"É bem verdade que se torna cada vez mais raro encontrar motivos para entusiasmo na arte dos nossos dias", diz Sheila Leirner ao Digestivo Cultural. Pensadora ousada e sem medo de navegar sobre a dúvida, Leirner diz que a crítica sempre terá papel importante, pois "quanto menor for a credibilidade na arte, maior será a credibilidade na crítica. Paradoxalmente, a crítica torna-se forte apenas em duas situações: quando a arte é muito forte e quando a arte é muito fraca".
Na entrevista a seguir, Sheila Leirner discute alguns dilemas da arte contemporânea, debate sobre os sentidos da crítica de arte e da curadoria, e fala sobre as Feiras de Arte e a Bienal. Comenta também as posturas reativas à arte contemporânea de Ferreira Gullar e Luciano Trigo, discutindo algumas idéias de Jean Baudrillard. Ainda explica como a experiência com a arte "pode ser extremamente desestabilizante e assustadora" e vaticina sobre a decadência do jornalismo cultural sob o domínio empresarial, citando Harold Rosenberg: "Tudo tende a cair em qualidade, inclusive os homens".
Sheila Leirner nasceu em São Paulo e hoje vive e trabalha entre Paris e a Bretanha. É curadora, ensaísta e crítica de arte. Fez estudos de arte e cinema na França. Em 1975 tornou-se crítica de arte do jornal O Estado de São Paulo. Foi curadora-geral de duas Bienais Internacionais de São Paulo (1985-1987). Publicou os seguintes livros de ensaios: Arte como Medida e Arte e seu Tempo (ambos pela editora Perspectiva), Visão da Terra, Ars in Natura (Mazzota, de Milão), O Surrealismo (com J. Ginsburg., Perspectiva também), Lateinamerikanische Kunst (antologia de ensaios, Prestel, Munique), entre outros. ― JDC
Como é viver em Paris, um dos maiores centros culturais do mundo?
É privilégio e dureza ao mesmo tempo. Falando em sentido figurado, você "paga muito alto" pelo que recebe, razão pela qual são raros os brasileiros que mudam-se definitivamente para cá.
No meu caso, foi uma decisão consciente e meditada, feita numa época em que senti que já tinha dado o suficiente de mim, em todos os níveis, para poder me retirar e trabalhar aqui. Possuo dupla nacionalidade, em fevereiro comemoro 20 anos de auto-exílio...
Mas a maioria acaba voltando ao Brasil, mesmo sem problema econômico, como uma conhecida escritora que, depois de um ano, foi embora "por medo de perder o português" prejudicando o marido que estava aqui no âmbito de um projeto importante. Essa é uma desculpa esfarrapada típica de quem não tem coragem de enfrentar a difícil vida na França, preferindo o conforto e as mordomias brasileiras.
Conheço muitas pessoas que guardam a "boa lembrança" de Paris, outras que sonham voltar para cá um dia e outras ainda ― essas constituem a maioria ― que invejam quem mora aqui.
Tudo isso não passa de veleidade ou, como dizia um amigo psicanalista, de "sonho adolescente". Não tem nada a ver com a realidade da vida cotidiana parisiense que está bem longe do glamour turístico... Além do que, a chamada "cidade-luz" não é mais o centro cultural que já foi. É uma cidade bastante provinciana perto das grandes metrópoles atuais. Isso com todas as desvantagens das grandes metrópoles e sem a qualidade de vida da província.
Depois do programa de descentralização iniciado pelo presidente Mitterrand nos anos 80, e sobretudo depois que comecei a visitar muito este país e morar grande parte do tempo na Bretanha, prefiro pensar em termos de território, não de cidade, e ver a França como uma das maiores "regiões culturais" do mundo, pois em cada pedaço dela você encontra uma parte importante de arte e história.
Pode-se falar em crítica de arte hoje, depois da relativização absoluta dos valores artísticos? Se ela é possível, que parâmetros mínimos poderiam defini-la?
Pode-se e deve-se falar em crítica de arte sempre. Embora o sujeito da crítica seja a arte, crítica é crítica e arte é arte. Uma não tem nada a ver com a outra. Embora possa haver entrelaçamentos, as duas lidam com instrumentos totalmente diferentes. Portanto, se há relativização absoluta dos valores artísticos isso não quer dizer que há relativização absoluta dos valores críticos. Ao contrário. Quanto menor for a credibilidade na arte maior será a credibilidade na crítica e em todo esforço que for empreendido para analisar as suas contradições. Paradoxalmente, a crítica torna-se forte apenas em duas situações: quando a arte é muito forte e quando a arte é muito fraca.
Como você pensa o papel do curador hoje? Ser uma espécie de meta-artista?
Penso o papel do curador exatamente como pensava há 25 anos. Para mim foi o sonho de realizar no espaço as idéias críticas que antes eu colocava apenas no papel. Uma crítica tridimensional. Trabalho de arte sobre arte, como uma ópera, uma peça teatral ou um concerto.
Hoje, para que a curadoria seja um espelho da aventura criativa, continua necessário que qualquer projeto procure ser fiel aos valores nos quais a própria arte se origina. Sempre fui adepta de uma posição fenomenológica em relação à arte e às instituições que a acolhem. Sempre acreditei que para tratar de arte, se deve usar a própria "arte como medida". Continuo pensando a mesma coisa.
Portanto, um curador de arte não é e não pode ser apenas um "organizador", um jornalista, fotógrafo, artista, arquiteto, nem mesmo um historiador. Na minha opinião, este é um trabalho que só deve ser feito por um crítico ou por um profissional que possua ou que acumule, além das suas atribuições naturais, as prerrogativas críticas ― o que é muito raro, pois geralmente estas pessoas não possuem um trabalho reconhecido de reflexão sobre a arte.
Hoje, o vocábulo está completamente inflado. Pessoalmente, agora detesto a palavra "curador", pois qualquer um se batiza assim e isso não significa mais nada...
Como já disse antes, a Bienal não é um museu e o seu curador deve ser um crítico de arte, não apenas um historiador, escritor ou poeta com algumas exposições muselógicas e curto contato com o Brasil. Mas, por favor, não tome estas palavras como vaticínio. Só o futuro dirá...
Como você vê a situação da arte no Brasil de hoje, com novas galerias, feiras de arte, projeção de artistas brasileiros no exterior, melhores edições de livros de arte, acesso pela internet a infinitos sites de arte e artistas, cursos de mestrado e doutorado, além de uma primeira gradução em História da Arte (Unifesp)? Isso altera a potência da criação artística do país?
Penso que este "progresso" tem apenas efeito sobre o público, o mercado e os especialistas. O que não deixa de ser positivo, em alguns aspectos. Talvez faça nascer mais um ou dois artistas... porém não é fundamental. A real potência da criação artística de um país ― basta olhar a nossa história e a história da arte em geral ― certamente não depende do processo externo ao qual você se refere. Dinheiro, circulação de conhecimento, educação, tecnologia, mídia e status social nunca foram motores da criação e do pensamento. Algumas vezes chegaram, até mesmo, a ser contrapoducentes. Em geral, o senso comum, aquilo que se considera um "bem para a arte" pode ser uma praga para a criação artística.
Marco considerado importante na história da arte brasileira é o Modernismo. Pode-se pensar em outros períodos tão fertéis como esse no Brasil? Não acha também que o excesso de respeito atribuído a ele (talvez pelo vício nacionalista) acabe por silenciar artistas do mesmo período, talvez mais importantes e radicais que Di Cavalcanti, Tarsila e Portinari, os mais glorificados? (Cito, por exemplo, Guignard e Flávio de Carvalho.)
Esta é uma ótima pergunta. Não é apenas o passado que lança luz sobre o presente. São sobretudo as experiências contemporâneas que clarificam a História. Isso é o que faz você citar, com razão, Guignard e Flávio de Carvalho.
Com a distância de hoje, sem dúvida podemos dizer que existem períodos tão férteis quanto o do Modernismo, nos anos 50, 60 e mesmo 70. Para julgar as décadas subseqüentes vai ser preciso esperar um pouco mais, acredito. Entender estes períodos e seus artistas com o olhar e a experiência de hoje, nos faz ver melhor (e mais criticamente) um Portinari ou um Di Cavalcanti.
Contudo, por vezes tenho a impressão de que certos historiadores, não tanto por nacionalismo quanto por medo de questionar um status quo, congelam os momentos históricos de maneira a impedir toda e qualquer analogia ou prospecção. Não há questionamento, não há dúvidas.
Além disso, o trabalho universitário muitas vezes é tão focado em minúcias que a visão e a perspectiva generosa e dinâmica de um movimento artístico dá lugar à uma certa "fossilização". A crítica de arte não universitária utiliza livremente, não apenas a História, mas todos os instrumentos que têm à mão, como a sociologia, filosofia, psicanálise, literatura etc. Um dos trabalhos desta crítica seria justamente ajudar a sair desse "excesso de respeito" como você diz...
Quem foram os grandes críticos de arte do Brasil? E você acha que eles foram importantes para se criar um espaço para o debate sobre a arte no Brasil? Ou os artistas por si mesmos dão conta de criar este espaço?
As listas estão muito na moda, algumas são engraçadas e interessantes, porém não gosto de listas de pessoas. A História já caucionou os grandes críticos de arte do Brasil e todos os conhecem. Mário Pedrosa, Sérgio Milliet, etc. Alguns raros artistas foram críticos igualmente. Grande parte deles eu tive o privilégio de conhecer, ler e ouvir. Penso, no entanto, que nenhum foi importante por ter criado um espaço de debate, e sim por outras razões. Primeiro, por terem tido a coragem de debater sobre a arte no Brasil, muitas vezes em épocas adversas e em terrenos árduos e hostis.
Muitos marcaram a nossa história também pelo seu "fogo sagrado", paixão, devoção e desprendimento, como José Geraldo Vieira, por exemplo, que era médico e visitava gratuitamente ateliês e artistas como se fossem pacientes.
Ler e estudar sobre arte é uma delícia. O contato profundo e constante com a arte não é. Na verdade, é uma das coisas mais penosas que existem. Um crítico não é um psicanalista, não está necessáriamente "protegido". Não tem o mesmo preparo, sendo que a experiência com a arte às vezes não é menos dolorosa e profunda do que com a psique. Pode ser extremamente desestabilizante e assustadora.
Não é brincadeira comunicar com a alteridade, a subjetividade e objetividade dos outros... Estar constantemente vendo arte é como se jamais conseguíssemos ficar sozinhos e fossemos obrigados a ter intimidade com universos que não pedimos para conhecer.
Mário Pedrosa me confessou em Paris que não raro ficava "enjoado" e tinha que "descansar" sem ver nada um bom tempo. São raros os profissionais, pincipalmente críticos/curadores, que possuem energia e meios de comparar, estabelecer analogias e diferenças entre linguagens contemporâneas. Existem sempre muitas dúvidas, o receio de fazer injustiças, de fechar os olhos para coisas que merecem ser vistas e valorizar coisas que um dia se esquecerá.
O contato com os artistas também é difícil. O narcisismo que faz com que alguns não consigam separarar as pessoas deles das próprias obras dificulta as relações e propicia ressentimentos, agressividade, inimizade...
A experiência de um amador é outra. Um amador escolhe o que quer ver, pode ver apenas o que gosta, não tem a responsabilidade do julgamento, etc. Em resumo, a crítica de arte (profissional) é uma experiência para quem tem realmente a coragem de enfrentar o céu, o inferno e o purgatório ― tudo isso ao mesmo tempo.
Quanto aos artistas, eles dão conta de criar alguns espaços, sim, mas principalmente de criar arte, o que já é muito...
Para algumas pessoas, as Feiras Internacionais de Arte têm muito mais a dizer sobre o que é a arte contemporânea do que as Bienais, que recebem críticas por suas limitadas escolhas, quase sempre as mesmas, com seus artistas em geral já reconhecidos. O que acha disso? A esse respeito, cito as palavras de Daniel Birnbaum, em um trecho do livro Uma breve história da curadoria, de Hans Ulrich Obrist: "Testemunhamos a marginalização de todas as funções do universo artístico, o que sugere a possibilidade de que algo importante esteja ocorrendo fora do mercado. O crítico foi marginalizado pelo curador, que, por sua vez, foi posto de lado pelo consultor, pelo administrador e ― mais importante ― pelo colecionador e pelo negociante. Não pode haver dúvidas: para muitos a Bienal foi eclipsada pela feira de arte".
Costumo dizer que confundir "Feira de Arte" com "Cultura" é o mesmo que confundir "Mercado de Peixe" com "Museu Oceanográfico". Culturalmente, em última análise, o que temos agora nos sistemas circunscritos como o das bienais ou das feiras de arte, é a promiscuidade de todas as trocas, produtos, signos e valores, o que, segundo Baudrillard, trata-se de "pura pornografia". A sucessão, a difusão mundial de tudo e qualquer coisa, no fio das redes de informação, isso é "pornografia".
As Feiras Internacionais de Arte não têm nada a dizer sobre o que é a arte contemporânea, mais do que a própria arte contemporânea. As Bienais, por outro lado, deveriam fazer jus ao seu papel de "anti-Feira" e sair da promiscuidade para servir como um barômetro da situação artística internacional. Se os curadores e responsáveis não forem visionários e não usarem, como eu disse antes, a "arte como medida" de seus projetos, o resultado será sempre fraco e artificial, podendo ser eclipsado. Arte e instituição acabarão em divórcio.
O papel das bienais se revela não apenas a partir da reflexão sobre os caminhos artísticos, mas sobretudo da prática mesma de torná-los compreensíveis para o público. Esta é a vocação das bienais.
Não conheço as razões para tal afirmação do jovem e ambicioso Daniel Birnbaum, mas as palavras dele no livro de Hans Ulrich Obrist, que conheci no início dos anos 90 em pleno nomadismo quando ele era apenas um "pequeno curador convidado" no Museu de Arte Moderna de Paris, são uma boutade. Uma Bienal que segue a sua vocação jamais será eclipsada por uma feira de arte, por mais que as pessoas se esforcem por afastar críticos e/ou curadores em nome de algum consultor, administrador, colecionador ou negociante. Tudo será confirmado pela História. As novas gerações saberão.
Para você, quem são os artistas contemporâneos brasileiros e estrangeiros mais importantes e dos quais não devería-mos despregar os olhos?
Como já disse, não gosto de listas de pessoas. Neste caso menos ainda pois a revelação de minhas preferências pessoais seria, além de irrelevante, totalmente irresponsável. Não se escolhe artistas aleatoriamente, à ligeira, como aliás tenho visto muito por aí. Se eu estivesse à frente de uma Bienal, por exemplo, você teria esta resposta não pelas minhas predileções individuais, mas pelo consenso de uma equipe em acordo com um projeto. Escolhas deste gênero devem ser feitas coletivamente e só depois de muita reflexão.
Como você vê a resistência à arte contemporânea tal qual praticada pelas reflexões reativas de um Ferreira Gullar, por exemplo? E a crítica de Luciano Trigo, no seu livro A grande feira, que vê a arte contemporânea como uma espécie de "gabinete de curiosidades mercadológicas", dada a excêntricidade das práticas artisticas, que vão da decepação do próprio pênis por um artista, até a tentativa de outro em querer pintar de vermelho a ponta do Mont Blanc?
Não sou uma adepta incondicional da arte contemporânea. Mas vejo certas resistências como reacionárias, ou seja, da mesma forma que o dicionário: "oposições conservadoras que tendem a impedir qualquer inovação no campo das atividades humanas".
Ferreira Gullar, que respeito e de quem gosto muito, era moço e envelheceu. O que não é muito ruim, embora se perceba em seus artigos certas mudanças de pensamento e de estilo um pouco preocupantes... Luciano Trigo, que não conheço pessoalmente, é um moço que parece, ao contrário, ter nascido velho. O que é muito ruim. Li o que ele escreve e penso que os seus textos, além de vetustos, não possuem consistência e autoridade. Alí não há conhecimento (informação não é conhecimento), não há experiência sensível e fundamento estético. O que ele faz são afirmações epidérmicas do gosto de um público e de um jornalismo igualmente epidérmico e sem seriedade. É impossível compará-los (pois o primeiro é crítico de arte de grande experiência, ensaísta e poeta e o segundo não é), todavia tanto Gullar quanto Trigo ― e por razões muito diferentes ― emitem apreciações apressadas, com excessiva facilidade, e não praticam uma certa magnanimidade, coisa que não é fundamental para se analisar o circuito e o mercado da arte, mas é absolutamente necessária para se julgar a arte e os artistas.
Por que os jornais não se preocupam mais com crítica de arte, reservando apenas um espaço de divulgação rala a eventos artísticos?
Falamos sobre a importância dos críticos, não para a criação dos espaços de debate mas pelo uso que fizeram deles. Os responsáveis pela criação destes espaços formidáveis foram os grandes jornalistas do século XX, até os anos 90. De minha própria experiência devo citar Samuel Wainer e Fernando Pedreira, mas existem inúmeros outros.
Isto foi antes de os jornais se tornarem empresas ambiciosas e de o jornalismo cultural começar a se dobrar diante das imposições absurdas que o levaram a privilegiar a informação em detrimento da análise.
A orientação mercantilista fez com que os periódicos se tornassem produtos de consumo e como as novas gerações consumidoras são totalmente ignaras, não têm mais tempo, paciência e curiosidade, o resultado aí está: a análise caiu em desuso da mesma maneira como a palavra e as idéias em geral.
Os blogs foram, talvez, uma reação para resgatar um espaço de debate e troca. Eu mesma propus um blog ao jornal em 2004, época em que eles nem sabiam o que isso significava e no mesmo ano acabei inaugurando sozinha o meu próprio espaço. Mas a prova máxima da extinção das palavras e da análise é o Twitter, que desbancou até mesmo os blogs, com os seus 140 caracteres. Hoje têm-se a impressão de que tudo pode ser pensado e resumido em uma frase. Twitter e Facebook são a conseqüência direta da degradação do jornalismo de idéias pela lei da procura e da oferta, não o contrário.
Sempre adorei meus colegas de redação e editores, assim como os críticos de outras áreas e colaboradores como eu que ― nos bons tempos ― reuniam-se uma vez por mês no jornal, para trocar idéias e discutir as pautas. Penso que estas pessoas não tiveram nenhuma culpa pelo que aconteceu. Mesmo, e principalmente, as que continuam nas redações são vítimas do massacre empresarial. Em linhas gerais, penso que é ao 1º escalão ― à camaradagem, protecionismo de classes e de sexos e sobretudo aos interesses econômicos ― que devemos a decadência do jornalismo cultural. Que, aliás, está de acordo com o que já dizia o crítico Harold Rosenberg nos anos 60: "tudo tende a cair em qualidade, inclusive os homens".
Baudrillard, que você entrevistou várias vezes, dizia que, por trás da convulsão libertária da arte contemporânea, instalou-se uma letargia perigosa, uma espécie de círculo vicioso que não consegue se superar. Você tem a mesma sensação ou vê a arte de hoje de forma diferente?
É bem verdade que torna-se cada vez mais raro encontrar motivos para entusiasmo na arte dos nossos dias. Não sei se podemos dizer a mesma coisa em relação ao mundo, por pior que ele esteja em todos os sentidos. No mundo, felizmente, sempre se encontra motivos para exaltação. Mesmo quando a História da Arte era crítica e contraditória, com as chamadas vanguardas do século XX, sempre foi possível prever e antecipar, inventar, criar micro-eventos "revolucionários", mas agora também penso que isso não seja mais possível. E neste aspecto estou totalmente de acordo com Baudrillard.
As razões são várias, entre as quais a pretensão dos artistas de competirem com a própria vida, talvez. Há também a repetição dos mesmos códigos de linguagem para idéias nem sempre originais, o citacionismo excessivo, a textualização, a reanimação infinita das próprias formas. Não só não possuímos distanciamento histórico para julgarmos o que é ou não importante, como mesmo com distanciamento ninguém mais crê verdadeiramente em um "destino da arte". E tudo continua funcionando direitinho dentro de um mundo totalmente autorreferencial...
Podemos nos perguntar se a liberdade conquistada pelos artistas contemporâneos não os aprisiona mais ainda do que as adversidades do passado. Como é possível ser livre se você tem que obedecer à imposição paradoxal de reinventar a cada minuto as condições da sua própria liberdade?
Nesse ponto, ao contrário de Baudrillard, penso que é melhor navegar não sobre o desespero mas sobre a dúvida. Ou, melhor ainda, fazer exatamente como a arte contemporânea: navegar sobre a questão hamletiana do ser ou não ser com a resposta de Bartleby, o escriturário do romance de Melville. Este herói tão pouco heróico e no entanto o mais heróico de todos, respondia a tudo que lhe propusessem com a frase "I would prefer not to". Não é uma recusa. Não é uma afirmação nem uma negação. Ele avança e se retira ao mesmo tempo ou, como diz Deleuze, esta resposta abre uma zona de indiscernibilidade entre o sim e o não, o preferível e o não preferido. Essa é, na minha opinião, a melhor maneira para um crítico de arte navegar hoje.
Essa minha idéia certamente faria rir Baudrillard. Ele ria, e devia me achar uma "fleur bleue" (uma sentimental), quando eu lhe contava o resultado nulo do meu esforço em ser cética e pessimista. Por mais que o admire e tenha amado, inclusive como um dos melhores amigos e confidentes que possuí, a ponto de ele ter sido testemunha de meu casamento ― não concordo sempre com o que dizia.
Principalmente porque Jean Baudrillard não conhecia muito arte, ele mesmo admitia. E também porque, extremamente inteligente, tudo que dizia estava carregado de uma grande dose de incredulidade e ironia. O que imaginou e escreveu foi resultado de pura ilação dentro de um raciocínio que lhe era totalmente próprio, sendo que muitas verdades acabaram saindo desse raciocínio, mas muitos ditos apenas espirituosos também. Hoje, é preciso uma certa distância para decidir o que reter do discurso de Baudrillard, sobretudo no que diz respeito à arte...