Quarta-feira,
9/10/2002
Digestivo nº 102
Julio
Daio Borges
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LÍDER DE AUDIÊNCIA
Franklin Martins, o comentarista político da Rede Globo, foi entrevistado nas "páginas negras" da revista Trip. É o tipo de figura que, com a possível eleição de Lula, ganha uma dimensão insuspeitada. Como José Dirceu, combateu o militarismo nos anos 60 e 70, embrenhando-se na luta armada e recebendo treinamento de guerrilha em Cuba. Agora destila opiniões para milhões de telespectadores, ao lado de Ana Paula Padrão, deita a cabeça no travesseiro e dorme tranqüilo. Zuenir Ventura não previu, mas 1968 está voltando (de novo). Resta saber se como farsa ou como tragédia. Um raciocínio rápido para entender como a geração 1964, anos rebeldes, maio de 1968, vai assumir o poder mesmo (não tem jeito): os regimes de exceção, de Castello Branco a Figueiredo, arrasaram as organizações partidárias até então - inviabilizando, ato contínuo, a criação de novos quadros políticos. A não ser "aqueles". Por "aqueles", entenda-se o fisiologismo de Arena e MDB. Como na esfera da legalidade, a esterilidade foi implantada em caráter oficial, ascenderam nomes como Paulo Maluf e Orestes Quércia - e até mesmo Mário Covas, Tancredo Neves, Ulisses Guimarães e Fernando Henrique Cardoso. Acontece que essa geração teve sua chance, consolidou a democracia (dizem) e agora se vê obrigada a sair de cena (foi amplamente rejeitada no último pleito). Quem assume então? ("Quem sobra?" - seria mais correto perguntar.) Ora, tirando quem cresceu à sombra dos militares, resta a oposição franca ou incipiente (à época); ou seja: respectivamente, os "subversivos", de 30, 40 anos atrás (Dirceu e Martins, por exemplo), e os heróis do sindicalismo esclarecido (Lula, PT, CUT e todo o seu "entourage"). Portanto, quer se queria quer não, trata-se da marcha da História. Continua assustador, no entanto. Não apenas por uma questão de preferência pessoal ou de ideologia política, mas porque no rastro dessa geração que se confirmou na "legalidade" e agora no "mainstream", não há outra. As viúvas de 64 e 68 tendem a se revezar no poder, por muito tempo, pois quaisquer outras opções, a médio prazo, inexistem.
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Franklin Martins - Revista Trip |
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JAH'D NEVER LET US DOWN
Antes tarde do que nunca. Alguns discos se perdem no turbilhão de lançamentos e não são devidamente apreciados pois a fila de novidades vem espichando logo atrás. E o tempo urge. Aconteceu assim com "Kaya N'gan Daya" (2002), uma homenagem de Gilberto Gil a uma de suas admirações maiores: Robert Nesta Marley. É quase ancestral a devoção de Gil à figura máxima do reggae. Se, além de livros, devem existir álbuns de cabeceira, os do compositor baiano se restringem aos assinados por Bob Marley e João Gilberto. A crítica não deu atenção ao aspecto estritamente pessoal do projeto: ao mesmo tempo, uma deferência e um acerto de contas, de um grande artista pop para outro. Sobressaiu o aspecto lúdico da mistura de ritmos (brasileiros com jamaicanos) e o caráter duvidoso de algumas versões (como a própria "Kaya", que sacrificou a poética em nome de uma certa literalidade). O que há de notável, no entanto, não são as misturas esdrúxulas de gêneros, nem mesmo o letrista às voltas com a falta de inspiração. Talvez, no fundo, falte ao público brasileiro uma familiaridade mínima com o universo de Marley; na hora de estabelecer comparações (para melhor ou para pior), simplesmente não tem parâmetros. Afinal, os grandes momentos de "Kaya N'gan Daya" - e há muitos - são aqueles em que o Gilberto Gil Criador interfere menos, dando justamente espaço para o Gilberto Gil Intérprete. Nessa linha se encaixam: "Buffalo Soldier", "One Drop", "Waiting in Vain", "Positive Vibration", "Could You Be Loved", "Easy Shankin'" e "Turn Your Lights Down Low". Adoração e devoção extremadas sugerem quase uma missa pagã, ainda que permeada pelo sincretismo religioso (sanfona e percussão devidamente incluídas). Gilberto Gil Criador, irrefreável, até acerta o alvo com "Table Tennis Table" (uma diluição alegrinha à la Ziggy Marley), mantém o tom solene em "Não Chore Mais", derrapa na pista com o refrão abrasileirado de "Kaya N'gan Daya", supera-se forrozeiro em "Tempo Só" ("Time Will Tell") e quase põe tudo a perder com "Eleve-se Alto ao Céu" ("Lively Up Yourself"), encerrando neutro com "Lick Samba". Os convidados, célebres, não importam tanto. O tributo está pago. O julgamento fica por conta do tempo (rei).
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Kaya N'gan Daya - Gilberto Gil - Warner |
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HIBAKUSHA
Sem exagero: vale por uns dez cursos de jornalismo universitário. Somados e multiplicados. Estamos falando da coleção "Jornalismo Literário", idealizada pela Companhia das Letras, que a julgar pelo primeiro volume (recém-lançado), indicação de Matinas Suzuki Jr., vai tirar o Brasil de um atraso editorial de meio século. "Hiroshima" de John Hersey foi reportagem de capa e edição especial da lendária revista "The New Yorker", a 31 de agosto de 1946 (um ano e alguns dias depois da explosão da bomba A). Foi também aposta de Harold Ross e William Shawn, editores da era de ouro da publicação e, conseqüentemente, do jornalismo norte-americano. A edição se esgotou ainda nas bancas e o texto de Hersey se converteu na melhor matéria jamais escrita. A opção por uma narrativa factual, sem espaço para considerações morais ou para expressão de sentimentos do autor, conferiu perenidade às pouco mais de 150 páginas de "Hiroshima". Hersey preferiu se ater exclusivamente aos depoimentos dos sobreviventes e das vitimas, compondo um painel a partir de seis personagens principais. A frieza e a aridez do texto são, portanto, contrabalançadas pelo drama de cada protagonista em seu empenho particular de reconstruir a vida a partir das cinzas. Os horrores da explosão que matou mais de 100 mil pessoas, feriu outras 100 mil e inscreveu sua marca na História são descritos em detalhes. O único paralelo possível ao leitor de hoje são os atentados do 11 de setembro - com a diferença que Hiroshima foi atingida como um todo, por uma arma até então desconhecida (cujos efeitos eram imprevisíveis), tendo assistido à agonia de milhares que permaneceram dias ao léu, sem socorro. Além de ter se convertido numa das maiores bandeiras na luta pela paz, a reportagem de Hersey poderia ainda ser útil a um mundo que se lança numa conflagração sem precedentes, oriente-ocidente. Para o leitor individual, "Hiroshima" guarda, além do exemplo de estilo, as lições de seres humanos que venceram, quase sempre sozinhos, um dos maiores desastres que a humanidade já viu.
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Hiroshima - John Hersey - 176 págs. - Cia. das Letras |
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O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE)
As feiras em São Paulo têm tido sua eficácia cada vez mais questionada. Se no começo esse tipo de evento juntava aficionados e profissionais do ramo, hoje a corrida pela audiência e a necessidade de produzir cifras crescentes descaracterizaram a iniciativa completamente. Os espaços são cada vez maiores (fala-se em dezenas de milhares de metros quadrados); a decoração, apenas funcional e impessoal; o visitante, por compor uma massa astronômica, sente-se, a cada ano, mais abandonado e mais impotente. E isso não é só privilégio da Boa Mesa 2002, feira gastronômica paulista ocorrida na última semana de setembro. Acontece que nesse evento algumas dessas falhas estiveram igualmente presentes. Por exemplo: o público, item fundamental, deixou há muito de ser desejado por fornecedores e fabricantes (mais preocupados com contratos no atacado do que com qualquer contato no varejo). Na Boa Mesa 2002, o consumidor final também não foi objeto da atenção de algumas marcas e lojas, que, em lugar de trazer novidades em acessórios e utilidades domésticas, apenas reproduziram uma "versão móvel" de suas filiais e matrizes nos shoppings. Nem mesmo no terreno da degustação (atividade em que o visitante aposta o preço do ingresso) a feira cumpriu o que prometeu: os comes & bebes acabaram restringidos a alguns poucos expositores generosos ou então às aulas pagas e às demonstrações dos chefs. Se no quesito "obtenção de bens e serviços", a Boa Mesa 2002 frustrou um pouco, conseguiu compensar na dita "transmissão do conhecimento". Os workshops estiveram abarrotados e os espectadores se acotovelavam do lado de fora para não perder um detalhe sequer; um gigante dos eletrodomésticos disponibilizava sua linha de utensílios para quem quisesse testar seus dotes à mesa; os superstars da gastronomia paulistana circulavam displicentemente entre a multidão. Enfim, vão dizer que foi um sucesso. E talvez até foi - mas é sempre tempo de questionar esse modelo de grandes feiras, imensos centros de convenção e megaeventos.
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Boa Mesa 2002 |
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ESPERANDO GODOT
Precisamos apenas de alguns minutos para perceber que estávamos saudosos do minimalismo de Gus Van Sant ("Encontrando Forrester" [2000], "Gênio Indomável" [1997], "Garotos de Programa" [1991], "Drugstore Cowboy" [1989]). Claro que depois de meia hora a simplificação ostensiva do diretor cansa, mas aí já fomos fisgados. "Gerry" (2002), em cartaz na 26ª Mostra BR de Cinema, apesar do enredo excepcional, é basicamente uma experiência estética. Muita gente vai reclamar, pois é comum sentir-se vítima de avassaladores blockbusters ou refém de grandes cineastas e seus experimentos. A segunda categoria nos remete imediatamente a David Lynch e seu "Mulholland Drive" (2001), e as lembranças não são exatamente as melhores. Desta vez, as cobaias (além da platéia) são Matt Damon e Casey (irmão de Ben) Affleck. Os dois atores são co-autores do roteiro e sua performance sinceramente nos convence de prováveis interferências. São dois amigos vagando pelos desertos de Nevada e da Califórnia, atrás de alguma coisa ("the spot"), e que depois de muitas andanças acabam fatalmente se perdendo. É aí que o longa começa de fato: quando a dupla segue em ondas de desespero crescente e a capacidade do realizador de contar histórias efetivamente se projeta. Afinal, há uma porção de aventuras (e desventuras) semelhantes; e não só no areal, mas também na neve, em terrenos pedregosos e principalmente como conseqüência de acidentes. Nem precisa dizer que Gerry e seu homônimo vão ficando sem comida e sem água, congelando no frio e ardendo no calor. Existe também um princípio de sadismo em Gus Van Sant que, enquanto registra as agruras das personagens em condições sub-humanas, fotografa como possivelmente ninguém antes as paisagens em suas variantes de cor e luminosidade. Num exercício à la Monet, troca as flores pela decomposição de restos humanos. A luta em "Gerry" é, portanto, entre a beleza e a desesperança.
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Gerry | Jornal da Mostra |
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Julio Daio Borges
Editor |
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