DIGESTIVOS
Quarta-feira,
27/3/2013
Digestivo
nº 489
Julio
Daio Borges
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Literatura
>>> Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade
"Claro Enigma": antes de mais nada, um grande título. Tanto quanto "Sentimento do Mundo". Expressões que incorporamos. Cabe a um grande poeta dizer coisas que ninguém mais consegue. E, às vezes, cristalizar um achado verbal desse porte. Em "Legado", um poema, aliás, de Claro Enigma, Drummond resume: "De tudo quanto foi meu passo caprichoso/ na vida, restará, pois o resto se esfuma,/ uma pedra que havia em meio do caminho". Ou seja, teme que restará dele ― Drummond ― a bendita "pedra no caminho". Obviamente, trata-se de um ironia, pois o poeta incluiu o famoso poema, da "pedra no caminho", em sua Antologia. Nem sempre as antologias são "o melhor" de alguém ou de alguma coisa (embora muitas se vendam como tal). Mas, no caso de Drummond, é verdade: Antologia Poética é seu melhor livro. É uma antogia real, como todas deveriam ser... Mas seu "segundo" melhor livro talvez seja, justamente, Claro Enigma. Sua estreia, Alguma Poesia, sob os auspícios de Mário de Andrade, é um marco. Lê-se com prazer, numa sentada, e sem sobressaltos. Já Sentimento do Mundo é um marco histórico. Quando o mundo quase acabou, durante a Segunda Guerra Mundial. Acontece que Claro Enigma é a maturidade de Drummond, é o seu auge. Poemas como "Amar" dispensam apresentação: "Que pode uma criatura senão,/ entre criaturas, amar?". Ou versos como: "A madureza, essa terrível prenda" ("A Ingaia Ciência") e "O mundo não vale o mundo,/ meu bem" ("Cantiga de Enganar"). Por que a madureza é uma "terrível prenda"? Porque: "A madureza sabe o preço exato/ dos amores, dos ócios, dos quebrantos/ e nada pode contra sua ciência". A madureza, no caso, é o envelhecimento. E o fato de o envelhecimento ter "ciência" de si mesmo... não lhe serve de consolo. Estar ciente de que se está envelhecendo não alivia... o próprio envelhecimento. (Não há o que fazer.) Ao contrário da "ciência" de Nietzsche (que é "gaia", portanto alegre), essa ciência de Drummond é "ingaia", triste. Quantos poetas nos dão tanto em um só poema? A propósito, em "O Chamado", Drummond faz referência a Bandeira (que se dizia um "poeta menor"): "Na rua escura o velho poeta/ (lume de minha mocidade)/ já não criava, simples criatura/ exposta aos ventos da cidade". Como saber que é Bandeira? Pela terceira estrofe: "E pergunto ao poeta, pergunto-lhe/ (numa esperança que não digo)/ para onde vai ― a que angra serena,/ a que Pasárgada, a que abrigo?". E então: "A palavra oscila no espaço/ um momento. Eis que, sibilino,/ entre as aparênias sem rumo,/ responde o poeta: Ao meu destino". Só o destino de merecer "O Chamado" já teria valido... E, falando em ascendência, Drummond traduz, em "Encontro", o pai morto: "Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho". Refletindo sobre a condição humana, em "A um varão, que acaba de nascer", o poeta se resigna: "a todos como a tudo/ estamos presos". É, contudo, um boi (inspirado em Swift?) que encerra, em versos, nossa "humanidade" terrena: "correm/ e correm de um para outro lado, sempre esquecidos/ de alguma coisa". E: "Certamente, falta-lhes/ não sei que atributo essencial, posto que se apresentem nobres/ e graves, por vezes". Prosseguindo: "que/ impossibilidade de se organizarem em formas calmas,/ permanentes e necessárias". E concluindo: "Têm, talvez,/ certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem/ perdoar a agitação incômoda e o translúcido/ vazio interior que os torna tão pobres e carecidos". É Drummond forjando a consciência incriada da raça? Infelizmente: "Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos". Provocando, nessa mesma "Tarde de Maio": "Se morro de amor, todos o ignoram/ e negam". Dizem que Drummond invejava, em Vinicius de Moraes, a coragem de ter "vivido" como poeta. Quantos casamentos foram mesmo? Será que era isso a que Drummond estava se referindo? Pelo que deixou escrito, não parece que tenha amado menos... "Há que amar e calar/ Para fora do tempo arrasto meus despojos". E nós te seguimos, poeta...
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>>> Claro Enigma
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Literatura
>>> Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke
Cartas a um Jovem Poeta é, muito provavelmente, um dos maiores hits literários do nosso tempo. Uma ideia tão simples. E que foi replicada à exaustão. Mas Cartas a um Jovem Poeta, o livro, não foi concebido do mesmo jeito que a repetitiva sequência de Cartas a um Jovem... (pense numa profissão qualquer). Rilke não planejou o livro. Ele, simplesmente, "aconteceu", depois da morte do próprio Rilke. Porque Franz Xaver Kappus, o destinatário das cartas, achou por bem coligi-las. Rilke, portanto, não "imaginou" um "jovem poeta". O título, inclusive, não deve ter sido uma ideia nem de Kappus. Aconteceu de Kappus enviar seus versos a Rilke. E aconteceu de Rilke decidir aconselhá-lo. Não se conheciam. As missivas não tem, nem de longe, a pretensão de Cartas sobre a Educação Estética do Homem, de ― outro exemplo ― Schiller. Mais do que dar "conselhos" sobre a arte poetica em si, Rilke fala sobre a vida. Principalmente, sobre a vida de artista. Uma vida, aliás, que não é nenhum mar de rosas. Logo, Cartas a um Jovem Poeta, ao contrário de suas imitações, não é: nem um "manual", orientado a quem deseje "se tornar" poeta; nem sequer um estímulo para uma carreira "em poesia". Até porque essa "carreira" não existe. Como não existe "carreira de artista". O livro é breve. Mas os apressadinhos de plantão devem se concentrar na primeira carta. É onde se encontra o trecho clássico: "Confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?" Os comentários a essa pergunta são quase tão variados quanto as respostas à tradicional pergunta "por que escrevo?". Uma pergunta que, a bem da verdade, não faz sentido. Antes disso, Rilke desacredita o próprio ato de dar um alvitre: "Ninguém pode aconselhar ou ajudar ― ninguém". E quase no fim da primeira missiva: "Aceite o destino [se chamado a ser artista] e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com a recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou". A tradução, da Globo Livros, é de Paulo Rónai e Cecília Meireles. Continua Rilke (numa outra missiva): "Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranqüila as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir. Mas virá só para os pacientes, que aguardam num grande silêncio intrépido, como se diante deles estivesse a eternidade. Aprendo-o diariamente, no meio de dores a que sou agradecido: a paciência é tudo". Rilke nunca facilita: "Sinto que nenhum homem pode responder às perguntas e aos sentimentos que têm vida própria no âmago de seu ser. Mesmo os melhores se enganam no uso das palavras quando estas têm de significar o que há de mais discreto, de quase indizível". E Rilke não se esquece da ars amatoria: "O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação". Concluindo, mais adiante: "Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência". E para os ansiosos, de novo: "Não tire conclusões demasiadamente apressadas do que lhe acontece; deixe as coisas acontecerem". E repetindo: "Deixe a vida acontecer. Acredite-me: a vida tem razão em todos os casos". Cartas a um Jovem Poeta, como se vê, é muito mais que um "introdução" a poetastros e "letristas" ― é um repositório, involuntário, de sabedoria. As Cartas de Rilke servem tanto a poetas, quanto a artistas, quanto a seres humanos dos mais variados ofícios. Se os autores das subseqüentes "Cartas" ― que há no mercado às pencas ― lessem originalmente Rilke, desistiriam do projeto, e não diluiriam o único livro que interessa ler: justamente, as Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke.
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>>> Cartas a um Jovem Poeta
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Além do Mais
>>> Como tirar proveito de seus inimigos, de Plutarco
Na era das redes sociais, a amizade é quase uma obrigação. Uma competição? Ou se é "amigo", ou não se é nada. Ser "amigo" é existir; não ser "amigo" é, simplesmente, não ser. Na aritmética dos grandes números da internet, só a adição conta. O "gostar" é computado; já o "desgostar"... nem é contabilizado. No mundo encantado do Facebook, onde só existem "amigos" e o "gostar" é quase uma regra, como admitir uma palavra como... "inimigo"? Depois de ter um milhão de "amigos", um único e escasso "inimigo" ainda é concebível? Nesse sentido, Plutarco soa meio fora de moda: quem "tira proveito" de seus inimigos é porque tem inimigos, ou não? Mas... "inimigo"... isso ainda existe? Plutarco, apoiando-se no "sábio" Quílon ― um dos biografados por Diógenes Laércio ―, alerta que só não tem inimigos quem não tem... amigos! Mas o "amigo", para Plutarco, não é aquele da citação mordaz de Oscar Wilde ("Um amigo nunca te dará uma facada pelas costas ― só pela frente"). Uma pessoa sem inimigos é tão rara quanto... um país sem animais ferozes, Plutarco analisa. Se você já sentiu os efeitos da inveja alheia, já foi alvo de ataques de ciúme (alheio) e já despertou a concorrência... é porque... provocou inimizade(s). (Mesmo que sem querer.) O conselho de Plutarco, nesse livro, é no sentido de "tirar proveito" desses sentimentos negativos, dessas situações ruins. Mas como? Ele recorre ao exemplo da água salgada: "A água do mar é pouco potável e tem mau gosto; mas sustenta os peixes, favorece os trajetos em todos os sentidos, é uma via de acesso e um veículo para aqueles que a utilizam". Inimigos, explica Plutarco, incentivam a "viver com cautela". Também "a prestar atenção em si". Ainda: "a nada dizer (ou fazer) irrefletidamente". O inimigo "útil" inspira cuidado e vontade de viver "de maneira virtuosa e irrepreensível". Quer dizer que o inimigo é um aliado da virtude? (Como assim?) Oscar Wilde, agora, nos socorre: "Escolho meus amigos pela beleza; meus inimigos, pelo caráter; e meus inimigos... pela inteligência". Plutarco conta que, "quando pensavam e diziam que o poderio romano estava fora de perigo (após a destruição de Cartago e a sujeição da Grécia)", Nasica, político de então, advertiu: "Pois bem, é agora que estamos em perigo! Porque não sobraram rivais... que possam nos inspirar vergonha ou medo". Volta Diógenes Laércio, a quem indagaram, certa vez: "Como me defenderei contra meu inimigo?". Ele foi taxativo: "Tornando-te tu próprio virtuoso". A dica é: "deter-se menos na má intenção que o (inimigo) nos dirige" e mais no "serviço real" prestado por ele. César, ao reerguer as estatuas triunfais de Pompeu, recebeu de Cícero o seguinte elogio: "Reerguendo as estátuas de Pompeu, consolidaste as tuas". Assim escreve Plutarco. "Os insensatos maltratam suas amizades... enquanto os sensatos... sabem dirigir para seu proveito mesmo as inimizades" (grifo nosso). E Xenofonte: "É próprio de um homem ponderado tirar proveito [até] de seus inimigos". Logo: da próxima vez em que for, virtualmente, "desfazer uma amizade", (re)considere a sua "utilidade" ― apesar do "desgosto" que ela lhe provoque.
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>>> Como tirar proveito de seus inimigos
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Música
>>> Anthrax com Andreas Kisser, do Sepultura, no show dos Big 4
Em 1990 e poucos, Andreas Kisser tinha um cachorro que se chamava... Anthrax. A "cena" era quase inexistente no Brasil. Todo mundo se encontrava no Projeto SP, para o show do fim de semana. Podia ser Korzus, podia ser Viper, podia ser a apresentação da banda do balconista da Woodstock Discos ― que reclamava (depois de dedilhar "And Justice for All..."): "Vocês precisam valorizar a música nacional!". E lá estava Max Cavalera, e um cordão de puxa-sacos que não deixava ninguém se aproximar. Max pedia uma bebida no bar e ficava ensaiando meia hora para tomar. Babava, literalmente, na gravata. Os puxa-sacos exultavam. E lá estava a namorada do Andreas, da época. "Estamos brigados", anunciava. E, enquanto a reconciliação não tinha lugar, revelava as intimidades do guitarrista da banda mineira que conquistava o mundo. (Isso tudo antes de Paulo Coelho worldwide.) Hoje o Sepultura... ainda existe? Parece que a Conspiração, dos Cavalera, sim. Pelo menos tem muita coisa deles no YouTube. Mas eis que, perdido num escaninho da memória infinita do Google, surge um show do Anthrax, na turnê dos Big 4... com quem mesmo? Andreas Kisser! O próprio. Não deve ter contado do antigo cachorro... Deve ter ficado com vergonha. "Pô, Andreas, mas um cachorro?" Tudo bem que o Anthrax não é mais a mesma coisa. Anthrax com quem mesmo? Joey, o ressuscitado, Belladonna nos vocais. Andreas no lugar honroso de Scott Ian (junto com Charlie Benante e Frank Bello, os únicos remanescentes de todas as encarnações). E, como guitarrista solo, Rob Caggiano, um metido a besta, que, provavelmente, se sentia ameaçado pela presença do brasileiro. O repertório, graças a Deus, não era de muita invenção. "Caught in a Mosh", abrindo. Seguida por "Madhouse", quando Andreas é apresentado à plateia. Kisser, aliás, mostra que ensaiou direitinho, puxando "Antisocial". Vale recordar que Andreas, além de tocar com uma miríade de músicos no Brasil (desde Sandy & Junior até Ed Motta), teve o seu "momento", ensaiando a substituição de James Hetfield, quando o Metallica estava... no auge da popularidade. Sim, durante a turnê do Black Album. "Nice kid", comentava Lars Ulrich, com uma dose de paternalismo, na MTV. E, no Brasil, Andreas confessava que nem queriam saber se ele conhecia as cifras ou não. Alguém disparava "1, 2, 3, 4" ― e Andreas tinha de imediatamente acompanhar, sem errar. O Metallica tomava como pressuposto que todas as bandas de metal do universo já tinha sido covers do Metallica, e conheciam todas as bases e todos os solos. Isso foi antes da explosão de ego durante a "condenação" do Napster. E o Metallica afundou, como todos têm de afundar... Mas voltando ao Anthrax de 2011: depois de "Indians", Andreas atacou, inclusive, de "música nova" (do Anthrax): a desinteressante "Fight 'Em 'Til You Can't". Surpresa com Belladonna entoando "Only", sucesso, justamente, de seu sucessor, John Bush. (Seria, mais ou menos, como Ozzy entoando "Heaven and Hell".) Interessante, anyway. Talvez porque seja, tout simplement, uma grande canção. E Rob Caggiano não deixou Andreas Kisser solar uma vez sequer. Andreas, contudo, teve a sua vingança. Acompanhado de Benante e Bello ― a "cozinha" do Anthrax ―, arriscaram uma versão de "Refuse/Resist" (só a introdução). Benante prestando um belo tributo a Iggor Cavalera (agora com dois "g"?). Andreas, pelo seu lado, desafinando. O único que não poderia errar... Preferimos acreditar que foi "emoção". Gran finale com "I Am The Law"... Os irmãos Cavalera, na última reunião, deram para falar mal de Andreas. Max (desdentado): "Andreas Kisser não é o Sepultura". Ao mesmo tempo, no meio da entrevista, falavam na ideia de reunir todos os membros da banda num show único. A exemplo do Scorpions... (Com ou sem Paulo Coelho nos vocais?)
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>>> Anthrax com Andreas Kisser
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Julio Daio Borges
Editor
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