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Quarta-feira, 27/6/2001
Digestivo nº 38
Julio Daio Borges
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Além do Mais >>> De perto, ninguém é normal
Jorge Alberto da Costa e Silva, o brasileiro que dirigiu a divisão de saúde mental da Organização Mundial da Saúde, está nas páginas amarelas de Veja, alertando para o fenômeno de "psiquiatrização da sociedade". Segundo ele, hoje em dia, é comum atribuir patologias a comportamentos perfeitamente normais. Exemplifica que um tímido, se forçado um diagnóstico, pode ser classificado como portador de "fobia social"; já um sujeito sistemático receberá prontamente o rótulo de "obssessivo-compulsivo"; uma criança agitada, então, entrará na categoria das vítimas do "transtorno de atenção", ou da "hiperatividade". Ninguém, em resumo, escapa. É provável que essa suscetibilidade do ser humano contemporâneo (ao considerar-se doente e desequilibrado) venha da mais absoluta fé que atualmente se nutre pela Ciência. Ou seja, se alguém não é feliz, não está contente ou minimamente satisfeito, a Medicina tem a resposta - e o tratamento. A figura do médico (seja como plástico, psiquiatra ou mesmo clínico geral) foi investida de poderes espirituais como só antes os padres, bispos ou papas. Entrega-se-lhe o corpo e a alma, num rompante de confiança, de que nem mesmo o próprio Deus desfruta mais. Não percebe, porém, o homo sapiens de agora, que sua fé recente é tão tola quanto todas as outras anteriores. Continua depositando suas esperanças nas mãos de outros homens. Acontece que homens sempre foram, são e serão apenas isso: homens. [Comente esta Nota]
>>> Veja
 



Literatura >>> Veio o mau destino e fez de mim o que quis
A Antologia Poética definitiva de Manuel Bandeira, organizada pelo próprio autor, completa 50 anos. Foi relançada pela Editora Nova Fronteira e percorre todos os seus livros, desde A Cinza das Horas até Mafuá do Malungo, passando por Libertinagem, Estrela da Manhã, Lira dos Cinqüent'anos, e até pelos Poemas Traduzidos. Bandeira é, basicamente, o poeta da "vida inteira que podia ter sido e que não foi". Tísico, viveu de seu enleio pelas musas e pelo amor ("Amor - chama, e, depois, fumaça... / Medita no que vais fazer: / O fumo vem, a chama passa..."). Conforme deixou registrado, nos títulos de suas obras, foi também o mensageiro do desalento, da desesperança, da renúncia ("Só a dor enobrece é grande e é pura. / Aprende a amá-la que a amarás um dia. / Então ela será tua alegria, / E será, elá só, tua ventura..."). Bandeira antecipou o Modernismo e, igualmente, em algumas décadas, Carlos Drummond de Andrade, a quem viria a adorar incondicionalmente ("Quem não estiver de acordo, é favor não falar mais comigo."). Apesar da sua educada sensibilidade, que remonta aos clássicos do português, Manuel Bandeira era capaz de se fascinar com o insólito e o corriqueiro, transformando até cacto em verso ("Era belo, áspero, intratável."). Passear pelos seus escritos hoje é como passear pelos bosques da delicadeza, quando os homens podiam ser suaves, sem se envergonhar disso, e sem sofrer represálias de qualquer gênero. [Comente esta Nota]
>>> "Antologia Poética " - Manuel Bandeira - 232 págs. - Nova Fronteira
 



Televisão >>> Hoje eu quero jantar bem
Ed Motta esteve no Ensaio, de Fernando Faro, na TV Cultura. Aguardava-se mais menções ao seu tio de ouvido absoluto, Tim Maia. Porém, praticamente, não houve. Ed Motta segue a tradição dos grandes cantores que o Brasil nunca teve. Segundo ele, uma linha evolutiva que pode ter começado com Johnny Alf. (João Gilberto, jamais.) Ed se espelha, e leva adiante, os reis do vozeirão, que se concentram nos graves, mas que percorrem escalas de longo alcance, dando direito a certo virtuosismo e, por que não dizer?, a um requinte quase ornamental. Como seu tio, Ed Motta é sensível a cada nuance de cada instrumento, podendo se incomodar, durante a execução, com erros mínimos ou imperfeições da aparelhagem técnica. De início, entricheirado nas fileiras da música americana, foi descobrir a música brasileira bem mais tarde. Mesmo assim, detém um conhecimento enciclopédico, como pouquíssimos críticos e músicos que professam a religião da MPB. Sua produção oscila entre os ritmos dançantes dos Anos 70 (que ultimamente tratou de reciclar, em seus Manuais Práticos, I e II), flertes ocasionais com os maiores letristas e instrumentistas do País (Aldir Blanc e Guinga, respectivamente), e uma inclinação acentuada pelas trilhas sonoras e pelas composições sem voz. Para aqueles que alimentam veleidades anti-comerciais, Ed Motta ensina que não há como "montar um restaurante em que só o dono tenha prazer em comer", é preciso diversificar os pratos. Num dia oferecem-se menus mais sofisticados, no outro, melhor ater-se ao trivial. Uma lição simples, mas não totalmente assimilada pelas artes brazucas. [Comente esta Nota]
>>> http://www.edmotta.com
 



Cinema >>> Estou te mostrando a porta, pra você sair, sem eu te bater
Rodrigo Santoro está se consagrando com Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodansky. De fato, ele fez por merecer: interpreta um adolescente problema que, julgado e condenado energicamente pelo pai, acaba internado e enlouquecido num hospício. Tudo por causa de um "baseado" e de um comportamento esquivo, típico da idade. Othon Bastos também não deixa por menos: está impiedosamente intolerante e autoritário, no papel de chefe de família. O longa é quase um manifesto contra os maus tratos dentro de um hospital psiquiátrico. Cumpre a sua função e, para uma produção brasileira, consegue ser ineditamente nu e cru, sem cair no samba e sem acabar em pizza. Uma certa vocação mambembe, do cinema nacional, nunca permitiu que se tratasse de temas sérios com a devida seriedade, sem descambar para a malícia ou para a farra. Bicho de Sete Cabeças é tão convincente nesse aspecto que, transtornado, o espectador sai cambaleante, ouvindo vozes e inventando paranóias, enquanto os sentidos vão se reorganizando lentamente. Não é, portanto, recomendado para aqueles que vivem distúrbios ou, simplesmente, não têm estômago para uma seção de eletrochoque. Arnaldo Antunes revela uma tremenda capacidade de cantar para os loucos, ou como eles. E André Abujamra completa a trilha com toques de vanguarda eletrônica, bem ao gosto das produções violentas e incisivas do atual cinema. Não chega a ser Hollywood, e nem é para ser. Mas pode, e deve, rodar o mundo. [Comente esta Nota]
>>> http://www.bichodesetecabecas.com.br/
 



Artes >>> Atuar como guias e engenheiros conceituais
O Carlton Arts aterrissou e abriu suas portas em São Paulo, mais precisamente no Moinho da Mooca. Com a pretensão de explorar e sacudir as faculdades sensoriais dos visitantes, a mostra foi anunciada com estardalhaço, mas repercutiu timidamente (só entre antenados), num início de semana junino. Em tempos com estes, em que projetos e iniciativas culturais minguam pela falta de audiência e, mormente, pela falta de capital, espanta que um complexo de tal porte tenha sido erguido, povoado por artistas e por curadores badalados, tendo como único e exclusivo patrocinador uma marca de cigarros. Especulações à parte, a intenção do Carlton Arts é sinalizar para o que o folheto chama de "uma intensa troca de paradigmas". Tirando as salas dos realizadores premiados pelo evento (as mais discutíveis), deve-se citar a controvertida exposição de David Cronenberg e a inusitada vitrine-viva da marca Imitation of Christ. Cronenberg continua causando engulhos, entre principiantes e aficcionados: enquanto telas transparentes reproduzem cenas de seus filmes, os espectadores podem apreciar seus instrumentos de tortura ou seus monstros em miniatura. Já a Imitation of Christ aposta na androginia e na anorexia de seus modelos (ambos os conceitos hoje em alta). Um tom de vermelho, permanente, e uma fauna de homens e mulheres-evento compõe o que resta do quadro. O Carlton Arts, certamente, quer ter um pé no futuro, mas se esqueceu de perguntar se as platéias tupiniquins têm olhos para ele. [Comente esta Nota]
>>> http://www.carltonarts.com.br
 
>>> MINHA PÁTRIA É MINHA LÍNGUA
"Atenção Senhores Condôminos: informamos que a partir desta data o elevador será desligado, a partir das 22 horas, em virtude das medidas governamentais que o mesmo nos impôs."
 
Julio Daio Borges
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