DIGESTIVOS
Quarta-feira,
28/12/2011
Digestivo
nº 484
Julio
Daio Borges
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Literatura
>>> Borges: uma vida, por Edwin Williamson
No embalo do relançamento das obras completas de Jorge Luis Borges, a Companhia das Letras traduziu Borges: a life (2004), de Edwin Williamson, professor de literatura espanhola em Oxford. Aparentemente, a vida de Borges, que se dedicou à literatura, não soa tão interessante. Mas um elogio de Harold Bloom, o maior crítico literário vivo, a essa obra sobre a vida do "mestre argentino", talvez nos faça mudar de opinião. Embora tenha reconhecido a genialidade de Machado de Assis, Bloom recusou-se a ler Guimarães Rosa, pois disse que "não tinha mais tempo". O "mestre argentino" ganhou, com Machado, um dos capítulos de Gênio (2003). E é impossível não aproximar o maior crítico contemporâneo do, possivelmente, maior leitor do século XX. E se Bloom "perdeu tempo" com a biografia de Borges, mantendo Guimarães Rosa na espera, é que ela merece ser lida. De fato, se a vida de Borges foi dedicada à literatura, o que lemos, no livro de Williamson, não é uma biografia tradicional, afinal ele busca "correspondências entre o texto literário e o contexto pessoal". Borges: uma vida surpreende, em primeiro lugar, pelas mulheres que habitaram a vida, ou o pensamento, de Borges. Para surpresa geral, declara o próprio: "Como passei a vida pensando em mulheres, ao escrever tratei de pensar em outra coisa". A uma mulher, por exemplo, ele dedicou "O Aleph" (1949). Em "A morte a bússola", um conto de Ficções (1944), Borges conclui que "o intelecto sozinho leva à morte", enquanto "o amor se constitui na bússola que nos levará à salvação". Passou quase a vida inteira lamentando "ter repetidamente sacrificado sua chance de felicidade com uma mulher". E, quando morreu sua mãe, escreveu, num poema: "Eu cometi o pior dos pecados possíveis a um homem. Não ter sido feliz". Leonor Acevedo, aliás, quase centenária, seria outro dos centros de gravidade na vida de Borges. Declararia ela a Bioy Casares (historicamente, o maior amigo de Jorge Luis): "Passei a vida entre dois loucos e às vezes me pergunto se esses dois loucos não tiveram razão". O "segundo louco" era o Doutor Borges, pai de Jorge Luis (na intimidade, Georgie). Tendo fracassado na literatura, e tendo sido acometido pela cegueira mais cedo que o filho, Doutor Borges transmitiu a Jorge Luis a missão de ser realizar como escritor. E "Georgie", além da salvação pelo amor, acreditava, obviamente, na salvação pela literatura. Acreditava, como diz Williamson, que "uma obra-prima autêntica seria suficiente para justificar a vida de um escritor". Nesse sentido, a Divina Comédia forneceu a chave que faltava para conferir sentido à existência de Jorge Luis: se encontrasse sua Beatriz, como Dante encontrou, Borges poderia ser feliz, e realizar-se como homem, e como escritor. Ainda que boa parte do mundo não concordasse, acreditou ter encontrado sua "Beatriz" no fim da vida: era María Kodama, que faria Luisa Valenzuela, uma romancista argentina, definir assim o casal: "O venerável velho e a mulher que tirou o venerável velho de seu encapsulamento e o pôs em contato com a vida". Casaram-se praticamente no leito de morte de Borges. Se o amor quase não chegou a tempo, a consagração também atrasou. E uma das fases mais célebres de Borges, como "mestre oral", teve início quando ele se aproximava do seu cinquentenário: "Assim, aos 47 anos, descobri que se abria diante de mim uma vida nova e emocionante". Conquistou o mundo, nas palavras do escritor norte-americano Richard Burgin: "Quando deu sua última palestra em Harvard, Borges já era o herói literário de Cambridge". Em 1983, recebeu a Legião de Honra do presidente François Mitterand. E só não ganhou o Nobel, pois defendeu as ditaduras, na América Latina, contra populistas como Perón. Williamson conta que, na Itália, Borges passou a definir o que era "o gosto literário" e, mesmo, "a própria ideia de literatura". A verdade é que continua definindo, e não so dentro da Itália, mas fora dela também. Modesto, Borges concluiria, numa entrevista, não ter sido "um pensador": "nunca havia chegado a nada"; era, no máximo, "um homem de letras"... "um tecelão de sonhos". E ainda que se considerasse, como poeta, um "grandiloquente de terceira categoria", criaria, na definição de Bioy Casares, "um novo gênero literário", "entre o ensaio e a ficção", inaugurando "as possibilidades literárias da metafísica". Se a "vida" desse homem não pode ser emocionante, o que pode ser, então? Borges, de Williamson, não só traz de volta a noção perdida de literatura, mas também a noção perdida de uma vida dedicada à literatura.
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>>> Borges: uma vida
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Internet
>>> Return to the Little Kingdom, by Michael Moritz
Depois da morte de Steve Jobs, só praticamente se falou na biografia escrita por Walter Isaacson (editada, no Brasil, pela Companhia das Letras). Mas, apesar de ser a única a contar com a colaboração do próprio Jobs, houve outras. Duas são as principais. A primeira, escrita por Michael Moritz, hoje um investidor, é, na realidade, uma "biografia" da Apple, até seu primeiro bilhão de dólares em faturamento (editada, no Brasil, pela Universo dos Livros). E a segunda, escrita por Alan Deutschman, sobre a "volta" de Steve Jobs à Apple, no final da década de 90. Portanto, qualquer pessoa que deseje entender o visionário do iPod, do iPhone e do iPad, não deve se restringir apenas ao retrato de Isaacson; deve complementá-lo com as visões de Moritz e Deutschmann. Return to the Little Kingdom alterna os primórdios da Apple, naquela garagem "proverbial", com o lançamento do Macintosh, o último grande projeto de Jobs (antes de ser "colocado pra fora", em 1985). Aparentemente, existem outros livros melhores sobre a criação do Macintosh ― menos centrados em Jobs ―, então a melhor parte de "Little Kingdom" é, sem dúvida, a fundação da Apple. Um dos grandes méritos do livro, aliás, é tirar Steve Jobs do centro de gravidade da empresa. Revelando, antes de mais nada, o tal "gênio" de Wozniak (mencionado na orelha do livro de Isaacson). Revelando, também, Mike Markkula, o primeiro investidor ("anjo", e segundo CEO) da Apple. E revelando, ainda, Michael Scott, o primeiro CEO da Apple. Steve Jobs aparece, mais, como o grande vendedor da Apple. Desde as "blue boxes" ("caixas" que faziam ligações telefônicas internacionais gratuitas), montadas por Wozniak, até o Apple I, cuja primeira encomenda foi de 50 unidades, até o Apple III, que foi um fracasso, passando pelo Apple II, que foi um marco da computação pessoal. Já Wozniak também aparece como "a primeira pessoa que eu conheci que entendia mais de eletrônica do que eu" ― a declaração, obviamente, é de Jobs ;-) Wozniak, igualmente, surge como aquele sujeito que queria ser apenas engenheiro da HP; enquanto Jobs nunca se viu como engenheiro, ainda que tenha passado pela Atari. E Mortiz, justamente, não esquece o Homebrew Club, uma espécie de confraria de amantes de tecnologia, reunidos em torno da universidade de Stanford, que planejavam transformar o mundo através da computação pessoal. Se a HP foi o primeiro emprego de Wozniak, o Homebrew foi seu primeiro "estágio". Fica, ainda, confirmada a lenda de que o pai de Wozniak, Jerry, não gostava de Jobs: ele achava que seu filho estava fazendo "todo o trabalho", enquanto seu amigo estava levando "metade do lucro", "sem fazer nada". (Futuramente, Wozniak, filho, reconheceria que todo grande engenheiro precisa de alguém de marketing, para inscrever seu nome na História.) A verdade é que, embora não se considerasse um "businessman" no início (tendo cogitado até ser monge), Steve Jobs se sentiu muito confortável, à medida em que a empresa crescia; enquanto Wozniak nunca se encontrou na "vida corporativa", tendo passado de "mago" a "maluco" (organizando até um festival de rock; já no final do livro). Antes da biografia "oficial" de Isaacson, Mortiz percebeu que estava sozinho, com biógrafo, e, de uns anos pra cá, decidiu complementar sua obra. Assim, além da história da Apple até seu primeiro bilhão, Little Kingdom traz um prólogo e um epílogo, com mais detalhes sobre a saída de Jobs, os anos da Apple "sem Jobs" e, finalmente, seu retorno à Apple, até, mais ou menos, a época de seu transplante de fígado, em 2009. Enfim, o gênio de Steve Jobs fica muito difícil de "alcançar", principalmente depois de iPod, iPhone e iPad, mas Return to the Little Kingdom pode nos ajudar a entender como ele se forjou, saindo quase da pobreza, hippie, até os 100 milhões de dólares, junto com a Apple, o maior fenômeno de lançamento na bolsa de valores desde a Ford Motor Company, em 1956.
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>>> Return to the Little Kingdom: inglês | português
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Além do Mais
>>> Dicionário de Ciências Humanas, de Jean-François Dortier
Os dicionários, como o Aurélio e o Houaiss, todos conhecemos desde a escola. Acontece que, para quem navega nas chamadas "humanidades", a definição simples, de termos através de sinônimos, às vezes não basta. Como definir "pós-moderno", por exemplo? "O pós-moderno designa uma época marcada pelo 'fim das grandes narrativas'. Na realidade, é o fim das crenças no progresso e na marcha inexorável rumo a um homem melhor." E, ainda: "'Pós-moderno' é sinônimo de 'desilusão'. É uma estética desiludida, de um indivíduo que perdeu seus referenciais e que vaga numa sociedade sem futuro, sem passado e sem transcendência" (Jean-Francois Lyotard). Dá para ver que essa definição não é a de um dicionário comum... Está no Dicionário de Ciências Humanas, de Jean-François Dortier, sociólogo francês, editado pela WMF Martins Fontes. Também a definição de "paradigma", segundo Thomas Samuel Kuhn: "A ciência não evolui de maneira contínua, e sim por 'saltos'. Em cada época constata-se efetivamente a existência de um modelo dominante ou 'paradigma'." Assim: "Um paradigma é um corpus de hipóteses estruturadas entre si e que formam o sistema a partir do qual uma 'comunidade' de estudiosos reflete num dado momento." Igualmente, a noção de "hipótese e refutação", proposta por Karl Raimund Popper: "Cheguei à conclusão de que a atitude científica era a atitude crítica. Ela não buscava verificações, mas experiências cruciais." O Dicionário, de Dortier, vai desde as "ciências cognitivas" até as "ciências da informação e da comunicação". Com "anexos" dedicados a disciplinas mais tradicionais como Antropologia, Arqueologia, Educação, Política, Economia, História e Filosofia. Há espaço para autores contemporâneos, como António Damásio, para quem: "A razão e o conhecimento não bastam. As emoções são necessárias para que se tome uma melhor decisão" (O Erro de Descartes). E, naturamente, há espaço para autores clássicos, como Hobbes: "A cultura é o treinamento e o refinamento da mente" (Leviatã). Além de um texto fluido, Dortier não se deixa contaminar por ideologias, ainda que tenha suas preferências inevitáveis. Dá crédito para a crítica de John Kenneth Galbraith à "sociedade de consumo" (em A Sociedade Afluente): "[Nela] não são os produtores que estão a serviço das necessidades do consumidor, mas o contrário". Dortier, contudo, também consegue falar de "administração", e de organizações, como a "mecanicista" (segundo Henry Mintzberg): "Nesse tipo de organização, a divisão do trabalho é muito desenvolvida, os procedimentos são codificados e a linha hierárquica é extensa. O meio é estável e as decisões são do tipo estratégico e panejado. A capacidade limitada de inovação resulta em longos períodos de estabilidade seguidos de crises". Alguém se lembrou dos nossos dinossauros? Dortier não se esquece de Manuel Castells, que definiu a nossa era como a Era da Informação. E nem dos clássicos dos clássicos: "ética", ele recorda, vem de ethos ("hábito" em grego); e "mortal" vem de mores ("costumes" em latim). Se Espinosa acreditava que a ética servia "para nos libertar de tudo o que diminuiu nosso poder de agir e para alcançar a sabedoria", de modo semelhante, o Dicionário de Ciências Humanas pode nos salvar da ignorância, que era o supremo mal, para Sócrates ;-)
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>>> Dicionário de Ciências Humanas
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Cinema
>>> Comer, Rezar, Amar, o filme, com Julia Roberts e Javier Bardem
Comer, Rezar, Amar, como best-seller, pode ter irritado a elite highbrow, mas, vendo o filme, entendemos por que Elizabeth Gilbert "falou" a tantas mulheres de hoje. A prelúdio é a escolha racional que tantas (e tantos) fazem: faculdade, trabalho, casamento. Exatamente como seus pais fizeram. Mas, talvez, nossa "adolescência tardia" não nos permita fazer "a escolha certa"... a mesma que nossos pais, como menos idade, fizeram. Elizabeth, interpretada por Julia Roberts, está com mais de 30, tem um emprego, um marido, mora em Nova York, mas ― como diz a sinopse ― sente-se "devastada", e sozinha, passando noites no chão do banheiro frio. O primeiro, e óbvio, passo é se divorciar. O marido, que não passa pela crise, não aceita, e dificulta o caminho. O segundo passo é recomeçar a vida. E, para quem não consegue encarar a realidade, no curto prazo uma viagem pode ajudar... A parte da Itália, também conhecida como "comer", é aquela em que Elizabeth redescobre os prazeres gustativos, e o calor humano, reconstituindo um clima familiar que, na vida na grande metrópole, havia perdido. O prazer, contudo, não basta, e nem os amigos: é preciso encontrar um sentido na vida. E aí entra a parte "rezar", na Índia ― menos ligada com "reza", como dizemos aqui, e mais ligada com "iluminação", no sentido budista do termo. É interessante observar como desde os anos 60, pelo menos, a peregrinação de tantos ocidentais, rumo ao Oriente, tem servido como "antídoto" à sociedade afluente. Romper com a cadeia do materialismo, vivendo com pouco, ou muito pouco, devolve um senso de humanidade perdido, e de valores humanos essenciais. A terceira parte, "amar", em Bali, é a cereja do bolo. Depois do resgate do prazer físico, do sentido da vida, só faltava o reencontro com o outro: alguém com quem dividir essa nova jornada de prazeres, e de novos propósitos, numa nova vida. Surge Javier Bardem, o brasileiro Felipe, que Elizabeth Gilbert encontrou na "vida real"... Opa! "Como alguém pode ter tanta sorte assim na vida?", protestou Lori Leibovich, a crítica da Salon.com. (Será que ela estava se referindo a encontrar Javier Bardem ou a ser Julia Roberts?) Já Maureen Callahan, do New York Post, chamou Comer, Rezar, Amar de "narcicismo new age" ― talvez porque seja escrito em primeira pessoa, talvez porque três meses na Índia não sejam suficientes para levar alguém à iluminação... Por último, Katie Roiphe, da Slate, que, provavelmente, acertou mais que as outras duas: classificou a obra com "um grande livro de praia", "transcendental". E, de fato, Gilbert talvez não seja nenhuma grande intelectual, mas transmite honestidade no seu relato ― e a beleza plástica da adaptação para o cinema talvez nos convença de que podemos até ficar quebrando a cabeça com grandes questões filosóficas, mas encontrar (ou reencontrar) o amor, num cenário paradisíaco, ainda é uma grande pedida. Comer, Rezar, Amar, enfim, não era o best-seller insosso que parecia ser. Também não era a "nova bíblia" da mulher de 30 (quem embarcou nessa, continua a ver navios). Mas o filme tem o gosto de um "amor de verão" bem vivido. Ou, quiçá, redivivo ;-)
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>>> Comer, Rezar, Amar
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Julio Daio Borges
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