Quarta-feira,
25/9/2002
Digestivo nº 100
Julio
Daio Borges
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L'HOMME REVOLTÉ
Nos subterrâneos da internet, está sendo travada uma guerra silenciosa. Trata-se das iniciativas, de indivíduos ao redor do mundo, a favor do que chamam de "informação livre" e sem fronteiras. Tudo parece partir de dois princípios básicos. Primeiro: a mídia mente de forma deslavada; é mister, portanto, contrapor suas mentiras à "verdadeira verdade". Segundo: do jeito que as coisas andam, no reino da Information Technology (IT), seremos em breve engolidos por corporações planetárias, que - acredita-se - irão impor uma tirania muito maior do que a de governos totalitários; é fundamental, portanto, fornecer alternativas de qualidade a esses lobbies e monopólios. Partindo agora para dois exemplos práticos: o Centro de Mídia Independente, que num esquema de "democracia direta" supostamente mostra o que "não se vê na tevê"; e o sistema operacional Linux, que por ser "aberto" (open source) e gratuito, virou arma numa cruzada mundial contra o Windows, Bill Gates e a Microsoft. Tudo isso está num dossiê preparado pela revista Play #5, de setembro de 2002 (que - como se vê - é muito mais que mero "entretenimento eletrônico", subtítulo da capa). Esse movimento todo (de, certa forma, contra a Globalização e contra as investidas do Quarto Poder) tem um quê de anarquista, outro quê de esquerdista, embora use de infra-estrutura francamente "capitalista" (leia-se tecnologias como a internet) para nascer, crescer e florescer - o que é uma contradição em termos, ainda que "consciente". Dentre os seus "ideólogos", tem gente como: Noam Chomsky (o lingüista do Fórum Mundial Social) e Naomi Klein (a autora canadense que combate as marcas em "No Logo"); numa ala mais "moderada", Aldous "Admirável Mundo Novo" Huxley e George "1984" Orwell; e, na linha "Founding Fathers", tipos como Henry Throreau ("A Desobediência Civil") e Mikhail Bakunin ("Sobre a Anarquia"). Apesar da manipulação do noticiário ser fato comprovado e apesar de existirem mesmo empresas com ambições interplanetárias, há algo de assustador na pregação dessas pessoas que vêm do "underground"; será que, uma vez entronizadas no poder (embora neguem que seja esse o seu objetivo), não fariam uso de expedientes muito semelhantes?
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Play #5 |
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MÚSICA E DANÇA
Há tempos não surgia, na música instrumental brasileira, algo tão singular. Estamos falando de Juarez Maciel e do Grupo Muda, que promoveu um recital na última quinta-feira, no Instituto Moreira Salles. Acumulando um histórico de atividades de mais de sete anos, em Belo Horizonte, o Grupo Muda antecipou a ambientação do "lounge", os "minimalismos" e os "orientalismos" todos (inclusive os de Ryuichi Sakamoto), impondo uma solução definitiva para a eterna disputa entre erudito e popular. Como poucas vezes, não há prejuízo para nenhum dos dois lados, ao se escutar Juarez Maciel ao piano, Demósthenes Júnior ao violoncelo, Paulo Sérgio Thomaz ao violino e Vera Pape-Pape alternando-se entre flauta e sax. Como Juarez, o mentor do conjunto, esteve de 1986 a 1995 na Alemanha (aperfeiçoando-se em harmonia e arranjo, depois de se formar em música pela UFMG), suas composições têm um "acento" tão forte, decorrente dessa mistura de culturas, que é quase impossível traçar uma árvore genealógica que remeta às origens do Muda. Ainda que falte, à crítica musical brasileira, "base" para interpretar essa obra em construção, ela pode ser compreendida por qualquer pessoa (independentemente de se ter formação musical ou não). Eis aí a magia que ninguém consegue explicar. A mesma que seduziu gente como Rochelle Costi e Guto Lacaz, respectivamente autores da capa de "Casa" (1999) e do projeto gráfico de "Desenho" (2000), os dois CDs lançados pelo Grupo Muda. Todo mundo sabe como são tortuosos os caminhos daqueles que se embrenham pela seara da música instrumental, mas, no caso de Juarez Maciel e do Grupo Muda, algo nos diz que essa ordem começa a ser revertida aos poucos, por um trabalho consistente e digno de nota.
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Grupo Muda - Instituto Moreira Salles |
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FI-LO PORQUE QUI-LO
Ninguém agüenta mais. De repente, todo mundo tem de ter uma opinião sobre os casais flagrados em cenas íntimas, durante a tal festa da FGV. Circula por aí uma analogia interessante: quando se noticiou, há mais de um ano, que as adolescentes da periferia do Rio de Janeiro ficavam grávidas durante os bailes funk, todo mundo se horrorizou; agora mudou a cidade, mudou a classe social, as pessoas se conhecem e se fecham numa cabine por quinze rapidíssimos minutos, são fotografadas, e todo mundo só consegue falar na "liberdade" que cada um tem de fazer o que bem entender. Se existe tal liberdade e se o ato de exercê-la é tão corriqueiro quanto passar manteiga no pão, por que pessoas normais (não só os supostos cyber nerds) passaram e repassaram as fotos por e-mail, como se fosse o furo jornalístico da semana? Se fosse tão normal e tão inofensivo assim ninguém se interessaria, não é mesmo? Se nos Estados Unidos existe o falso moralismo de se condenar o que naturalmente acontece entre quatro paredes (caso Monica Lewinsky), no Brasil existe o falso moralismo reverso: aceita-se e estimula-se tais práticas, mas contra todas as evidências, elas são raras no País do Carnaval - o que obriga o brasileiro a correr diariamente atrás de nádegas, seios e reality shows. Não é estranho? Não à toa, uma reportagem da Folha de S. Paulo de alguns anos atrás revelava que o brasileiro médio, em matéria de sexo, é o típico cão-que-ladra-mas-não-morde: diz que é feliz na cama, mas não é coisa nenhuma; diz que transa não sei quantas vezes por semana, e não transa coisa nenhuma; diz que tem orgasmos não sei como, mas a verdade é que não sabe disso há muito. O caso da FGV ilustra, entre a juventude eletrônica, o caráter nacional: na condição de espectador, o brasileiro posa de protagonista e, enquanto isso, perde o trem da História.
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Fiz sim, e daí? | Hoje a festa é nossa |
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O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE)
Localizada há mais de dez anos no bairro das Perdizes, a churrascaria Mate Amargo reabre suas portas depois de passar por uma reformulação de dois meses. Especializada na modalidade gastronômica do rodízio, teve seu cardápio refeito e seu ambiente redecorado por obra e graça de Ricardo Semper Robles. Ricardo, além de chef e restaurateur há algumas décadas, é também proprietário do Veleiros de Ibiúna, freqüentado por celebridades do meio artístico, como Zizi Possi, também mandatários, chefes de estado e até candidatos à Presidência da República. Começou sua carreira no restaurante Taquaral, fixou residência na Espanha, formou-se em hotelaria e turismo pela Escola Superior de Cartagena e voltou ao Brasil, tendo passado por casas como a de Rogério Fasano. É um poço de histórias interessantíssimas sobre a cena gastronômica paulistana. Foi especialmente convidado pelo proprietário do Mate Amargo para restituir à churrascaria o mesmo prestígio de quem já esteve entre as melhores de São Paulo. O Mate Amargo possui salão amplo, estacionamento próprio, manobristas e recepcionistas, especialmente treinados, que recebem a clientela na porta. Sua especialidade obviamente se concentra no reino das carnes, em que Ricardo destaca o tradicionalíssimo "primeiro corte" (à disposição de qualquer pessoa que venha a requisitá-lo). No bufê de saladas, introduziu novidades como a chamada "escalivada" (com pimentões e cebolas assadas), as conservas de alcachofra e as mini-beringelas recheadas. Ainda na seção de pratos quentes, chamam a atenção o espeto de filé de javali, ao molho de framboesa, e o noisete de frango com tâmaras. Para outubro, o mês das crianças, Ricardo (que é pai de três meninas) prepara algumas surpresas guardadas a sete chaves.
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Churrascaria Mate Amargo - Avenida Pompéia, 1603 - Tels.: 3865-6449 e 3872-4203 |
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THE CITY OF K.
Com a mesma discrição de sempre, o Museu Judaico de Nova York promoveu a exposição sobre a cidade de Kafka: Praga. Um grande portal, recoberto por uma foto imensa e serena do escritor, recebia os visitantes que chegavam num domingo, em módicas quantidades. A escuridão do primeiro corredor, preenchido apenas por uma árvore genealógica da família de Franz e apropriadamente trespassada pela imponente figura de seu pai, Hermann, dava o tom lúgubre que permearia as demais salas da mostra. Lá de dentro podia-se ouvir, de tempos em tempos, frases perdidas em alemão, entoadas com vigor e rispidez, provavelmente tiradas da "Carta ao Pai". Aliás, para mostrar a que vinha, a curadoria já exibia, logo no início, uma versão fac-similar da mesma "Carta". Faria o mesmo com os originais de "O Castelo", "Na colônia penal" e "América", entre outros, bem como de suas primeiras edições, históricas. Só por isso, o passeio pelas coisas de Kafka (mais do que pelas coisas de Praga, felizmente) já teria compensado. Uma tentativa de reconstituir os traços judeus em sua produção também teve curso; quase como uma obrigação, porém (por estar esse baú de preciosidades abrigado lá, no Museu Judaico); o que não convenceu suficientemente, no entanto. (Borges, sim, escreveu sobre as possíveis origens da escrita kafkiana, traçando paralelos com outros autores; e digamos que foi muito mais feliz na empreitada.) Tirando esse deslize (pequeno), a exposição não poderia ser mais bem montada, envolvendo o visitante por mais de uma hora no inebriante universo daquele sujeito franzino que quase morreu anônimo. Havia fotos da loja do pai; mapas e vistas do bairro em que residiram em Praga; lembranças da escola, dos bares e dos amigos de alguém com pouquíssima disposição para o contato social. Estão igualmente esmiuçadas as relações de Kafka com o teatro amador; os romances frustrantes com Felice, Milena, Julia e Dora; o conflito nunca resolvido entre literatura e trabalho (incluindo as petições do advogado); extratos dos diários e das cartas, até a morte precoce devido à tuberculose. A tecnologia não estragou o espetáculo, graças a uma iluminação adequada, à projeção de filmes e de imagens tridimensionais, mas principalmente por causa do destaque conferido ao texto, que, numa mostra dessa natureza, é o que realmente importa.
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The City of K. - Franz Kafka and Prague |
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Julio Daio Borges
Editor |
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