Daniel Piza nasceu em 1970. Começou na imprensa no início dos anos 90, no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor-assistente da “Ilustrada”, da Folha de S. Paulo, e foi editor do célebre “Caderno de Fim de Semana”, da Gazeta Mercantil, em sua melhor fase, de 1996 a 2000. Desde então, é editor-executivo e colunista dominical do Estadão.
Como autor de livros, assina Jornalismo Cultural (2003), obra de referência no assunto, o perfil Paulo Francis: Brasil na Cabeça (2004), pela Relume-Dumará, e, no ano passado, publicou o que considera a “obra de sua vida”: Machado de Assis: um gênio brasileiro, volume em que combina biografia com estudo crítico e que, recentemente, mereceu o terceiro lugar no Prêmio Jabuti.
Nesta Entrevista, Daniel Piza fala de sua relação com Machado, que remonta a seus catorze anos, e até de sua Machadiana, com mais de 400 volumes. Analisa a literatura contemporânea, sob a luz do Bruxo, e conclui que os autores de hoje são intelectualmente fracos, em geral, submetidos à polarização e ao que chama de “Fla-Flu mental”. Por último, arrisca que Macahdo de Assis, se nascesse hoje, seria menos compreendido do que foi... – JDB
1. Desde que estudamos Machado de Assis na escola, aprendemos que ele é um “autor de fronteira”: entre o romantismo e o realismo; entre a poesia e a prosa; entre as intrigas amorosas e as questões filosóficas – você acha que isso o torna mais interessante ou ele teria sido igualmente grande em qualquer época da nossa história? Você fala, na sua biografia, do que chamam hoje de “natureza” (nature) versus “criação” (nurture) – no caso de Machado de Assis, ele teria sido tão interessante, como escritor, se não tivesse visto a abolição gradual da escravatura, o fim da monarquia e o início da república – e mesmo se não tivesse vivido a ascensão social de um neto de “pardo forro”, como você cita, até chegar, na carreira de funcionário público, a assessor de ministro? Em resumo: a obra de Machado de Assis é resultado, também, desse ambiente efervescente ou sua genialidade é de DNA (e só estamos aqui discutindo isso porque, em algum momento, Machado de Assis foi lá e registrou)?
Você deu mais sorte do que eu: a mim me ensinaram que ele era um autor “realista”, dedicado a retratar sua época, especialmente os costumes amorosos... Sim, essa ousadia de Machado, de mesclar gêneros e o descritivo com o meditativo, o torna muito mais interessante. Sem ter vivido o que viveu, sem ter visto as mudanças do Rio e do Brasil na passagem de monarquia para república, Machado não seria Machado. É claro que parte do dom da escrita é inato, ou pelo menos não depende unicamente de nossa vontade de escrever bem... Também aponto a peculiaridade de suas leituras em relação a outros escritores de origem humilde na mesma época, sua paixão pelo romance picaresco inglês e pela sátira iluminista francesa. Mas o ambiente social variado e móvel em que cresceu foi determinante para que sua obra, ao assimilar e reagir a ele, se tornasse o que se tornou. Não se isolam tema e forma.
2. Você estampa a genialidade logo no título da sua biografia, como se ela fosse auto-evidente, mas não acha que, pelo contrário, as leituras que se tem feito de Machado, hoje, caíram na repetição burocrática, entre os resumos para vestibular, as interpretações sociológicas da academia e o clima bovino dos chás (e das “eleições”) na ABL? A ponto de muito do que pode haver de mais interessante a se dizer sobre Machado de Assis acabe partindo, curiosamente, de seus detratores em críticas históricas – como Guimarães Rosa dizendo que ele apenas quer “embasbacar o indígena”; Ariano Suassuna reclamando a ausência de “galope épico”; Millôr Fernandes chamando Bentinho de “bicha”; e até Domingos Pellegrini afirmando que Dom Casmurro é “chato pra burro”? Você, como alguém que naturalmente acompanha os debates sobre a obra de Machado (ou, ao menos, está a par deles), não concorda que a atual “institucionalização” do criador de Brás Cubas levaria Nélson Rodrigues a mais uma vez afirmar que “toda unanimidade é burra”?
Não a estampo no título por ser auto-evidente. Ao contrário: reajo contra essa visão oficial de Machado. Ou contra a visão estabelecida de gênio, como a de alguém desligado de seu tempo. Escrevendo sobre sua época como ninguém, Machado superou sua época como ninguém. Note que Rosa não gostava do estilo meio afetado de Machado, mas admirava seu “ver claro e quieto”. E críticos literários melhores – de Augusto Meyer a Alfredo Bosi, para não falar de V.S. Pritchett a Harold Bloom – do que os nomes que você cita perceberam a riqueza de Machado, o tônus narrativo por baixo de sua escrita melancólica, a visão dinâmica por trás do ritmo oblíquo. Machado tem passagens chatas em suas obras, como muitos escritores geniais – de Cervantes a Joyce –, mas escrevia bem demais, com uma mescla de incisão e sutileza que poucos atingiram. É o rei das entrelinhas. Pouca gente lê direito as entrelinhas.
3. Na sua biografia, além do retorno ao mito do gênio, chama a atenção, novamente, o ambiente intelectual em que Machado de Assis se desenvolveu... No rastro de José de Alencar, no diálogo com Joaquim Nabuco, sob os auspícios de D. Pedro II, na troca de cartas com Eça de Queirós, na ascendência sobre Castro Alves e Raul Pompéia, sempre elogiado por José Veríssimo (e mesmo sendo combatido por Silvio Romero)... No seu livro – e na contramão do estado de espírito de 99,99% dos escritores contemporâneos –, Machado de Assis nunca reclama de “incompreensão”, não me parece amaldiçoar o “silêncio” em torno de si, e nem mesmo, a exemplo de Nietzsche, proclama ter nascido “póstumo”... Machado era um gênio compreendido então? Pensa que esse mesmo ambiente foi fundamental, não só do ponto de vista das transformações sociais, mas, estritamente, no aspecto intelectual? Se Machado de Assis caísse de pára-quedas no meio do deserto de idéias que é a nossa crítica literária do século XXI, teria florescido e frutificado do mesmo jeito como autor?
Machado foi muito admirado em vida, especialmente a partir de Brás Cubas. Também foi criticado, como pelo citado Romero, e certamente se magoava com isso. Mas sabia que seus amigos o defenderiam. Não era, afinal, uma pessoa pública de coragem, tinha horror a ser “tribuno”, era tímido e frágil além da conta. Só que sabia o que queria, era bastante cioso de sua obra e acreditava em deixar um legado para a posteridade. Deixou... O ambiente certamente ajudou: sua geração foi a mais brilhante concentração de talentos que o Brasil já viu. Ele, Nabuco, Euclides, Pompéia, Veríssimo e outros formavam uma elite intelectual de verdade. Hoje não temos a mesma situação: são poucos os escritores de grande talento, poucos os intelectuais com ambição fundamentada... Tudo isso, no entanto, não quer dizer que tenha sido compreendido em toda sua grandeza. Seus contemporâneos não podiam saber, por exemplo, que Machado estava inaugurando procedimentos que a literatura posterior, modernista, iria tornar centrais, como a descontinuidade, a mistura de gêneros, etc. E tampouco eles podiam ver que Machado estava captando a mentalidade nacional, ainda presente em pleno século 21, segundo a qual a suavidade brasileira é pretexto para não revelar e resolver seus traumas...
4. Outro dado que, pessoalmente, me chamou a atenção – na história que você conta – é o fato de a obra de Machado ter sido, majoritariamente, publicada na imprensa antes de sair em livro. Mesmo um romance profundo, sutil e recheado de citações, como Brás Cubas, saiu em capítulos – como se fosse um folhetim...! Sei que é anacrônico perguntar, mas o que houve com a literatura na nossa imprensa? Em aproximadamente um século, nossos romancistas evaporaram das páginas das revistas e dos jornais – por que ninguém mais segue o exemplo das publicações que permitiram a Machado de Assis testar a recepção a suas idéias e a seus livros? Atualmente, mesmo os periódicos supostamente literários dedicam pouco espaço para a prosa de ficção (ainda menos para a poesia)... Na sua opinião, por que não lemos mais, na imprensa brasileira, o Milton Hatoum ou o Michel Laub dos romances, o Rubem Fonseca ou o Daniel Galera dos contos, o Manoel de Barros ou o Fabrício Carpinejar dos poemas? (Às vezes me parece que estão todos esperando que surja um “novo” Machado de Assis, mas nem Machado era “Machado de Assis” quando começou...!)
Isso era comum na época. Machado leu muito folhetim de ficção. Mas no mundo todo a imprensa mudou e se afastou da publicação seriada de romances. Surgiu cinema, TV, o próprio mercado editorial atingiu uma dimensão e rapidez impensáveis na época de Machado. Não é um problema específico da imprensa brasileira. Philip Roth sai em folhetim no New York Times? Claro que não. O que falta no Brasil são as revistas culturais semanais e quinzenais que publiquem contos e poemas. Há algumas, mensais, que publicam inéditos. Mas são poucas e pagam mal.
5. Fora a falta de “ambiente” e de “espaço” para um aspirante a Machado de Assis hoje, a meu ver, parece que os candidatos a seguidores do Bruxo do Cosme Velho se preocupam mais em emular seu estilo do que em entender como este foi forjado... Você foi muito feliz em escrever que há um quê de filosófico na obra de Machado que talvez seja inédito na literatura latino-americana até então... Não é espantoso que ninguém mais leia Schopenhauer ou até Poe mas que queira ser, ainda assim, Machado de Assis? É certo que sua temporada em Nova Friburgo e o contato com a morte foi o ponto de partida para Memórias Póstumas de Brás Cubas – mas quanto essa obra-prima deve à tradição do romance do século XIX e quanto ela deve à filosofia de Voltaire, por exemplo? Não pensa que a preocupação excessiva com a “linguagem”, a partir do século XX, contaminou nossos escritores com a obsessão da forma – mas espantou suas realizações da discussão de idéias?
Não é verdade que não leiam mais Schopenhauer e Poe. Schopenhauer principalmente está em alta. Mas é verdade que imitadores de Machado raramente os lêem. No caso de Poe, nem sequer vêem a influência sobre Machado. E você está certíssimo ao dizer que nossos ficcionistas se interessam pouco pela discussão de idéias, pela profundidade filosófica. São intelectualmente fracos, como alguns que você citou na pergunta anterior. Aqui em particular há um mito de que o grande narrador é meio intuitivo, que vive de “inspiração”, e que uma formação cultural mais séria e sistemática violaria sua espontaneidade. Há anos me debato contra esse equívoco. Na verdade, é raro encontrar um grande escritor que não fosse também um grande leitor.
6. O mesmo século XX de tantas guerras, que Machado de Assis pouco viu, certamente teria cobrado dele mais “engajamento”, mas, ao mesmo tempo, não podemos dizer que Machado não participava das grandes questões de sua época (mesmo que usando pseudônimos), e tampouco podemos dizer que ele não tivesse habilidade política (principalmente na longa carreira de funcionário público)... Na comparação, mais uma vez, por que, de repente, o escritor brasileiro se tornou tão alheado de tudo (e não falo aqui apenas do “silêncio dos intelectuais”...)? Ou, em outras palavras: por que ficamos sempre entre o engajamento cego (partidário, acrítico, até dogmático) e a alienação snob (orgulhosa, ressentida, até naïf)? Novos atores ascenderam à esfera pública e os escritores simplesmente perderam terreno? Afinal, hoje é praticamente impossível imaginar uma ligação como aquela entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco... (ACM e Sarney? Itamar e FHC? Ciro Gomes e Mangabeira Unger? Por que toda e qualquer comparação desse tipo soa, hoje, tão acintosa?)
Meu livro dá ênfase a essa participação de Machado nos temas de sua época justamente porque ela é sempre menosprezada. Mas ele não era do tipo que fazia polêmica aberta, que dava a cara para bater. Infelizmente. Eu gostaria que em seu jornalismo tivesse sido mais explícito, apesar de ter enfrentado a moda Eça de Queirós e criticado, no atacado, os colegas brasileiros em “Instinto de Nacionalidade”. Por que os autores brasileiros ficam ou no engajamento ou na alienação? Porque se rendem sem saber a um traço cultural brasileiro, o da polarização pobre, do Fla-Flu mental. É claro que os escritores e intelectuais não têm mais a mesma influência que tinham no século 19, mas ainda têm alguma. Só um reparo: não dá para comparar Nabuco com esses nomes que você citou. Ele era melhor intelectual e era melhor homem público.
7. Outro “legado” de Machado – se podemos assim dizer –, a ABL, não está entre as maiores unanimidades nacionais... Imagino que não seja exatamente da sua alçada, mas eu queria, de qualquer jeito, uma opinião. A desculpa de sempre é a de que a nossa Academia segue o modelo francês, que não faz necessariamente questão de que, lá dentro, sejam todos exímios escritores... Mas o que teria pensado Machado de Assis – que concebeu uma Igreja do Diabo e que “perverteu” até a Missa do Galo – de um autor “esotérico” como Paulo Coelho? Será que as reuniões dos nossos imortais apenas refletem a tibieza do pensamento nacional na aurora do novo século? É óbvio que Machado entendia, como poucos, o jogo de cena, a troca de máscaras e a força das aparências na nossa sociedade – mas será que ele previa que até a sua Academia se renderia à lógica das revistas de fofoca, onde um fardão vale mais do que algo que efetivamente se tenha realizado por escrito? Machado de Assis, cem anos depois, fugiria de sua própria academia de letras, como dela fugiu, por exemplo, o poeta Carlos Drummond?
É de minha alçada, afinal escrevi um livro sobre a história da ABL! Quem defendeu o modelo francês de acrescentar personalidades públicas foi Nabuco, mais do que Machado. Ele achava que alguns “expoentes” de outras áreas ajudariam a dar força para a nascente instituição. Mas dizia que tinham que ser poucos... Machado não gostaria de Paulo Coelho, porque já em sua época detestava a literatura populista e religiosa. Tampouco gostaria de ver as concessões políticas feitas pela ABL, que chegou a ter entre seus membros o general Lira Tavares, de pseudônimo “Adelita”, cuja única obra lembrada até hoje é a assinatura do AI-5... Mas, infelizmente, acho que não faria como Drummond. Acreditava nessa união de escritores para fazer dicionários e valorizar a literatura local. Como não tenho espírito acadêmico, só consigo lamentar.
8. Enquanto escrevia o livro, você me disse que era um imenso prazer poder se ausentar desta nossa época e mergulhar no universo de Machado de Assis... Gostaria que falasse um pouco também do seu processo de composição... Você contou uma vez, ainda na época da Gazeta Mercantil, que estava montando uma “machadiana”; depois, em outra ocasião, me disse que donos de sebo separavam sempre obras sobre Machado de Assis para você... Quanto durou isso? De quando data, digamos, sua obsessão pelo Bruxo? E, no limite da biografia propriamente dita, quando você se sentiu “pronto”? Você também me disse que Richard Ellmann realizou sua obra clássica sobre Joyce por volta dos 35 anos e que, no seu caso, não havia mais por que esperar... Quais indicações você teve de que já era hora? E, igualmente importante: quando soube que poderia dar o trabalho (de composição) por encerrado? Machado de Assis é, sem dúvida, nosso maior autor; logo, suponho que o peso dessa constatação tenha sido uma carga extra para o biógrafo... ou não?
Minha obsessão por ele vem desde os 14 anos, quando li Quincas Borba. Passei a ler toda sua obra e até hoje não passa mês em que não releia alguma coisa. Há dez anos comecei a juntar sistematicamente o material de pesquisa. Como as bibliotecas públicas no Brasil são uma porcaria, contei com sebos para formar a Machadiana de mais de 400 volumes. Me senti pronto em 2004, depois de ter escrito uma série de livros pequenos, de ensaios e principalmente perfis biográficos (como o de Paulo Francis), e de ter lido muitos livros sobre a história do Brasil da época. Senti que tinha fôlego para uma narrativa mais longa, acostumado que sou ao ritmo de jornal. Passei um ano escrevendo todas as manhãs e fazendo anotações às noites. Fiquei depois cinco semanas de férias em casa dando o mergulho final, com 8 a 10 horas por dia de trabalho. E com enorme prazer em cada parágrafo. A reputação de Machado não pesou. Ao contrário. Como todo gênio, nunca vamos parar de interpretá-lo. Há muita coisa a ser dita sobre ele, ainda que saibamos pouco sobre sua infância e juventude. Eu disse as minhas. Até reverti leituras que se fazem de frases famosas suas e de tramas como a de Dom Casmurro. Dei meu piparote num planeta que não pára de girar...
9. Falamos aqui da repercussão que, muito provavelmente, nutriu a auto-estima do Machado de Assis escritor... Do ano passado pra cá, como você classificaria a recepção a Machado de Assis: Um gênio brasileiro? Os feedbacks estão fazendo jus ao nosso gênio literário? Ou prevalecem as reações sempre minguadas, os comentários apressados e o desconhecimento generalizado do assunto? Pelo que pude observar, o Jabuti acenou com um prêmio no horizonte, a revista EntreLivros deu capa para você e o Bruxo, e as vendas, com edição esgotada, têm sido bastante estimulantes... Machado de Assis, como um vulcão em nossa literatura, pode parecer apagado às vezes mas, de quando em quando, explode em erupção? Ou seja: mesmo que conscientemente as homenagens não estejam de acordo com o esforço, no seu “inconsciente coletivo” o Brasil nunca deixa seu autor-mor sem resposta? A um conhecedor da alma brasileira, como era o próprio Machado, teria espantado a parca reação do Brasil oficial e a consistente resposta do Brasil real (a seu livro)?
Todas essas coisas são boas: o espaço que o livro teve na imprensa, com grande maioria de resenhas positivas; o terceiro lugar no Jabuti, devidamente atrás do craque veterano Ruy Castro; o esgotamento da primeira tiragem em três meses. Mas o melhor foram algumas leituras, como a de Pompeu de Toledo na Veja e a de pessoas que me mandaram e-mails relatando que leram o livro de 400 páginas em duas noites! Mas uma coisa é fato: raros perceberam que o assunto do livro não é só o Machado, mas o Brasil. E há o despeito de algumas pessoas com relação ao fato de que sou jornalista, e não professor universitário. Mas do leitor, não. Esse só quer saber se o livro flui e diz coisas novas. Machado está cada vez mais em pauta. Com o centenário da morte em 2008, irá ao paroxismo.
10. Sei que a pergunta é meio fora de propósito, mas, neste contexto, ela é inevitável... Por onde teria começado Machado se estivesse se lançando como autor agora? Procuraria, de novo, a segurança do funcionalismo público – e arriscaria seus passos no jornalismo impresso outra vez? Sem os folhetins, e sem a abertura de que falamos à literatura (na imprensa), ele teria se lançado na internet? Nos blogs? (O blog do Cosme Velho???) Admirador de um imperador cultíssimo, o que teria pensado de nosso presidente, que tropeça, a cada pronunciamento, na língua pátria? Tomaria chá com Carlos Heitor Cony? E com Ivo Pintaguy? Teria a mesma paciência com os dois José Ribamar? Que interesse manifestaria pela filosofia agora reinterpretada pelas lentes da ciência cognitiva? Seus arroubos anticlericais não seriam problemáticos depois do 11 de Setembro? Continuaria no Rio (até a última bala)? O Brasil, quase no centenário de sua morte, saberia reconhecer (e valorizar) um novo Machado de Assis???
Machado começaria pelo jornalismo como começou. Talvez só fosse para a carreira de servidor público por sua personalidade insegura, não tanto pela ascensão social. Não sei se teria blog: ele adorava formas curtas e misturas de assuntos, mas detestava ser insultado em praça pública... Procuraria uma editora e logo encontraria uma, pois há muitas por aí. Não gostaria nem um pouco de Lula, porque valorizava gente honesta – ao menos intelectualmente honesta – e culta. Tomaria chá com Cony sem a menor sombra de dúvida! E com Pitanguy e com Sarney, mas destes não seria amigo íntimo. Acho que adoraria ler esses neurocientistas que discutem a questão genética & ambiente, mas acharia que são muito mecanicistas, que deveriam ler mais Shakespeare... Seus arroubos anticlericais? Eram sempre na forma de sátira, com pseudônimos; acho que nem sequer seriam entendidos hoje. De qualquer modo, muitos lamentariam por sua alma ao saber que recusou extrema-unção... Continuaria no Rio, sim; em pessoa, era sentimental. Acho que o Brasil não saberia valorizar um novo Machado, nem mesmo o meio intelectual, porque hoje só interessa a arte contaminada pela propaganda e pelo audiovisual, que faz muito barulho na superfície e por baixo é vazia, vazia. Mas ele teria leitores. Poucos e bons.
Excelente entrevista. Daniel Piza é a voz mais interessante no atual jornalismo cultural, que peca pela crítica rasteira e açodada de obras mal digeridas. É bom ouvir alguém que fala com profundidade e sem medo. A entrevista só confirma isto.