Harry Crowl nasceu em Belo Horizonte no ano de 1958. Compositor e musicólogo, com um catálogo até o momento de 120 obras, sua música tem sido executada e transmitida frequentemente no Brasil e em vários países por grupos e orquestras, dos quais se destacam o Trio Fibonacci (Canadá), o Ensemble Recherche (Alemanha), Orchestre de Flutes Français e Ensemble 2E2M (França), Moyzes Quartet (Eslováquia), The George Crumb Trio (Áustria), Orquestras de Câmara da Rádio Romena e da Cidade de Curitiba, Orquestras Sinfônicas do Paraná, Minas Gerais e Municipal de Campinas.
Foi delegado brasileiro junto à SIMC (Sociedade Internacional de Música Contemporânea), entre 2002 e 2006. Tem participado dos principais festivais dedicados à música contemporânea no Brasil, como a Bienal de Música Brasileira Contemporânea (Rio de Janeiro), Festivais Música Nova (São Paulo/Santos), ENCOMPOR (Porto Alegre), Festival Latino-Americano de Música Contemporânea (Santiago, Chile), entre vários outros. Atualmente, é Professor da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Diretor Artístico da Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná e produtor de programas de rádio da Paraná Educativa FM.
A entrevista abaixo, que trazemos ao publico leitor do Digestivo, trata da criação do artista e traz uma reflexão sobre os caminhos e descaminhos da música contemporânea em nosso país e fora dele.
Pelo seu currículo vê-se que você tem um trânsito internacional no universo da música erudita contemporânea. Como anda a criação e a recepção dessa música pelo mundo?
A música de concerto nunca deixou de ser executada. Mesmo a música contemporânea tem mantido o seu espaço através de festivais e programações regulares em todas as partes onde a cultura de tradição ocidental tenha maior penetração. Aliás, tem havido um crescimento significativo dessa música na Ásia.
A música erudita contemporânea (tal como ocorre nas artes plásticas) parece um espantalho do qual todo mundo teme e corre. Até A sagração da primavera, de Stravinsky, ainda parece incomodar o público dos concertos, acostumado a um repertório bem tradicional. Como você vê explica essa situação de rejeição ainda hoje?
Bem, assim como nas artes visuais, trata-se de uma expressão que tende a ter seu público próprio. Essa rejeição absoluta à música mais moderna, ou do século XX de um modo geral, só acontece em sociedades muito conservadoras onde música é apenas sinônimo de canção, ou de alguma melodia para ser cantarolada. As sonoridades trazidas pelo século passado já estão profundamente arraigadas na sociedade moderna. Basta ficarmos atentos à música no cinema e na mídia de modo geral, nas várias manifestações de música popular, como o rock progressivo e a música tecno, ou (pseudo)eletrônica das baladas.
Como compositor você poderia relacionar algumas características das suas composições?
Há, na minha música, um estado de contemplação no plano mais superficial e uma grande inquietação subliminar. Quando uso formas pré-estabelecidas, essas não são as consagradas pelo classicismo, como a sonata, rondó, variação, passacaglia etc. Crio formas próprias ou busco formas em obras do século XVIII para trás e que são provenientes, muitas vezes, de música religiosa, e utilizo a técnica de variação contínua, frequentemente. Há sempre uma narrativa que aponta para referências externas à música, como a literatura, poesia, ou imagens visuais de qualquer natureza.
Você tem musicado textos/obras de poetas como Affonso Ávilla, Haroldo de Campos e da poesia simbolista. Como se dá a relação entre a música e esses textos nas suas composições?
Diria que, apesar de, no caso do Affonso e do Haroldo, se tratar de poetas de vanguarda, ligados a uma linha de experimentação da linguagem, a minha abordagem tende a ser a partir de uma dramaturgia tradicional, no sentido de sublinhar os textos com a música. Ou seja, tenho a preocupação de manter a inteligibilidade dos textos e explorar a sonoridade do idioma. No caso da poesia simbolista, procurei explorar o caráter intimista e um tanto sombrio desses textos que, para mim, se identificam muito com uma certa porção do sul do Brasil.
Existe algum (ou alguns) compositor que você admira muito e que influencia a sua música?
Naturalmente. Tenho admiração por muitos compositores atuais, mas a minha preferência ainda recai sobre compositores da velha guarda, ou seja, da primeira metade do século XX. Citaria Ives, Villa-Lobos, Schönberg, Berg, Debussy, Stravinski, Messiaen e Lutoslawski.
Como tem sido a recepção de sua música pelo mundo?
Não posso reclamar. Não é fácil, especialmente para um compositor que está fora do circuito principal de Europa/América do Norte/Ásia, como eu, conseguir espaço. A recepção é sempre boa. Mais discreta em alguns lugares e muito calorosa em outros. Nos últimos dois anos, tive quatro estreias em Paris, cidade com a qual nunca tivera maior proximidade. Já tive acolhidas surpreendentes na Áustria e na Dinamarca, durante a década de 1990 e, mais recentemente, na Bulgária. Fico muito surpreso quando chegam ao meu conhecimento transmissões de gravações de minhas obras em países completamente fora do meu círculo de relações, como já foi o caso de Israel e países africanos como Argélia e Cabo Verde, através de programas de rádio.
Artistas da escola de Viena como Schönberg, Webern e Berg, são ainda importantes como referência para música contemporânea?
Sim, é claro. Esses compositores sempre vão ser uma referência obrigatória para a música que vem sendo escrita depois deles, mesmo que seja para negá-los. A expansão do pensamento musical a partir deles foi um marco na história da música.
Pode-se dizer que a música contemporânea é um instrumento de reflexão sobre o seu próprio tempo?
Acho que se pode dizer isso de toda a arte. Evidentemente, como vivemos numa época na qual a informação sobre tudo e todas as épocas está facilmente disponível, encontramos alguns compositores que preferem se alienar e escrever música como se fazia há 150 anos. Mas isso também é um fenômeno atual. Há um permanente confronto entre o conceito de arte como entretenimento versus arte como reflexão. Na música, isso não é diferente.
Como musicólogo, você acha que no Brasil ainda falta muito para se criar uma visão ampla da história de nossa música e de instrumentos eficazes para a sua preservação?
Diria que muito se avançou no sentido de se levantar a questão sobre a importância de se executar música produzida no Brasil em várias épocas. Hoje, temos um conhecimento quase satisfatório sobre a música produzida no período colonial. Mas falta ainda uma reflexão crítica mais aprofundada. Estamos ainda muito influenciados por preconceitos da época do modernismo, tais como a necessidade de legitimação do discurso através de um viés nacionalista. Há, para mim, uma necessidade de uma maior integração da musicologia com as teorias da história, assim como com a sociologia e a antropologia. Esse problema frequentemente se reflete nas discussões culturais sobre música. O antagonismo entre a música popular e a de concerto tende ainda a ter uma sobrevida no Brasil. Há ainda um patrulhamento estético em muitos segmentos, inclusive em alguns meios acadêmicos, no que diz respeito à produção mais recente.
Existe ainda na música contemporânea um conceito como chef d'oeuvre? Ou existe uma total liberdade de regras e preceitos como nas artes plásticas?
De um modo geral, não. Há uma total liberdade de regras, sim. Mas espera-se sempre que haja coerência no discurso musical.
No Brasil a tradição da música erudita brasileira me parece que ainda fica à sombra da europeia, pois o repertório das orquestras brasileiras pouco executa obras de nossa música. Por quê? Esse quadro está mudando? Há espaço para os compositores contemporâneos?
As orquestras no Brasil, na sua grande maioria, não têm qualquer política cultural. São organismos públicos que servem, na maioria dos casos, de instrumentos de poder e prestígio dos regentes, ou dos políticos por trás delas. A música europeia que tocam é a do passado, dentro do desgastado cânone clássico/romântico. O espaço para os compositores atuais tem dependido da relação, sempre pessoal, com os regentes das orquestras. Já venho reivindicando, há vários anos, a criação da figura do compositor-residente, que existe há bastante tempo nas orquestras mais importantes do mundo.
Prezado Harry, a música do século XX não tem rejeição apenas em sociedades muito conservadoras, mas em 98% da população. Dentre os 2% restantes, 90% compõem-se de pessoas que não compreendem, não gostam, mas para passar por intelectualizados, aplaudem...
Além disso, o "cânone clássico/romântico" jamais poderá ser "desgastado", pois ele é o que move a arte desde que o mundo é mundo. A alternância entre "clássico" (forma acima de conteúdo) e "romântico" (conteúdo acima da forma) existe desde sempre, até hoje, inclusive. A música do século XX nada mais é do que uma forma "neo-clássica" de se fazer música, a partir da organização anti-natural do dodecafonismo de Shöenberg até as repetições ultra pensadas das peças de Philip Glass. Tudo é forma acima de tudo. Recentemente, alguns compositores, como parece ser o seu caso, tentaram renovar a forma, ou prescindir dela. Em todo caso, esta seria uma maneira de "re-romantizar" a música, fazendo com que o eterno ciclo "clássico/romãntico" se perpetue. Grande abraço.
Acabei de ler a entrevista do compositor Harry Crowl ainda sob impacto do último concerto da Orquestra Municipal de Campinas que assisti domingo passado. Um dos raros corpos estáveis de música erudita que se mantém fora dos grandes centros e fomenta o interesse e a difusão deste gênero musical no país seja com um repertório tradicional ou divulgando novos autores. Na mesma cidade, a Orquestra Sinfônica da Unicamp, universidade de referência, apenas realiza concertos "intra-muros" de nenhum acesso à população local. Independente da discussão da abrangência de repertório na dicotomia "contemporâneo versus cláasico" há uma questão que me parece anterior e mais urgente: as políticas públicas de apoio e veiculação cultural à música erudita no Brasil. Do contrário, seja ouvindo Bartok, Berio ou Bach, continuaremos vendo uma diminuta elite, envelhecia e conservadora, conotando ares de "templo" a espaços que deveriam ser de todos.