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Quarta-feira, 16/10/2002
Digestivo nº 103

Julio Daio Borges

>>> TURMA DA XUXA É impressão ou a discussão política vai ficando cada vez mais infantilizada à medida que nos aproximamos do "the final moment"? FHC, em entrevista à Época, afirma que o desempenho de Serra não implica em rejeição de seu governo (afinal, foram 70% de votos contra). Segundo ele, estamos votando, antes de tudo, em pessoas. Que maneira mais deselegante de lavar as mãos, senhor presidente. Já Serra cansou de repetir que seu governo não é esse que está aí, mas sim um outro que ainda nem começou. Santa velhacaria, senhor candidato. E pensar que é assim que eles pretendem diminuir a distância que os separa de Lula (60% contra 30%, de acordo com a última pesquisa). Os tropeços são mais que evidentes, são auto-evidentes, e sugerem até sabotagem interna; ou seja: numa torcida canhestra pelo PT, ambos trocariam farpas como essas, enfraquecendo-se mutuamente (Governo e candidato do Governo). Boris Casoy disse à Bravo! que a tevê força o nivelamento do debate por baixo; algo que Sérgio Augusto mui apropriadamente denominou "camelotagem de idéias". É mais ou menos o que se acompanha no noticiário atual, refém de declarações infelizes como essas. A campanha é propositadamente emocionada e irracional; como quando FHC perdeu a prefeitura de São Paulo por dizer que era ateu, ou como quando Lula se viu prejudicado por uma filha não-assumida publicamente. Por isso, cresce a importância dos marqueteiros - essa gente especializada no slogan de superfície, no apelido depreciativo, na piadinha colocada na hora certa. Agora, por exemplo, circula uma carta endereça à atriz Regina Duarte, condenando sua participação no programa eleitoral do Governo. O signatário se apresenta como dramaturgo e sua emenda, de tão mal escrita, conseguiu sair pior do que o soneto (por mais apelativo que esse seja). Pessoas a princípio esclarecidas estão distribuindo. É o tipo de coisa que "pega". Ninguém parece querer crescer politicamente.
>>> Presidente em campanha
 
>>> SUPRESSÃO DE RUÍDOS Em cidades barulhentas, poluídas e densamente povoadas, como as nossas, o minimalismo passou de "estilo de vida" a "tática de sobrevivência". Na luta diária, nos embates com os outros, na imposição publicitária do consumo, o indivíduo tenta preservar sua essência. Procurando reduzir-se a um mínimo necessário, reafirma suas características e distingue sua voz em meio aos gritos da multidão. Foi mais ou menos assim que pensou Adriana Calcanhotto, em seu mais recente CD, "Cantada". Na capa, por exemplo, apenas uma boca vermelha, uma moldura preta, o nome do artista e da obra em questão. Na apresentação, algo como "tirar os enfeites, as sobras, as gorduras, os 'over-actings'". Nas músicas, uma harmonia sugerida, uma melodia assobiada; nas letras, versos de uma, duas ou três palavras, sujeito oculto, vocabulário simples, repetição enfática. E, claro, para não negar uma tendência de toda a MPB ultimamente: as injunções eletrônicas. Na verdade, no caso de Adriana Calcanhotto, continua a disputa entre analógicos e digitais, uma vez que o álbum alterna momentos moderníssimos com inflexões bossa-novísticas; ou seja, não se decide. Traduzindo em termos de convidados: oscila entre Moreno+2 (Kassin no baixo, Domenico no MPC2000 e Moreno no cello) e Daniel Jobim (piano de uma nota só). Ainda que esse arranjo soe um tanto quanto esquelético, ao ouvinte de primeira viagem, a opção de La Calcanhotto acaba convencendo. Talvez a experiência do acústico (imediatamente anterior), tenha ressaltado o início, o fim e o meio, em sua carreira: a voz e o violão. (Às vezes, nem mesmo o vilão; só a voz.) "Cantada" abre com a poesia silábica de Waly Salomão em "Programa"; estende um pouco as vogais em "Justo Agora"; experimenta menos na radiofônica "Pelos Ares"; evoca Tom Jobim em "Noite", de Antonio Cicero; desmancha-se na atmosfera cool de "Sobre a Tarde"; sofre um pouco com a faixa-título ("Cantada"); anuncia um encerramento nada ortodoxo com Péricles Cavalcanti ("Sou Sua" e "Intimidade"); surpreende com "Music", de Madonna; entrega-se ao classicismo ("Se tudo por acontecer") e a Carlos Drummond de Andrade ("Jornal de Serviço"). A moça trabalhou; e não se saiu mal. O esforço minimal, no fim, parece que compensa.
>>> Cantada - Adriana Calcanhotto - BMG
 
>>> NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR Ainda que o mundo inteiro tenha palpitado sobre os atentados do 11 de setembro (e o jornalismo, mais uma vez, tenha metido a sua colher), poucos indivíduos (e pouquíssimos jornalistas) podem se dar ao luxo de dizer que estavam realmente lá. Um deles é Sérgio Dávila, correspondente da Folha de S. Paulo em Nova York. Na noite do dia 10, cobria um inocente show do Jamiroquai; na manhã do dia 11, mais precisamente às 8h45, recebia um telefonema bombástico da redação, sobre o primeiro avião que se chocava contra a primeira torre. Viu o segundo avião (se chocar contra a segunda torre) pela CNN, e saiu pelas ruas, em disparada, em direção ao World Trade Center. Viu a primeira torre desabar a 20 quarteirões do local; e viu a segunda torre desabar a 6 quarteirões do local. O resto é silêncio (ou impenetráveis nuvens de poeira e fumaça). Está tudo em "Nova York - Antes e depois do atentado", lançado pela Geração Editorial, na coleção Vida de Repórter, por ocasião do primeiro aniversário do 11 de setembro. Os textos foram compilados a partir da coluna "Pop, Pop, Pop", de Sérgio Dávila, no Uol, e partir de suas reportagens para a Folha de S. Paulo. Há também colaborações para a revista "Viagem e Turismo" e para a "Revista da MTV", entre outras. As fotos são de Teté Ribeiro, esposa e co-autora. E não é só; há mais. Embora o livro se divida em "antes" e "depois" do atentado, pouca gente efetivamente se debruçou sobre o "antes" (imaginando que se tratava apenas de um prelúdio, ou de uma explicação, para o "depois"). Perdeu, pelo menos, metade. Ainda que Sérgio Dávila fale na perda da inocência e Paulo Henrique Amorim, autor do prefácio, fale em uma vida dividida em duas, as primeiras 140 páginas, que registram a lua-de-mel do correspondente com sua cidade, são igualmente fundamentais. Lá, além da jovialidade e do bom humor do autor, estão a chave para o amadurecimento súbito de Sérgio Dávila, e, por que não dizer, de Nova York.
>>> Nova York - Antes e depois do atentado - Sérgio Dávila - 256 págs. - Geração Editorial
 
>>> BAILE DE MÁSCARAS Entre leigos, ainda pairam as dúvidas sobre a qualidade da fotografia digital; entre profissionais, as dúvidas já se dissiparam. É o que prova a vernissage "Veneza 2002", em cartaz no restaurante Little Italy, com inauguração oficial marcada para o dia 15 de outubro. São fotos em preto e branco, trabalhadas em Photoshop, com alguns pequenos detalhes em cor. O autor da arte é Gladstone Campos, fotojornalista que iniciou sua carreira nas revistas Placar e Veja, tendo fundado publicações como a Caras e hoje se consagrado como titular da Gula, editada por J.A. Dias Lopes, um amigo de longa data. Gladstone inclusive aproveitou um dos giros gastronômicos pela Itália para, em apenas algumas horas, fazer o seu registro da cidade dos gondoleiros. Não é a sua primeira vez no Little Italy, no entanto. Esse é o segundo convite de Flávio Cateb, dono da casa; o primeiro teve como tema Paris. Gladstone, embora seja um dos profissionais mais hábeis e tarimbados do mercado, foge ao clichê e mostra uma Veneza feita de pequenos detalhes. São representativas nesse sentido: a imagem de despreocupadas senhoras vagando pela rua, tendo como fundo cartazes publicitários (lá também há); o retrato do gondoleiro distraído, fugindo ao assédio dos fotógrafos (nem todos), num de seus intervalos para descanso; a decomposição das ferragens que construíram a cidade secular e que, um dia, fixaram as bases do Império Veneziano. Tudo em "digital" (como se diz no jargão); nada em "analógico". Praticamente, com a qualidade da impressão elevada a níveis antes inimagináveis, não existe mais diferença. Nem mesmo um olho clínico pode apontar qual é qual. A partir do dia 15, os trabalhos de Gladstone serão vendidos e toda a renda será revertida para a Derdic, fundação de Osmar Santos. O Little Italy, além de oferecer a assinatura de quem fundou a lendária pizzaria Micheluccio, dá de presente uma réplica para quem gastar acima de R$ 50. Soluções combinadas assim são raras, em matéria de arte; e merecem que se vá prestigiar.
>>> Veneza 2002 - Gladstone Campos - Little Italy - Rua Lisboa, nš 35 - Pinheiros - Tels.: 3061-0374 e 3083-6067
 
>>> UM PRESENTE CONTÍNUO A exemplo da China, a Rússia construiu também sua muralha e isolou-se do mundo durante quase todo o século XX. Estamos falando da "Revolução Russa", que, de 1917 até a Perestroika de Gorbatchev (1985), jogou o país no limbo. Esta não é propriamente a tese de Alexander Sokúrov em "Arca Russa" (2002), em cartaz na 26ª Mostra BR de Cinema, mas é como se fosse. Além da curiosidade técnica (o filme é feito a partir de uma única tomada de 97 minutos), Sokúrov convida o espectador para um passeio pela História da Rússia, dando destaque a grandes figuras (Pedro, o Grande, Catarina, a imperatriz, Puchkin, o poeta), enquanto registra o esplendor de uma nação hoje em ruínas. Forma e conteúdo se misturam de tal sorte que descrever essa experiência cinematográfica é inevitavelmente passar pelo roteiro e pela feitura quase artesanal do longa. O filme começa em meio a um corre-corre atrás do que parece ser um baile ou simplesmente uma festa. A câmera sobrevoa os salões e corredores, flutua entre os convivas, atravessa cenas como se perseguisse a narrativa. Ao mesmo tempo, um narrador surpreendido com o que vê tenta se localizar no espaço e no tempo. A ele, junta-se um outro sujeito que aparentemente também viaja pelas mesmas épocas; deixa escapar que é europeu (provavelmente francês) e sua ranzinzice contrasta com o deslumbramento da voz de quem narra (certamente de um russo). Esse "diálogo" entre o nosso "cicerone" e o seu "convidado", permite que o espectador se situe (não perfeitamente, é lógico) e possa igualmente se encantar com as belezas escondidas num palácio perdido em São Petersburgo. São sem paralelos, por exemplo, as tomadas de uma grande valsa, com dezenas de personagens em passos e movimentos de encher os olhos. É nesse ponto que o narrador pergunta ao nosso francês ranzinza: "Vamos para a outra sala?". O forasteiro retruca: "Mas o quê há lá? O que nos espera?" - fazendo obviamente alusão ao futuro. O russo então confessa: "Realmente, não sei o que há além daquela porta. Mas você não vai mesmo?". Ao que o outro responde: "Não, não vou. Eu fico aqui." É claramente a resposta do próprio Sokúrov aos anos 1900 e mesmo 2000, que, apesar de revolucionários, modernos e científicos, mataram a grande Rússia para nunca mais.
>>> The Russian Ark | Jornal da Mostra
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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