DIGESTIVOS
Segunda-feira,
31/3/2014
Digestivo
nº 498
Julio
Daio Borges
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Internet
>>> A aquisição do Whatsapp, pelo Facebook, por 19 bilhões de dólares
Foi a maior aquisição desde os tempos em que a AOL se fundiu com a Time Warner (2000). Desde os tempos da bolha. Que bolha? Alguém aí falou em bolha? Tudo bem que os avisos sonoros do Whatsapp vinham se tornando onipresentes, mas... 19 bilhões de dólares? Quando o Instagram foi adquirido pelo Facebook por 1 bilhão de dólares, o mundo inteiro custou a entender, mas... e agora? Por enquanto, há hipóteses. Desde a irracionalidade de Zuckerberg até o desejo, do Facebook, de manter-se eternamente jovem. O gigantismo da rede social, que nasceu em Harvard e completou uma década agora, estaria afugentando os mais jovens, que praticamente nasceram com o celular, não se apegam a sites e querem aplicativos simples e rápidos. O Facebook se tornou muito "família", todo mundo está lá e nenhum adolescente quer frequentar os mesmos lugares que seus pais... Outra hipótese diz que o crescimento registrado no celular, pelo Whatsapp, é algo que o Facebook não teve e nem terá. O SMS, que foi um grande negócio para as operadores de telefonia, estaria deixando de sê-lo. E quem assumiria o seu lugar? As mensagens instantâneas. Quando, dias antes, o Viber foi adquirido pela Rakuten, por 900 milhões de dólares, o mundo igualmente se espantou, mas, para uma empresa de e-commerce, parecia fazer sentido se aproximar "intimamente" de seus consumidores... Acontece que, mesmo entendendo a importância estratégica da aquisição do Whatsapp, pelo Facebook, persiste a questão do valor. Falou-se numa oferta anterior, feita pelo Google, de 10 bilhões de dólares. A ambição sem limites de Zuckerberg se igualaria à ambição sem limites de Larry Page, que, por sua vez, se igualaria à ambição sem limites de... Jeff Bezos, da Amazon? Quantos Washington Posts daria para comprar com um Whatsapp? Quase 40? 1 Whatsapp vale mais do que a soma de todos os principais jornais do mundo? Vamos demorar a nos acostumar com esse número... Para os usuários, o Whatsapp já sinalizou que "não muda nada". Mas nós sabemos, pelo Instagram, que não é verdade. Todos os problemas de privacidade históricos do Facebook automaticamente se transferem para o Whatsapp. Quem achava que poderia escapar da supervisão de Zuckerberg, acaba de cair na sua teia, de novo. Snapchat? Além de prometer apagar tudo o que é compartilhado (embora haja controvérsias), o Snapchat negou uma oferta de aquisição do Facebook, de 3 bilhões de dólares... Bom sinal? Mau sinal? Enfim: quanto vale o acesso aos SMSs de 450 milhões de pessoas? Edward Snowden, o sucessor de Julian Assange, quiçá tenha uma resposta... Além do Snapchat, todos os olhos, neste momento, se voltam para Kik e WeChat... (Cadê o aplicativo brasileiro de mensagens instantâneas?) Alguém, claro, evocou Steve Jobs ― que foi acusado de autofagia, quando o iPad passou a consumir as vendas do iMac... Jobs respondeu que era melhor a Apple "se canibalizar" do que ser "canibalizada pela concorrência". Seria o mesmo raciocínio de Zuckerberg? Jobs não está mais entre nós... (Gates se aposentou e não quer mais voltar...) Zuckerberg e o Facebook seriam vítimas da síndrome de Peter Pan? Felizmente, as aquisições espetaculosas, em bilhões de dólares, duram quanto a exuberância irracional durar. Alan Greenspan.
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>>> Mark Zuckerberg's full statement on Facebook buying WhatsApp
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Cinema
>>> Django Unchained, de Quentin Tarantino
Depois da abordar um dos momentos mais controversos da história recente ― a Segunda Guerra Mundial ―, Quentin Tarantino decidiu retroceder séculos, em vez de décadas. Django Unchained igualmente "brinca" com a reconstituição histórica. Brinca, entre aspas, porque o assunto, novamente, é sério. Se em Bastardos Inglórios, Tarantino aborda o nazismo, e o antissemitismo que redundou em holocausto, em Django fala da escravidão, do racismo e de guerra civil. É sempre questionável o papel do cinema, principalmente do cinema de ficção, na reconstituição histórica. "It's just a movie", como os americanos dizem, serve tanto para criticar quanto para absolver um filme. Ainda que todo mundo saiba da ambição "histórica" do cinema americano; de como os norte-americanos se vêem em tela grande; e de como essa "representação" é importante para a autoimagem da nação... O gênio de Tarantino não está em sua erudição em matéria de História, digamos assim. Talvez em sua erudição em matéria de história do cinema; ou em matéria de cultura pop. Tarantino é um mestre da forma. E cinema, no dizer de Millôr Fernandes, talvez seja mormente edição. Logo, o aspecto eminentemente histórico pode até gerar boa discussão, mas não é o mais importante. Pulp Fiction está completando 20 anos e é, no mínimo, significativo que aquele "rato" de videolocadoras, convidado trapalhão de festivais de cinema, consumidor de "ficção barata", tenha rompido a barreira do underground ao mainstream, passando de uma narrativa não-linear, metalinguística, com ídolos esquecidos dos anos 70, para uma produção épica, com bases históricas, metalinguística ainda, mas com astros entre os mais requisitados, como Brad Pitt e Leonardo DiCaprio. Se Kill Bill é sua primeira obra-prima de longa duração desde Pulp Fiction e Cães de Aluguel, Django é sua primeira obra-prima sobre grandes questões da humanidade, digamos (ainda que a precisão histórica não seja uma ambição). Bastardos Inglórios é um grande filme, mas, nele, Tarantino soa como um "arrivista" querendo reescrever a história da Europa. Apesar de Christoph Waltz, acaba produzindo uma caricatura da atuação da Alemanha na Segunda Guerra. E, por causa de Brad Pitt, acaba produzindo uma caricatura, inclusive, da participação americana no conflito. Em Django, contudo, não soa caricato seu retrato dos sulistas, escravocratas, que perderam a Guerra de Secessão. E, apesar de Spike Lee, a representação do negro americano é não apenas respeitosa, mas compassiva e, na reviravolta da história, até engrandecedora. Lee achou que Tarantino não deveria misturar escravidão com spaghetti western, porque aquele momento histórico, justamente, não foi uma comédia, e, sim, uma tragédia. Enfim... Outra crítica questiona a existência das "mandingo fights", que transformavam escravos em gladiadores (um contrassenso, uma vez que um escravo era um "bem", um "patrimônio"...). E outra, ainda, aponta imprecisão ao evocar Ku Klux Klan uma década antes de sua primeira aparição... O fato é que esgotado o veio de Pulp Fiction até Kill Bill, Tarantino abriu uma nova avenida com Bastados Inglórios e Django Unchained. A questão é se ele aguenta a controvérsia, a polêmica e a repercussão, ao lidar com temas extremamente delicados ao gênero humano (mesmo que reescrever a História não seja sua maior preocupação...).
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>>> Django Unchained
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Além do Mais
>>> O assassinato e outras histórias, de Anton Tchekhov
Como gênero, o conto se espraiou durante o século XX. Com a eterna desculpa da falta de tempo, leitores se acomodaram na brevidade do texto curto, e até escritores mascararam seu menor fôlego em produções de algumas páginas. Mas o conto é um gênero difícil. E poucos mestres dominaram as short stories, como se diz. Na primeira metade do século XIX, Poe tem um lugar incontestável. Mas, na segunda metade, esse lugar é de Tchekhov. Inflenciado por Flaubert e produzindo um recorte quase jornalístico ― nem sempre o jornalismo esteve tão mal como hoje ―, Tchekhov definia a missão do escritor assim: "Nós escrevemos a vida tal como ela é, e não damos nem mais um pio". (Quem sabe, Nélson Rodrigues, um fã dos russos, não tenha retirado daí o título da coluna onde abrigava um adultério por dia?) No Brasil, Tchekhov ficou mais conhecido pelas traduções de Boris Schnaiderman, saudado por ninguém menos que Otto Maria Carpeaux, atualmente pela editora 34. Mas, desde 2003, a última fase de Tchekhov mereceu tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac Naify. Contrastando com a vivacidade de A dama do cachorrinho (1999) e de O beijo e outras histórias (2006), O assassinato e outras histórias é um volume recheado de novelas e contos sombrios. O texto mais impressionante talvez seja "No fundo do barranco", sobre uma família de comerciantes marcada pela avareza, degraçada por um crime financeiro e alijada por uma morte prematura, e bárbara. Não por acaso, fecha, apoteoticamente, o volume. Em segundo lugar em termos de brilho, a história-título, que aborda messianismo, loucura, e mais um crime em família. A pobreza é um tema recorrente. Com quem Tchekhov conviveu na intimidade. E a pobreza reina absoluta no conto "Os mujiques", onde um homem doente e incapacitado para o trabalho, em Moscou, retorna para o seio da família, paupérrima, no interior. Um retrato implacável da Rússia pós-servidão, que Tolstói criticou, pois via nos mujiques ― e na pobreza ― uma esperança de redenção. "Iônitch" é a história de um médico que chega na província, e que, muitos anos depois, se desilude com a mesma, a ponto de se perguntar "qual poderia ser o destino daquele lugar", uma vez que "as pessoas mais talentosas da cidade eram tão medíocres". "O professor de letras", apesar de se concentrar num personagem apagado, tira conclusões igualmente fortes: "Onde vim parar, meu Deus? Estou cercado de vulgaridade por todos os lados". Trata de um idealista, que casa por amor, mas que percebe o desinteresse de seus alunos pela educação e a monotonia da vida em família. "Em serviço" completa o volume. Mais uma "apresentação" de Rubens Figueiredo e, nas últimas páginas, cartas do autor para seu editor. Médico, Tchekhov santificava, em suas próprias palavras, "o corpo humano, a saúde, a inteligência", e "o talento". Mas, como seus personagens, era fatalista e não tinha grandes ilusões com a escrita: "Escrevemos mecanicamente, apenas para cumprir uma ordem, estabelecida há muito tempo, segundo a qual uns entram no exército, outros são comerciantes e outros escrevem". E Tchekhov cumpriu seu destino. Com tanta perfeição que, mais de um século após sua morte, é praticamente impossível compará-lo a alguém.
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>>> O assassinato e outras histórias
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Música
>>> The Zen of Bennett, com Tony Bennett
Existem artistas acima do bem e do mal? Se formos lembrar do Procure Saber, não. Mas, mesmo assim, Tony Bennett parece ter atingido essa categoria. Bennett mereceu a admiração de Frank Sinatra, gravou com Count Basie, forjou obras-primas com Bill Evans. E Tony Bennett sobreviveu para contar a história. É uma lenda viva. The Zen of Bennett retrata o artista do alto de seus 85 anos. Lúcido, sábio, produtivo. Como um mestre oral, destila pensamentos ao falar de simples ternos até lembranças de Ella Fitzgerald em família. O name-dropping, no seu caso, não é uma estratégia de marketing pessoal ― é a sua vida. Como um dos grandes nomes do jazz por décadas, é natural que tenha memórias com o who's who da música norte-americana. O "zen" do título, obviamente, sugere uma "filosofia de vida", mas o documentário não trata especificamente disso. Tony Bennett solta pílulas de sabedoria entre os duetos que grava com "vocalistas" de hoje. Para além da música, é interessante, por exemplo, a sua preocupação em salvar Amy Winehouse do vício. Eles se encontram; ele diz que vai falar com ela; mas Amy, como sabemos, não teve um final feliz. É interessante, também, como Bennett se deixa impressionar pelo estrelismo de John Mayer. Danny Bennett, seu filho, idealizador e produtor do filme, chega a sugerir que Mayer poderia "agregar valor" a Tony Bennett. Mayer acaba ficando mais por sua beleza e pela fama de conquistador inveterado... Lady Gaga, quem diria, surge desprovida de toda a parafernália. É um verdadeiro teste para ela. Norah Jones é simplória, quase uma fã, poderia solicitar um autógrafo. Nem parece a filha de Ravi Shankar. Andrea Bocelli requer mise-en-scène. Ambiciona domar o sotaque italiano. Pede ajuda. Já Willie Nelson entra mudo e sai calado. (Nem está no cast.) Aretha Franklin vale por sua trajetória. É preferível assisti-la, por exemplo, em Os Irmãos Cara-de-Pau. De Michael Bublé, quase nem lembramos... O fato é que ninguém faz feio perto de Tony Bennett. E o próprio não está ali para julgar. Vivido, não espera se deparar com nenhum grande talento. Ao mesmo tempo, respeita, escuta, é paciente e ensina o que aprendeu. No fundo, talvez pressinta que a grande era do disco não tem retorno. "Disco" é força de expressão. Poderia ser a "era dos grandes estúdios". Ou "das grandes gravadoras". Quem sabe, Bennett não envia um recado para a nova leva dos que se produzem, se divulgam e se espalham... Cita Duke Ellington. Numa conversa com um executivo da indústria, Ellington teria dito que seu trabalho era gravar música de qualidade. Vender essa música não era seu trabalho. Tony Bennett, quem diria, é um sobrevivente desse momento. Quase outra era geológica. Bennett ainda se deixa registrar como artista plástico em casa, em Nova York. Sua mente inquieta jamais pára. (Uma esposa, décadas mais jovem, não parece muito bem humorada...) Depois de Tony, é Danny, the producer, quem mais dá o ar da graça. Seu pai é um mito e, para lidar com isso, Danny usa e abusa do humor. Perante uma das maiores vozes desde o pós-guerra, simplesmente não tem como se levar a sério. Tony Bennett, mais que um músico, é uma dobra no tempo.
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>>> The Zen of Bennett
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Julio Daio Borges
Editor
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