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Quarta-feira, 23/10/2002
Digestivo nº 104

Julio Daio Borges

>>> BATUTA GIRATÓRIA Júlio Medaglia foi à "Caros Amigos" dizer que a MPB de hoje é uma droga. Há mais de vinte anos que ele vem repetindo esse refrão. A primeira vez foi no Pasquim, em 1980. Ultimamente vem atualizando suas rimas para incluir nelas também a "indústria cultural", os "executivos das grandes gravadoras" e os "órgãos do governo". Ainda assim, considera Chico Buarque "muito melhor" que Bob Dylan, Gilberto Gil "mil vezes mais músico" que Bob Marley e "qualquer canção de Caetano" muito mais valiosa que "todas as composições de Mick Jagger". Nem tanto à terra, nem tanto ao mar. Se Medaglia despreza tanto esse universo, por que sempre recorre a ele quando precisa se projetar? Ou, então, por que não reconhece que foi através dele - e só dele - que, há mais de 35 anos, conseguiu se lançar? O discurso dos eternos injustiçados pela História ou dos que têm a solução para os principais problemas já deu o que tinha de dar. (Dizem que um desses "oprimidos" será, no domingo, alçado à Presidência; vamos ver até onde chegam seus poderes oraculares e suas soluções mirabolantes...) Aliás, será interessante observar o comportamento de certas "publicações de oposição" quando, ideologicamente empossadas, forem "de situação" e não tiverem mais nada o que falar. Como é que vão viver sem "FHC", "Armínio Fraga", o "FMI", a "globalização" e o "neoliberalismo"? Para quem se acostumou a andar sempre na contramão, e faturou muito em cima da luta do "bem" contra o "mal", vai ser complicado. Um tédio danado. Ou uma tremenda de uma frustração, afinal de contas, os super-heróis são humanos e costumam errar... Ainda mais quando sua experiência é meramente teórica, suas opiniões são as de quem esteve a vida inteira "de fora" e sua "coerência", aquela "lógica dos idiotas". Atenção para as manchetes e para as capas do dia 1º de janeiro de 2003. Será que podemos esperar por uma renovação também no quadro de "revoltosos"?
>>> Caros Amigos
 
>>> THAT MAKES IT SO O Lambchop seria mais uma banda qualquer não fosse por "Is a Woman", álbum de 2001, alguns meses à disposição do público brasileiro pela Trama. Ao contrário da tendência à poluição sonora e à desarmonia pós-Nirvana, o Lambchop consegue ser melódico e até lírico. A faixa de abertura, "The Daily Growl", por exemplo, tem piano, percussão muito suave, guitarra bastante discreta e principalmente versos como: "Down the street you go / Rumors of a one man show / How silly we can be about the future". Sim, por maiores que sejam as esperanças depositadas no grupo, o Lambchop não consegue escapar de certo niilismo, do típico cantar arrastado, daquela energia mínima necessária. Evoca também um clima bucólico, uma descrição contemplativa, um mundo pós-11 de setembro (?): "Once I had a friend / Who had the knack of tossing / His mind around geography / Boy you think, you have problems". As informações no CD são mínimas (registradas no interior da caixinha, atrás do disco propriamente dito, com uma letra miúda que exige lupa). Fica-se sabendo que foram necessárias 18 pessoas para produzir essa voz rouca que sussurra, esse som agradável que se esvai. Kurt Wagner, esse é o nome por trás de todas as composições. Apesar de os fonemas sugerirem uma confusão com Kurt Weil, o sujeito está mais para Tom Waits. "This may not appeal to you / But I can hardly spell my name". A capa é caleidoscópica: um jovem engravatado tocando violino, no centro, com um fundo marrom (uma paisagem?) em movimento. Por mais elaborado que seja, ainda assim sugere o efeito de um certo programa gráfico de computador. As imagens internas idem, fotos de uma cidade ou da vida campestre, desfocadas, indicando superficialidade e sobretudo pressa. O velho truque das pistas falsas, que não levam a lugar nenhum. Quanto menos se disser e quanto menos específico se for, maior a chance de escapar de rótulos e pescar o máximo de ouvintes possível. Bem, essa é a isca. Antes de morder, convém escutar; mesmo que a compra às cegas não mate o peixe pela boca.
>>> Is a Woman - Lambchop - Trama
 
>>> CENAS DA VIDA CARIOCA Ninguém mais se lembra de Marques Rebelo; muito menos de Edi Dias da Cruz, seu nome verdadeiro. A editora Nova Fronteira, no entanto, vem reparando essa injustiça ao reeditar, pouco a pouco, a obra do jornalista e escritor, que se lançou nos anos 1930 e que cresceu entre o Rio de Janeiro e Barbacena (MG). Para quem quer se aventurar, não poderia haver volume mais propício que o de "Contos Reunidos", nas prateleiras desde setembro. Josué Montello assina o prefácio, comparando Rebelo à tríade insuperável da forma curta, no século XIX: Machado de Assis, Lima Barreto e Manuel Antônio de Almeida. No que está certo, afinal, é imediata a lembrança dos três mestres quando se passeia pelas páginas de "Oscarina" (1931), "Três Caminhos" (1933) e "Stela me abriu a porta" (1942), os livros reunidos em bloco no atual lançamento. Acontece que, se por um lado Rebelo reproduz com perfeição a técnica e a temática de seus antecessores, por outro prende-se por demais a eles e se distancia do leitor deste século (o XXI). Não custa reforçar que, em 1943 (um ano depois de "Stela"), "Vestido de Noiva" explodiria nos palcos do Rio de Janeiro e que, 20 anos mais tarde, Rubem Fonseca iniciaria sua particular revolução com "Os Prisioneiros" (1963). Para o leitor de hoje, alimentado à base de fitas de cinema, a ação parece lenta, a descrição excessivamente minuciosa, o vocabulário bastante exigente. Mas o esforço de concentração e paciência compensa. Sobretudo em "Oscarina" (o clássico conto), "Na rua Dona Emerenciana" (do qual Graciliano recitava trechos inteiros), "Vejo a lua no céu" ("capítulo imperfeito" de um "romance tentado"), "Stela" (a história) e "A derrota", entre outros. Os assuntos principais de Rebelo são a família, as moças (também a mocidade) e a fragilidade da existência. Embora apegado às tradições, seu estilo é moderno (uma aula para os que se iniciam no gênero) e sua ambientação é urbana quase sempre. Há nele, por certo, diversão e lirismo, de modo que as quase 400 páginas parecem menos, muito menos.
>>> Contos Reunidos - Marques Rebelo - 382 págs. - Nova Fronteira
 
>>> LIVRE COMO UM TÁXI Ainda que esteja "up & running" ("alive & kicking"), a internet vive numa eterna crise de identidade, sem ter descoberto qual sua função. O que parece se afirmar como nunca, nos últimos tempos, é a tendência à pichação. (Sim, a mesma que leva as pessoas a rabiscarem seus nomes nos muros.) As analogias estão aí para quem quiser pegar. Desde os fóruns de sites sérios (ou de veículos ditos sérios) invadidos por toda a sorte de "cibervândalos", anônimos ou desocupados por profissão, até os próprios blogs que, em sua maioria, vivem da crítica parasitária, difamatória ou destrutiva por esporte. Isso não significa, de maneira alguma, que eles estejam errados. Em meios onde a democracia se mostra ampla e irrestrita, o caos e a anarquia tendem a imperar - até que chegue alguém e imponha regras (ou então delimite seu território, construa muros [o que, na internet, é pouco provável]). Nélson Rodrigues gostava de repetir que, durante o século XX, deu-se a "ascensão do idiota". Essa figura secundária, de utilidade muito duvidosa, que normalmente não tinha voz, - de repente - ganhou espaço. Nélson, que morreu em 1980, não poderia imaginar que a internet se converteria no palanque preferido dos "idiotas fundamentais". A ponto de gente séria (ou supostamente séria), com nome e reputação a zelar, preferir a comodidade de um "pseudônimo", a máscara e até os modos típicos do idiota, para se manifestar com um mínimo de liberdade, alcançando - às avessas - reconhecimento e mesmo notoriedade. Conclusão: além de conquistar o mundo, pelo argumento da "opressão numérica" (Nélson, outra vez), o "idiota fundamental" se converte em padrão de comportamento, a ponto de "não-idiotas", para serem aceitos, terem necessariamente de imitá-lo. É a máxima de Hunter S. Thompson, o pai do jornalismo gonzo: "Quando as coisas ficam bizarras, os bizarros viram profissionais". Nessa brincadeira, contudo, a internet vai perdendo credibilidade e os verdadeiramente sérios (ou "não-idiotas") vão pulando fora.
>>> Cocadaboa | Mundo Perfeito | Pura Goiaba | Catarro Verde
 
>>> CUÉNTESELO Pedro Almodóvar, quem diria, fazendo drama. O fato é que, excetuando-se o mainstream hollywoodiano (e até mesmo a cena independente norte-americana), Almodóvar é um dos poucos grandes diretores que ainda nos resta. Suas premières são tão ou mais disputadas que as de Steven Spielberg; sua proximidade com o Brasil é cada vez mais explícita, e a crítica, que não é de ferro, se derrete. "Hable con Ella" ("Fale com Ela", na tradução) está nesta 26º Mostra BR de Cinema, mas também entra em circuito comercial a partir de novembro. Primeiro, os defeitos. Almodóvar faz uma porção de concessões a seus amigos. Enfia Pina Bausch logo na primeira cena, que, junto com uma de suas bailarinas, num exercício de autoflagelação, choca-se contra a parede. Os dois principais protagonistas, Benigno e Marco, assistem da platéia. Eles ainda não se conhecem, mas serão amigos para sempre. É a segunda cena. Mais para o meio, Almodóvar injeta um clipe de Caetano Veloso, bem no estilo "Fina Estampa", cantando "Cucurrucucú Paloma". Na platéia, agora estão Marisa Paredes e Cecilia Roth, duas das heroínas do cinema almodovariano. Marco, o herói atual, também participa e até comenta que "esse Caetano" o arrepia inteiro. É tudo. Pensando bem, não é muito. Então, as qualidades. Almodóvar criou um gênero novo: trata-se do drama com gags. Intercala sofrimentos terríveis, como por exemplo o de duas mulheres em coma (por isso, o título "Hable con Ella"), com seqüências hilariantes, como quando se especula acerca da sexualidade do anti-herói Benigno (homem? gay? hermafrodita? assexuado?). A diferença é que, pela primeira vez, Almodóvar, oriundo da comédia, há anos interessado no drama, consegue passar de um lado o outro sem sobressaltos. Se em "Carne Trêmula" (1997) ficou sério demais (e, por isso, não convenceu) e se em "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999) ficou sério de menos (apesar de toda a tragédia), em "Hable con Ella" casou os dois gêneros com perfeição. Atingindo o seu objetivo; atingindo o seu ápice. Deixando de ser tragicômico. (Coisa que Woody Allen, por exemplo, com suas imitações de Bergman, tentou e não conseguiu.) Almodóvar, portanto, converte-se numa espécie de estandarte do orgulho latino-americano. A personagem central (Marco) é argentina, o cantante é brasileiro (ou baiano), a canção é mexicana, o coração é espanhol. Já a vitória é da civilização ibérica como um todo.
>>> Hable con Ella | Jornal da Mostra
 
>>> "CHARGE DA SEMANA" POR DIOGO SALLES

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>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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