DIGESTIVOS
Quarta-feira,
30/10/2002
Digestivo
nº 105
Julio
Daio Borges
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Imprensa
>>> O outro lado da vida
Acordar de manhã e repetir mentalmente: "Não é possível, não é possível, não é possível...". "Isto não está acontecendo, isto não está acontecendo, isto não está acontecendo...". "Não é verdade, não é verdade, não é verdade...". Mas é verdade. Está acontecendo. E é possível. De repente, os acontecimentos se tornaram desinteressantes de novo. "Les événements m'ennuient." ["Os acontecimentos me entendiam." (Paul Valéry)] De repente, é interessante ser oposição novamente. (Se a situação, ao menos, deixasse...) Agora são 40% de descontentes. E eles querem mudança (!). Agora (!). [Não, esse discurso não, esse discurso não...] Agora Engula (!). [Também não, também não... É de mau gosto, parece coisa de marqueteiro...] Amigos vêm consolar. Com citações assim: "Quando o governo 'X' caiu [...], tomei uma garrafa de uísque inteira. [...] Chorei um pouco. Ou tentei chorar. Jurei resistir." A citação termina desse jeito: "Hoje acho engraçado, minha atitude, não o acontecimento [...]". (Concurso: quem disse isso? como, quando e onde?? será que hoje dá para se dizer o mesmo???) Pensando bem, quatro anos passam rápido. O novo presidente deve saber, afinal esperou por quatro anos três vezes. E ser oposicionista tem lá o seu "apelo"... Toda época precisa de um Carlos Lacerda. (Quem será o Samuel Wainer desta vez?) Fora que Lula não é Vargas... Imagina-se o próximo pleito: "Vicentinho" versus "Enéas". Ou então: "Bya Barros" versus "Turco Loco" (ela pelo PT, ele pelo PSDB). Enquanto isso, na Academia Brasileira de Letras: "Chico Anísio" versus "Os Cassetas". Ou então: "Gabriel, o Pensador" versus "Marcelo D2" (ambos pela Literatura Rap). Até que não estamos tão mal. Ainda restam alguns meses de Fernando Henrique Cardoso (o último presidente que falava português) e Paulo Coelho vai até compor com Peter Gabriel...
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>>> O presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva
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Música
>>> Testamento de Heiligenstadt
Num de seus artigos sobre música, H.L. Mencken se põe a imaginar como teria sido a recepção da Heróica de Beethoven: "Sem dúvida, aquela platéia da estréia em Viena, chocada e confusa pelos sucessivos desafios do primeiro movimento, deve ter ficado grata pela lúgubre melodia [do segundo movimento]. Mas, e o scherzo [do terceiro movimento]? Outra perversa investida contra o pobre Haydn!". Quase dois séculos depois, segue enorme a expectativa pela Terceira Sinfonia. Assim foi na Sala São Paulo, durante a apresentação da Orquestra Sinfônica da Rádio de Hamburgo, sob a direção de Christoph Eschenbach, um baixinho de calva reluzente e enérgica, vestido à moda dos feiticeiros da Idade Média. Sua Heróica só aconteceu mesmo nos últimos dois movimentos, pois faltou pulso nos dois primeiros, e, ainda assim, foi ofuscada pela bela violinista Julia Fischer. A alemãzinha de 17 anos, empunhando um Stradivarius "Booth" com quase três séculos, executou de memória e face altiva o "Concerto para violino em lá menor" (op. 53), de Dvorák. Como se não bastassem o vestido vermelho, as longas madeixas loiras e o ar embasbacado da platéia e do maestro, encerrou como uma fuga de Bach, depois de aplausos insistentes. Também pudera: a moça vem sendo preparada desde os 4 anos de idade pela mãe, a pianista Viera Fischer (para que se perceba que nome nem sempre é sinônimo de predestinação). Antes da celebração do velho Ludwig, mais precisamente durante a pausa, Julia ainda podia ser vista saltitante, com mochila nas costas, saindo pelos fundos, depois de ter feito tremer a Sala São Paulo. Apesar da Terceira Sinfonia não ter sido retumbante conforme esperado (algo muito natural, aliás), a orquestra esteve impecável na "Abertura Carnaval" (op. 92), também de Dvorák. Uma noite de flores e espinhos, para encerar mais uma vitoriosa temporada do Mozarteum.
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>>> Mozarteum Brasileiro
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Além do Mais
>>> Jabaculê
O paradoxo da divulgação no Brasil. Ninguém questiona muito mas algo nos diz que o modelo está errado. Como funciona: quem tem um produto (disco, livro, filme, restaurante) contrata uma assessoria de imprensa; o assessor, dependendo dos contatos, do produto e dos releases, consegue espaço nesse ou naquele veículo; o cliente (artista, empresário ou empresa) paga o assessor de imprensa e fica tudo por isso mesmo. Onde está o furo: os veículos, em geral de imprensa, estão à míngua, pela falta de anúncios; se aceitam pagamento pela divulgação (dispensando portanto a assessoria) são imediatamente crucificados pela falta de ética jornalística. Paradoxo: os veículos estão fechando suas portas e as assessorias proliferam a cada esquina. Corolário: os jornalistas dos veículos, que efetivamente divulgam os produtos, são mais mal remunerados que os autores dos releases. Basta perguntar quanto custa para divulgar um produto ou evento através de qualquer assessoria e, depois, quanto ganha um jornalista por matéria ou "frila". As diferenças chegam a até dez vezes; mesmo que a assessoria não seja lá essas coisas e mesmo que o jornalista seja de renome. Nesse contexto, fica complicada a sobrevivência dos "independentes": primeiro, porque não têm contatos para conseguir anúncios de estatais, grandes bancos e empresas de telecomunicação (potenciais anunciantes em qualquer veículo que se preze); segundo, porque as assessorias (e seus clientes) já estão acostumados ao "velho esquema", e não vêem como "trabalho" a divulgação feita por pequenos veículos (vêem como "favor", ou coisa parecida). Difícil quebrar esse ciclo, justamente no estado em que se encontra a mídia: falida. E na situação de indigência em que vive a maioria dos jornalistas. A saída talvez esteja no modelo adotado por pequenas publicações, como os jornais de bairro ou de categorias, que não sucumbem à matéria paga, mas que sobrevivem à base de pequenos e numerosos anúncios. O problema do Brasil continua sendo a "classe média"; enquanto ela não existir, ficamos entre os tubarões e os lambaris. Também no jornalismo.
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>>> Jornalista é gente?
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Internet
>>> Quando o virtual cai na real
Enquanto a imprensa brasileira silencia, nos países desenvolvidos já se discute a "Lei de Serviços da Sociedade de Informação e do Comércio Eletrônico" (LSSICE) ou, simplesmente, "Lei da Internet". Em vigor na Espanha, desde 12 de outubro último, a "Lei" visa regulamentar mais rigorosamente as atividades no ciberespaço, não só pelo lado dos prestadores de serviço mas também no que se refere ao comportamento de internautas e consumidores. Os protestos por parte daqueles que defendem a dita "internet livre" já começaram e vêm se alastrando pelos cinco continentes. Muito mais que uma "briga de torcidas", há, na disputa, aspectos bastante delicados. Há, por exemplo, aqueles que sofrem fraudes, lutando incessantemente contra o "spam", tendo suas iniciativas ameaçadas por "hackers" e até pelo dito "terrorismo virtual". Para esses, a "Lei da Internet" virá como um bálsamo, pois proibirá sites sem registro comercial, vetará mensagens não-solicitadas (com prejuízo para os respectivos domínios e provedores de acesso), e rastreará quaisquer indivíduos que representarem alguma ameaça à Grande Rede. Há, porém, a contrapartida: dependendo da maneira como a "Lei da Internet" for implementada, adeus "liberdade de expressão", adeus "liberdade de imprensa", adeus "democracia" e bem-vindos os tempos bicudos da "censura". Uma coisa é certa: a imagem do "caos", que sempre caracterizou a internet, tende a ser repensada ao longo dos anos. Mesmo que, com ela, sejam sacrificados a criatividade, a pluralidade e a independência. Se pelo lado do "descontrole" a "Lei" pode significar um alívio, pelo lado do "idealismo" pode significar a castração de uma mídia que mal começou a andar.
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>>> La Ley de Internet | LSSICE | Kriptópolis
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Cinema
>>> Trauma a ser evitado
Em sessão lotada, estreou finalmente "Cama de Gato", filme de Alexandre Stockler, na 26ª Mostra BR de Cinema. Há algum tempo, o longa vem sendo divulgado como uma iniciativa que consumiu poucos recursos. Realizado em "digital", não passou dos R$ 120 mil, com apenas meia dúzia de atores (entre eles, Rennata Airoldi e Caio Blat). É igualmente parte do movimento "Trauma" (Tentativa de Realizar Algo Urgente e Minimamente Audacioso), uma clara referência ao "Dogma 95" dinamarquês, que deu a luz a Thomas Vinterberg e Lars von Trier, "Festa de Família" (1998) e "Dançando no Escuro" (2000). No Brasil, "Cama de Gato" remonta à mesma linhagem de "O Invasor" (2001), de Beto Brant, e de "Cidade de Deus" (2002), de Fernando Meirelles. Têm como foco as tensões urbanas brasileiras, desencadeadas a partir de um único fato, aparentemente isolado, sempre com conseqüências desastrosas. "Cama de Gato", portanto, junta-se ao coro dos que pretendem devolver à sociedade brasileira uma realidade que, segundo crêem, ela mesma criou. Stockler conta a história de três rapazes de classe média alta que, para se divertir, promovem uma "festinha" a quatro. O plano não sai como esperado e a "brincadeira" acaba em estupro e morte. Suas tentativas de saírem ilesos da situação se revelam ainda mais infrutíferas, produzindo apenas novas mortes. Qualquer semelhança com "Cova Rasa" (1994) e "Um Plano Simples" (1998) não é mera coincidência. Aqui, inclusive, cabe um parêntese. A eficiência desse discurso, baseado no "choque", na "violência" e no "desconforto", ainda é questionável. O raciocínio é elementar: os filmes agridem o espectador; o espectador, agredido, não volta mais. Em São Paulo, tem-se o exemplo do circuito alternativo de teatro, amargando eterna falta de público, e da Bienal Internacional, a cada edição mais vazia e desacreditada. O "consumidor", acostumado a um mercado que normalmente o bajula, não entende como alguém possa requerer sua presença e, em seguida, acusá-lo, julgá-lo e condená-lo por causa de uma dada "realidade". O cinema brasileiro, renascido das cinzas, precisa muito cuidado para não cair na onda do suicídio mercadológico. E "Cama de Gato", apesar de bem escrito, bem dirigido e bem montado, não foge à regra.
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>>> Cama de Gato | Trauma | Jornal da Mostra
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>>> "CHARGE DA SEMANA" POR
DIOGO SALLES
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Julio Daio Borges
Editor
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