos nossos jovens leitores da internet e resumisse o que diria para quem quer se lançar no jornalismo, nas mídias eletrônicas, no mercado editorial ou, mesmo, no ramo das artes plásticas (onde você também se embrenhou, eu soube)... Se for muito ampla a resposta, você poderia falar da sua experiência, simplesmente — o que deu mais certo e o que não deu; o que repetiria e o que evitaria. Você fez História, mas acha que há alguma outra formação que escolheria cursar (se começasse hoje)? E na questão do "fim da exigência de diploma de jornalista", você palpita? A internet pode ser um espaço interessante para experimentação? E o velho mainstream — apesar de tudo, ainda é uma "escola"? Por fim: os amigos de jovens escritores têm de prestar bastante atenção neles, porque, um dia, podem ser eternizados, em páginas, como as que o Caio Fernando Abreu dedicou à sua amiga Paula Dip?

Repito: não sou fã da internet. Acho que é mais um grande instrumento a ser utilizado, uma fonte de pesquisa, um meio, mas não um fim.

Quanto ao que deu certo e errado na minha carreira, é difícil generalizar e dar exemplos, mas acredito que faria tudo do mesmo jeito, não tenho arrependimentos. Sempre fui atrás do meu coração e acho que quando seguimos o coração não dá para errar.

Quanto ao fato de nos eternizarmos, acho que há muitas maneiras de se fazer isso e em diversos níveis: podemos ser pessoas simples que trabalham em profissões menos glamorosas, tendo filhos e criando cidadãos saudáveis e responsáveis, deixando um trabalho significativo para a humanidade. Não apenas na literatura, mas também no campo da ciência, da socióloga, da arte, seja onde for.

O mais importante hoje é pensar na humanidade como um todo. O mundo exige de nós uma postura mais generosa e humanista... e tudo e tal (era assim que Caio terminava algumas de suas frases)...

Para ir além






Julio Daio Borges
São Paulo, 2/11/2009

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
4/11/2009
22h28min
Adorei a entrevista, ela explica muitas coisas com as quais eu concordo.
[Leia outros Comentários de Silvia Caroline ]
9/1/2010
10h50min
É engraçada a diferença que se faz quanto à vocação, porque talvez quem se dedica horas a uma atividade, exercitando, treinando, ajustando, tenha mais vocação do que quem consegue fazer com facilidade. E talvez vocação não signifique talento, esse é o maior tormento de quem faz algum tipo de arte, há ou não talento, eis a questão. Realmente o período atual não mobiliza as pessoas a ponto de motivá-las em busca de sentidos existenciais, como a falta de liberdade motiva (motivou), mas em qualquer época há algo pelo que lutar. A vida é meio cíclica, luta-se pelo amor e atinge-se um ponto de alienação, onde tudo parece "cor de rosa", então é hora de tentar equilibrar lutando-se por outros valores e aí vem um ponto em que os homens podem se tornar embrutecidos, então é hora de defender o amor outra vez. E defender o amor não é nada fácil. Mas a própria criação de um texto é um desafio: O que dizer, de que forma, com que propósito? No entanto, isso fica pra quem lê, descobrir os porquês.
[Leia outros Comentários de Cristina Sampaio]
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