Digestivo nº 136 | Julio Daio Borges | Digestivo Cultural

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Terça-feira, 10/6/2003
Digestivo nº 136
Julio Daio Borges
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Cinema >>> La buca de la verità
Às vezes é preferível silenciar sobre certas coisas, principalmente as desagradáveis. Outras vezes, porém, é necessário ir contra a maré: ainda mais quando as ondas são de conciliação em torno do que é indubitavelmente “uma bomba”. Como a continuação de “Matrix”. O mais inacreditável de tudo – muito mais que o roteiro remendado, a caipirice e a cara-de-pau dos Irmãos Wachowski, o cinismo da propaganda avassaladora – é o silêncio da crítica. Talvez até mais que o silêncio, a condescendência diante de um subproduto, superfaturado, da indústria. Faltou coragem para declarar solenemente sem meias palavras: – Leitor, não vá. Não perca seu tempo. Não desperdice duas (ou mais) horas do seu fim de semana. Claro: diante dos fãs ardorosos que, inconformados com a história rocambolesca, tentam entender, só é possível sentir pena. Dó. Como dizia Sócrates: – Não pensa mal dos que agem mal; pensa que estão enganados. Agora: jornalistas, muitos intitulados “críticos de cinema”, que assumidamente têm o que se chama de “bagagem”, não poderiam jamais se debruçar sobre um dos piores blockbusters dos últimos tempos e deixar de reconhecer o que é óbvio demais desde os primeiros instantes: “Matrix Reloaded” não vale nem um centavo; não vale nem um minuto da nossa atenção. Ponto. Nem merece, por exemplo, que se discuta pormenores da saga de Keanu Reeves – um “ator” (?) sobrevalorizado, queridinho de David Geffen, um dos todo-poderosos da indústria do disco nos Estados Unidos. Como é que alguém, que se considera “especialista no assunto”, se digna a refletir sobre os desacertos de “Matrix Reloaded”, quando é praticamente insuportável permanecer sentado duas longas horas sob os bombardeios incessantes da fita? Como discorrer lucidamente sobre algo que, para começar, é extremamente desagradável aos sentidos? Que, ao contrário do que se vem proclamando, não provoca prazer, nem mesmo estético? Repetindo: é inacreditável que se silencie sobre esses e outros aspectos. “Matrix Reloaded” não vale nem pela piada do “Reloaded”. Será que é tão difícil assim falar a verdade? [Comente esta Nota]
>>> Matrix Reloaded
 



Música >>> Íntima, silenciosa, rica e interior
No espaço de uma semana, a “Bamberger Symphoniker” acabou prejudicada pelo brilho e pela audiência da “The Philadelphia Orchestra”. Para uma Sala São Paulo muito menos concorrida por arrivistas atrás de “flashes”, a sinfônica e seu maestro, Jonathan Nott, mostraram uma competência muito além da normal, mesmo para temporadas como a do Mozarteum. O programa foi euforicamente iniciado pela abertura “Os mestres cantores de Nüremberg”, de Wagner. A primeira peça, que geralmente padece por contar com músicos ainda rígidos e regentes em fase de ambientação, foi impecavelmente executada. Até para ouvidos experientes como os de um Salomão Schvarzman, o inconfundível locutor da Cultura FM, também apresentador bissexto da ex-TV Manchete. O fato é que o prelúdio de dezoito minutos já tinha justificado tudo. Mas haveria mais. Muito mais. Para surpresa do público, assistir-se-ia à entrada de uma solista (e não de um solista) de trompa. Marie Luise Neunecker, uma alemã, chamaria a atenção para a sua saia estampada, mas, sobretudo, para o toque muito suave e preciso (embora houvesse dispensado o uso de partitura) no Concerto nº 2 de Strauss. O prato principal, no entanto, ficaria para depois do intervalo: o arrasa-quarteirão de cinqüenta minutos em que se converteu a Sinfonia nº 9 de Schubert. Nos quatro movimentos (ainda que dois deles no tempo “andante”) não houve trégua para a orquestra: seja por parte do compositor que, naquele momento, levava a sua escrita até o limite; seja por parte do homem por trás da batuta, que permaneceu firme e incansável nos instantes mais duros e mais delicados. O mesmo não se poderia dizer acerca dos ouvintes, que não pareciam suficientemente aparelhados para penetrar em tais complexidades e manter-se lá, inabaláveis. A Sala São Paulo ainda tremeria com um bis, breve e moderníssimo (e nem tanto, com outro mais populista). O certo é que, a partir daí, a temporada 2003 ganharia um novo sentido. [Comente esta Nota]
>>> Mozarteum Brasileiro
 



Literatura >>> O último dia de um condenado
Quem pensa em Fiódor Dostoiévski logo evoca a figura do escritor de clássicos como “Crime e castigo” (1866) e “Memórias do subsolo” (1864). Acontece, porém, que, em paralelo, o autor exerceu uma efervescente atividade jornalística (nem sempre lembrada pela crítica). Foi nos seus últimos anos de vida, entre 1876 e 1881, que Dostoiévski editou o “Diário de um escritor”, publicação mensal totalmente composta por ele – e que lhe garantiu notoriedade ainda maior dentro da Rússia. São duas novelas dessa época que a Editora 34 agora lança sob o título “Duas narrativas fantásticas”, com tradução e notas de Vadim Nikitin. A importância do “Diário de um escritor” transcende o aspecto biográfico, pois, além de ter sido um registro da pena infatigável de Dostoiévski, foi, como coloca Nikitin, o “caderno de campo” de “Os irmãos Karamázov” (1880), a última e definitiva obra-prima. O volume atual, de pouco mais de 120 páginas, guarda, portanto, esboços para o grande painel em que se converteu a saga dos Karamázov (Dostoiévski, inclusive, previa uma continuação, que não teve tempo de realizar). A primeira narrativa, “A Dócil”, foi elaborada a partir de uma notícia de jornal (conta-nos o tradutor). Em primeira pessoa, reconstitui a convivência tensa de um casal infeliz, em São Petersburgo (sempre lá), que termina com o suicídio de um dos cônjuges. A segunda, “O Sonho de um Homem Ridículo”, mostra-se um tanto mais lírica, onde o sujeito “ridículo” (do título) “acorda para a vida” depois de um idílio de felicidade em que envolve toda a humanidade. Assim, estão presentes dois elementos da produção dostoievskiana: na primeira novela, o apego a tipos de baixa extração, e a suas existências miseráveis; na segunda, a evocação de um passado mítico e de um futuro profético, para a nação russa. Há ainda, no que se refere à forma, o que Nikitin mui apropriadamente chama de “estilística da repetição” – a velha mania do escritor de repetir palavras obsessivamente em períodos curtos. (Uma bobagem; mas uma bobagem tomada como importante, de uns tempos para cá.) Enfim, Dostoiévski é sempre um labirinto no qual vale a pena se perder – e a Editora 34 faz bem em seguir reeditando-o. [Comente esta Nota]
>>> Duas narrativas fantásticas - Fiódor Dostoiévski - 128 págs. - Editora 34
 



Além do Mais >>> Em pouco tempo não serás mais o que és
É raro encontrar um artista que, musicalmente, siga uma carreira ascendente. As tentativas são comuns no universo do rock, por exemplo. O "roqueiro" cresce e descobre que não pode mais continuar compondo, cantando e tocando como se tivesse sempre quinze anos. Então migra para um gênero mais elaborado; no Brasil, naturalmente, a MPB. Vide a geração dos anos 80 (que nem sempre foi feliz): Cazuza, Lobão, Herbert Vianna. Todos flertaram com a música brasileira dita séria. Mais recentemente (nos anos 90?), no reino das intérpretes, a nova safra de cantoras se embrenhou no mundo dos acordes com sétima e nona: Cássia Eller, Zélia Duncan e Ana Carolina. Mas, obviamente, alguém começou com tudo isso muito antes. Pode-se apontar Rita Lee, e sua saga pós-Mutantes. Mas... será? O mais certo é falar numa figura quase sempre esquecida nessas ocasiões: Ney Matogrosso. Depois de sair do seu atual show, em que esbanja afinação em canções de Cartola, é quase impossível imaginá-lo num disco dos Secos & Molhados. Mas ele esteve lá. "Rosa de Hiroshima", inclusive, é entoada no bis. Ney vem da escola de cantores-com-voz (segundo a classificação de Nelson Motta), que remonta a Elis Regina, Wilson Simonal e inevitavelmente à era dos festivais (aliás, novo livro de Zuza Homem de Mello). Quem assiste às performances de Marisa Monte (aquela cantora dos Tribalistas...) e não consegue entender de onde vieram aqueles braços e aquelas mãos, deveria se arriscar na temporada de Matogrosso no Tom Brasil. Está tudo lá. Aquela presença cênica que atualmente só pode ser encontrada nas apresentações de Maria Bethânia. O modo de efetivamente encarnar personagens, e conduzir a platéia através de mínimos gestos (calculados). Nada em excesso, nem sequer um sorrisinho de canto de boca - vive-se sob o domínio rigoroso da técnica. O que parece "espontaneidade do momento" pode ser encontrado, exatamente igual, no disco "Ney Matogrosso interpreta Cartola ao vivo" (2003), da gravadora Universal. As surpresas, portanto, foram todas previstas. O espetáculo, no entanto - ao contrário do que possa parecer -, não deixa de ser surpreendente. Matogrosso é seguramente o maior cantor de sua geração (não que nela haja muitos), e perdê-lo é como perder um capítulo da História do canto moderno brasileiro. [Comente esta Nota]
>>> Ney Matogrosso interpreta Cartola ao vivo | Tom Brasil
 
>>> MAU HUMOR

“O melhor momento das pessoas é quando elas estão subindo ou descendo. No todo do mundo, todos ficamos chatos.” (Jorginho Guinle)

* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
 
Julio Daio Borges
Editor
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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
11/6/2003
01h43min
Excelente a crítica. Acredito que a propaganda agressiva de "Matrix Reloaded" inibiu a maioria dos críticos. Confesso que, há quatro anos, o primeiro filme da "trilogia" me agradou muito, seja pela estética, seja pelo enredo. Fico contente em saber que não fui o único a achar o filme um lixo, já estava me considerando um anormal por ter ficado entediado na sessão. Parabéns!
[Leia outros Comentários de André Seixas Prado]

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