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Quarta-feira, 28/3/2012
Digestivo nº 486
Julio Daio Borges
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Além do Mais >>> Os Ensaios, de Montaigne
Todo mundo que aprecia uma leitura de fôlego já ouviu falar da forma "ensaio". Tantos escritores e pensadores lançaram seus livros de "ensaios" que parece um formato tão antigo quanto, sei lá, as diferenças entre "poesia" e "prosa". Mas o fato é que o "ensaio" foi inventado por um sujeito chamado Michel Eyquem, nascido em 1533, que chegou a ser prefeito de Bordeaux (na França), que não era nobre, mas que detinha posse de terras, e que, nos seus escritos, usou a alcunha de "Michel [Seigneur] de Montaigne". Reza a lenda que em 1569 sofreu uma queda de cavalho séria, que o fez contemplar a possibilidade da própria morte e, assim, nasceu um projeto autobiografico, o dos Ensaios. Também reza a lenda que Montaigne utilizou a palavra "ensaio" porque, na sua abordagem de temas, fazia "tentativas", não tinha a pretensão de ser definitivo e admitia que estava muito longe dos sábios da antiguidade, em quem se inspirava. Foi criado primeiro em latim, por determinação de seu pai, depois em francês. De modo que dominar os clássicos fazia parte do seu dia a dia, não era nenhuma coisa de outro mundo. Justamente por não ser um especialista, apesar de conhecer bastante, Montaigne se revela, no final das contas, um dos sábios mais humildes de toda a História. Dialoga, principalmente, com Sêneca e Plutarco, mas cita desde Sócrates, Platão e Aristóteles até Alexandre, César e Virgílio. Cronologicamente, está próximo da descoberta da América, tendo, aliás, escrito um ensaio mencionando o canibalismo (mas com muito respeito às culturas pré-colombianas). Apesar de ser considerado de fé cristã, praticamente não cita a Bíblia ou nenhum dos Doutores da Igreja. Como bom renascentista, sente-se mais à vontade entre autores gregos e romanos do que entre a literatura da Idade Média. Ainda que esteja, por exemplo, relativamente próximo do Dom Quixote (1605), toda a mitologia de príncipes e princesas, reis e rainhas não está presente na obra de Montaigne, a não ser para desconstruí-la (ocupa-se, insistentemente, com o lado humano, e menos nobre, da coisa toda). É assim, por exemplo, que apresenta seus Ensaios: "Quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e coerente, sem pose nem artifício: pois é a mim que retrato". Mais adiante, define seu projeto: "É um registro de ocorrências diversas e mutáveis, de ideias indecisas, e se calhar, contrárias". Contrariando Maquiavel, aliás, declara: "Mesmo se pudesse me fazer temido, gostaria mais ainda de me fazer amado". Fechando com: "Quem impõe seu discurso como um desafio e um comando mostra que sua razão é fraca". Montaigne varre praticamente todo o escopo de preocupações humanas (a edição original, dos Ensaios, abarca três volumes), tendo se tornado mais conhecido por capítulos como "Que filosofar é aprender a morrer" (uma constatação de Cícero), onde arremeda os estoicos: "Não há nenhum mal na vida para aquele que bem compreendeu que a privação da vida não é um mal". Fala, também, de estética: "É descortês e inoportuno criticar tudo o que não é de nosso gosto". Pondera sobre os limites do conhecimento: "É uma ousadia perigosa de grande consequência desprezar o que não compreendemos". E, citando Heráclides do Ponto, define-se mais um pouco: "Não sei arte nem ciência, mas sou filósofo". Reconhece, aliás, que a filosofia não está mais em alta: "É espantoso que as coisas tenham chegado, em nosso século, ao ponto de a filosofia ser até para as pessoas inteligentes algo vão e fantástico, considerado de nenhuma utilidade e de nenhum valor tanto para a opinião geral como para a prática". Contudo, quando necessário, soa igualmente pragmático: "É obrigado a agir mal no varejo quem quiser agir bem no atacado, e a cometer injustiça nas pequenas coisas quem quiser fazer justiça nas grandes". A nova edição dos Ensaios, lançada na coleção de clássicos da Penguin Companhia, é perfeita para quem deseja adentrar no universo de Montaigne, comprometendo-se, inicialmente, com um volume apenas. A introdução de Erich Auerbach, situando Montaigne na história da literatura, é primorosa. A tradução é fluida e as notas de rodapé são oportunas sem prejudicar a leitura. Conhecer Montaigne, para quem deseja fazer "amizade com a sabedoria" (sentido original da palavra "filosofia"), é, muito mais que uma obrigação, um indescritível prazer. Afinal, como Montaigne, mais uma vez, nos ensina: "Não há nada tão belo e legítmo quanto agir como um homem deve agir, nem ciência tão árdua como saber viver esta vida". [1 Comentário(s)]
>>> Os Ensaios
 



Literatura >>> Cartas de Kafka a Felice Bauer, por Elias Canetti
De toda a produção de Kafka, que a Companhia das Letras publicou em tradução primorosa de Modesto Carone, faltaram apenas os diários e as cartas. Perto de romances como O Processo, novelas como A Metamorfose e contos como Na Colônia Penal, as cartas e os diários podem soar menos importantes, mas não são. E uma amostra disso é a análise que Elias Canetti, romancista de Auto de Fé, faz da correspondência entre Kafka e sua noiva Felice Bauer, na colêtanea A Consciência das Palavras, editada agora pela Companhia de Bolso. O ensaio tem como subtítulo, justamente, "Cartas de Kafka a Felice", mas se denomina, mui apropriadamente, "O Outro Processo". Canetti, naturalmente, se refere àquele Processo (com letra maiúscula e em itálico), demonstrando, na sua argumentação, que a ideia da obra-prima se desenvolve ao longo do relacionamento entre Franz e Felice. Kafka a conhece por intermédio de Max Brod, seu amigo e futuro testamenteiro. (Aquele a quem, Kafka, no leito de morte, solicitou que ateasse fogo a suas obras. Borges diria, posteriormente, que se Kafka realmente quisesse dar fim a seu espólio, teria ele próprio queimado...) Enfim, Max era o jovem poeta da família Brod, de quem seus parentes sentiam orgulho, valorizando seus amigos escritores e sua literatura ― um acolhimento que Kafka, por exemplo, não encontrava em sua casa (vide a Carta ao Pai). Numa reunião nos Brod, Franz e Felice são apresentados e, através de cartas, estreitam relacionamento. Como raramente estariam na mesma cidade, o romance epistolar ganha força, ainda mais para alguém como Kafka. Isolado fanático, confessaria a Felice que não gostava de seus parentes não por serem, justamente, "parentes", nem por considerá-los pessoas "más", "senão simplesmente porque são os seres humanos que vivem mais perto de mim". Kafka era um escritor vocacional, um dos maiores do século XX, para quem "não há nunca suficiente solidão ao redor de quem escreve". Completando que "jamais o silêncio em torno de quem escreve será excessivo". E concluindo que "não pode jamais haver a nosso dispor o tempo adequado". Por meio desses trechos não é difícil imaginar que o romance entre Franz e Felice não iria prosperar, dada a incapacidade dele em se relacionar. Ainda Kafka: "Não posso viver em companhia de outras pessoas". Mesmo assim, decidem se casar e marcam o noivado. Um acidente de percurso, no entanto, põe tudo a perder: Grete Block, uma amiga de Felice, com quem Franz se envolve ― igualmente, de forma epistolar ―, e que, insegura, revela tudo à noiva (depois da solenidade). Kafka, após o evento social que, como misantropo, havia lhe custado tanto, acaba confrontado pela família de Felice, e o noivado é arruinado. Sobre o evento, anota no diário: "Estava atado como um criminoso. Se me tivessem atirado num canto, com autênticas correntes, roeado por guardas, para que só assim avistasse o que acontecia, não teria sido pior. E [pensar que] isso eram meus esponsais!". O rompimento se dá em julho de 1914. Em agosto, O Processo tem sua redação iniciada. Canetti, aproximando os fatos, é categórico: "Logo no primeiro capítulo, o noivado converte-se na detenção". Já o "tribunal" ― da família de Felice, por quem Kafka se sentia condenado ― "ressurge no último capítulo, sob a forma de execução". E a história não poderia se manter fiel sem Grete Block, o fruto da discórdia, que é incluída no romance como a "senhorita Bürstner", por quem "K.", o famoso personagem, sente uma atração fatal. O mais estranho de tudo, porém, é que Franz e Felice, passado o devido tempo, voltam a se relacionar. Eclode a Primeira Guerra Mundial, Kafka quer participar dela, mas, como não está apto, faz renovados planos, a fim de que se unam após o término do confronto: "Nosso acordo, em poucas palavras: casamento depois do fim da guerra; alugar duas ou três peças num subúrbio de Berlim; deixar nas mãos de cada um de nós a solução de seus próprios problemas econômicos." Para quem conhece a história, nem é preciso dizer que o casamento não seguiu adiante. Os noivos desfrutariam de intimidade, antes das bodas, mas Kafka jamais se sentiria apto: "Creio realmente estar perdido para a convivência com seres humanos". Elias Canetti nos relembra que o autor de obras tão intrigantes conseguiu ser tão (ou mais) complicado do que as próprias, fascinando leitores até hoje (quase 100 anos depois). Resta-nos engrossar o coro para que Modesto Carone verta, para o nosso idioma, o que falta de Kafka: os diários e as cartas ;-) [1 Comentário(s)]
>>> A Consciência das Palavras
 



Música >>> Os Estados Unidos versus John Lennon, por Leaf e Scheinfeld
John Lennon, mais de 30 anos depois, permanece como uma morte inexplicada. Mark Chapman, e as vozes que vinham não se sabe de onde, nunca convenceram direito. Pois David Leaf e John Scheinfeld resolveram fazer um documentário, esmiuçando a relação tensa de Lennon com os Estados Unidos. Qualquer pessoa que tenha lido algum texto biográfico sobre o ex-Beatle, sabe de suas dificuldades em se manter nos EUA com visto permanente. Leaf e Scheinfeld refazem o percurso em termos políticos. A má vontade com John Lennon remonta ao Bed-In, "For Peace", ao "Give Peace a Chance", às suas campanhas pelo fim da Guerra do Vietnã, à associação com ativistas políticos, culminando com a libertação de John Sinclair. Muita gente reputa essa "virada" à chegada de Yoko Ono. Leaf e Scheinfeld mostram que o engajamento de Lennon se intensifica com sua mudança para Nova York. Lá ele se reuniria com grupos como os Panteras Negras. John Lennon era músico, mas sua influência sobre a opinião pública obrigava os poderosos a rever suas decisões ― como no caso "Sinclair", que, depois da canção, e da reação das massas, obrigou a justiça a reavaliar uma sentença. Ingenuamente ou não ― pois não era um político profissional ―, Lennon era um rebelde nato e não tinha dificuldade em abraçar causas, e empunhar bandeiras. Numa entrevista, revela que se sentiu perseguido desde a escola, onde, apesar de brilhante, era indisciplinado e baderneiro. Em outro momento, quando tem seu visto de permanência negado, e fica à beira da deportação, revela, aos repórteres, que se sentia como se falando, novamente, com a "diretoria da escola". No fim das contas, obtém o famoso green card. E tem a felicidade de assistir ao nascimento de seu filho, Sean, no mesmo dia de seu aniversário. Yoko nunca havia visto John tão contente. Passam dias inteiros juntos, em família. Até que um leitor de O Apanhador no Campo de Centeio ― aparentemente um fã ―, pede um autógrafo para, em seguida, disparar e matar John. O resto é história. Contudo, na sequência do documentário, torna-se quase impossível não associar a perseguição do governo ao assassinato de Lennon, por um sujeito psicótico. Yoko Ono não duvida que seu marido tenha sido morto; os documentaristas, porém, não se alongam. Deixam a conclusão para o espectador. Afinal, ela soa muito pesada ainda hoje. (Mais de 30 anos depois...) Os Estados Unidos versus John Lennon foi lançado em 2006 e, no Brasil, recebeu grande atenção da mídia quando fez parte da Mostra Internacional de Cinema. O espectador comum, porém, não teve acesso ao DVD, que chegou atrasado, embora a polêmica se mantenha. Os anos 70, nos EUA, foram tão polarizados, em termos de política doméstica, como os 60, no Brasil. Aqui, é lugar comum, por exemplo, associar o silêncido, de décadas, de Geraldo Vandré, à repressão da ditadura. Ainda que nem Chico Buarque hoje admita ter feito "Apesar de Você" para o regime, relacionar episódios como esses ao "calor do momento" é como atribuir as iniciais de "Lucy in the Sky with Diamonds" às experiências dos Beatles com ácido. Leaf e Scheinfeld deixam sugerido que o presidente Nixon tinha interesse pessoal em acompanhar os movimentos do ex-Beatle. Logo, John Lennon era uma questão de estado? Atualmente ― quando até os manifestantes de outras épocas depuseram suas armas ―, custa, para nós, imaginar o que significa ter alguém ― mais popular que Jesus Cristo? ― contrariando os interesses do governo dos Estados Unidos. Julian Assange seria um discípulo à altura de John Lennon? "Steve Jobs contra os EUA" ― é possível imaginar isso? O documentário ainda conta com as presenças de "old contrarians" como Gore Vidal, Noam Chomsky e Tariq Ali. "Se ocorrer alguma coisa estranha conosco" ― teriam afirmado John e Yoko ― ", vocês não pensem que foi coincidência"... [2 Comentário(s)]
>>> Os Estados Unidos versus John Lennon | Trailer
 



Cinema >>> Meia Noite em Paris, de Woody Allen
A percepção, recorrente, de que nossa época não produz "nada de relevante" pode até estar errada, mas instalou-se de tal maneira no inconsciente coletivo que Woody Allen resolver jogar com ela em seu 41º filme, Meia Noite em Paris (2011). No longa, um roterista mediano de Hollywood, com ambições literárias, se vê transportado, sempre à meia-noite, até a Paris dos Anos 20, a da chamada Geração Perdida. Se durante o dia passeia pela capital francesa do século XXI, cheia de relíquias do passado, ratos de museu pretensiosos e turistas fúteis, na madrugada reencontra seus heróis: Fitzgerald, Hemingway e Gertrud Stein (que, inclusive, se dispõe a ler seu romance em produção). Na fantasia ― como se fosse num sonho psicanalisado ― descobre que não ama sua noiva (que, por sua vez, o trai com um conhecido); que deseja passar uma temporada na Cidade Luz (antes de voltar para os EUA); e que ― ao contrário do que se poderia imaginar ― refugiar-se nos 1920s não é a solução para seus dilemas existenciais. Já Marion "Piaf" Cotillard, companheira de jornadas no tempo, abandona o nosso anti-herói, interpretado por Owen "Marley" Wilson, ao trocar a Paris de Picasso & Matisse pela da Belle Époque, de Lautrec & Rodin. (Esses, por sua vez, trocariam sua época pela da Renassença ― e assim por diante.) O que Woody Allen parece nos dizer é que uma "era de ouro" nem sempre é precebida assim, por quem a vive de fato; que o passadismo e a nostalgia são eternamente mais confortáveis; e que grandes experiências ainda são possíveis (quando decidimos encarar, sem rodeios, o agora). Meia Noite em Paris não parece ter sido um desafio para o cineasta, de quem reconhecemos os trejeitos, sem nos incomodar ― como se Woody Allen usasse clichês oportunamente, para que fãs, como nós, se sentissem "em casa". As personalidades de quase um século atrás vão surgindo, como num "jogo da memória"; também os cenários e as falas ― que, mais do que reconhecer, desejamos adivinhar. Se não podemos mais fazer grande arte, podemos, como coadjuvantes, participar? A Paris contemporânea dirige seu acervo de grandes realizações contra nós, que, intimidados, afundamos em história da arte estéril. Hemingway, em Adeus às Armas, escolheu como tema a Primeira Guerra Mundial; Fitzgerald, a Grande Depressão, o jazz e o álcool, produzindo consequências nefastas. Owen "Marley" Wilson, de sua existência comezinha, não vai, definitivamente, tirar nada. É de se admirar, inclusive, que Gertrund Stein ― uma das maiores sensibilidades artísticas do período ― tenha se disposto a revelar seu medíocre triângulo amoroso. Woody Allen, igualmente, parece acenar, com maturidade um pouco desiludida, para seus velhos ideais de juventude. A literatura não para (do verbo "parar") o trânsito como parava ― como o cinema hoje, talvez, pare. (Ou nem o cinema mais.) Como Allen, devemos abandonar os grandes temas, a ambição das grandes obras, engatando flashes, em série, da vida cotidiana? Woody Allen sabe o valor da Paris dos Anos 20, mas, ao mesmo tempo, não resiste aos apelos do gênero "comédia romântica". O que nos resta é compartilhar filosofices no Facebook? [2 Comentário(s)]
>>> Meia Noite em Paris
 

 
Julio Daio Borges
Editor
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