Quarta-feira,
4/12/2002
Digestivo nº 110
Julio
Daio Borges
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GRÜβ GOTT
A Wired, que já foi "a bíblia" - depois emagreceu, engordou, emagreceu novamente, engordou de novo, para terminar sendo a sombra do que era -, em sua edição de dezembro, traz algumas matérias sobre Deus. "Deus"? Sim, Deus. [Não sei se o Seu ou se o Meu, mas Deus.] Embora as chamadas de capa sejam mais envolventes que o interior da revista, a Wired lança a tese de que a ciência está se voltando, gradualmente, para a religião. Sim, para a religião. O levantamento é interessante: o universo, na verdade, quanto mais conhecido, mais absurdo e impossível se revela. O big bang, por exemplo, até hoje é um mistério inexplicável. Se a gravidade entre os planetas fosse um pouco mais forte, se a expansão entre as galáxias fosse um pouco mais lenta, provavelmente não teríamos vida na Terra. A formação do elemento carbono (base para a biologia) foi, no fundo, mero acidente. A reportagem afirma que as possibilidades de termos uma configuração como esta desafia a estatística e mesmo o estudo dos números randômicos. Aí entra a mão Dele. Não são poucos os cientistas que suspeitam de alguma inteligência, algum comando, por trás dos processos. Sem alguma interferência, que seja, não seríamos o que somos hoje. Resumindo: tudo o que vemos aí fora é altamente improvável de ter acontecido, mas aconteceu; então foi porque Alguém quis. Claro, são hipóteses. Até porque, como Einstein mesmo disse, o conhecimento humano ainda está em sua infância para querer entender essas questões de transcendência. A Wired também aventa a hipótese de um Deus computacional. Realizando o sonho de dez entre dez computeiros, insere um pouco de metafísica na lógica binária. O "zero" seria o nada, o vácuo, a morte. O "um" seria a vida, as coisas, o ser, enfim, Deus. É um pulo e tanto, claro. Acontece que a idéia não é nova. Asimov já recorreu a ela e os filmes de ficção científica, também. O primeiro acreditava em computadores que evoluiriam a cada geração, terminando por se fundir à raça humana. Já Hollywood, em Jornada nas Estrelas (por exemplo), numa sonda espacial que acumulando dados, desenvolveria inteligência e dominaria o universo. Talvez o homem precise mesmo de um Deus, qualquer que seja. [Não sei se o Seu ou se o Meu, mas um Deus.]
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Wired |
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NOITE DE ESTRELAS
Na maioria dos casos, um marketing avassalador não corresponde a um produto de grande qualidade. Afinal, o que precisa ser tão incansavelmente promovido não deve ser lá grande coisa. Ledo engano, dirão os publicitários. Hoje em dia, ninguém dispensa (e ninguém vive sem) a tal da propaganda. Pode ser. O fato é que o CD "Maricotinha Ao Vivo", de Maria Bethânia, objeto da campanha mais agressiva já bancada pela gravadora Biscoito Fino, em tese, não careceria de todo esse aparato. Ou, justamente, por ser um álbum excepcional, careceria sim - e muito. Depois de hordas de cantoras com um fiapo de voz, repertórios catatônicos, injustamente insufladas por equívocos críticos, é um alívio reencontrar Maria Bethânia. A perfeição não é privilégio de todo grande artista, em todo tempo e lugar. A própria Bethânia já havia feito, recentemente, dois outros registros ao vivo sem o mesmo brilho: "Maria Bethânia Ao Vivo" (1995) e "Imitação da Vida" (1997). Mas "Maricotinha" justifica todos os ensaios que o precederam. Faz-se marco. Para começar, existe uma limpidez na gravação, rara ou então sui generis, que transporta o ouvinte direto para o show. Sendo a intérprete um ser eminentemente de palco, revela-se fundamental essa preocupação. Em segundo lugar, acompanhando a sonoridade transparente, há uma banda afinada e equilibrada, como poucas, em condução de Jaime Alem. Em seguida, um repertório escolhido a dedo, como todos, aliás, deveriam ser (mas não são). Ao lado de clássicos na voz da cantora - ao lado de um Chico Buarque, de um Caetano Veloso, de um Fernando Pessoa -, há espaço para novos nomes, amplificados com justeza, como Lenine ("Nem sol, nem lua, nem eu"), Adriana Calcanhoto ("Cantada") e Cazuza ("Todo o amor que houver nessa vida"). "Maricotinha" inova ainda na estrutura. Deve ter percebido quem viu o show (e não só quem o ouviu, agora). As canções e as citações são encaixadas de tal maneira que os trechos (cantados ou falados) nunca ultrapassam os três minutos. A média é de um ou dois, de modo que o conjunto de quase cinqüenta faixas flui solene e elegante. Não chega a ser um pot-pourri, breve e de mau gosto. Ao contrário: é como se Bethânia preservasse a essência da coisa, atirando fora os excessos. Se 35 anos de "Maricotinha" resultaram nisso, que venham os próximos 35.
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Maricotinha Ao Vivo - Maria Bethânia - Biscoito Fino |
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FELICIDADE, SIM
Leila, Otto, Alex e Melo. Uma militante ecológica, um economista liberal, um ex-marxista e um historiador das idéias. Quatro amigos do tempo da faculdade que resolvem se reunir periodicamente para discutir sobre felicidade. Trata-se do novo livro de Eduardo Giannetti, professor do Ibmec, PhD em Cambridge e também autor de "Vícios privados, benefícios públicos" (1993) e "Auto-engano" (1997), todos pela Companhia das Letras. Desta vez, Giannetti, um economista de formação, aventura-se pela seara da filosofia. Parte do iluminismo para desembarcar na nossa era. Enquanto isso, investiga porque o progresso e a ciência falharam na tentativa de fazer o homem feliz. Claro, o conceito de felicidade variou muito, desde os anos 1700; ademais, medi-lo objetivamente e subjetivamente são coisas completamente diferentes; sem dizer que o modelo de civilização ocidental pode não ser o mais adequado; ainda que nos aproximemos, cada vez mais, da pílula do bem-estar instantâneo. São esses os quatro capítulos, ou encontros, em que as personagens de Eduardo Giannetti se aventuram ao longo do volume. Ao que parece, o autor não quis propor ou defender teses. Preferiu a forma do diálogo à do ensaio, justamente por não ter uma opinião formada a respeito, nem pretender encerrar o assunto. Termina em aporia - ou seja, sem chegar a conclusão alguma. Talvez tenha captado precisamente o espírito da nossa época: mais de perguntas do que de respostas; ou talvez tenha, simplesmente, se perdido no caminho. O livro é erudito e abarca desde os estóicos até os avanços da neurociência, passando pelos enciclopedistas, pelos românticos, por Keynes. Eis o seu maior mérito e também o seu grande defeito. Enriquece o leitor com referências (moeda corrente), mas não diminui a sua confusão mental (ao contrário, aumenta-a). Eduardo Giannetti é, contudo, um dos poucos pensadores brasileiros da atualidade. Que ele não venha das velhas escolas de pensamento e que não se prenda aos grilhões de sempre, já é, em si, um grande acontecimento.
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Felicidade - Eduardo Giannetti - 226 págs. - Companhia das Letras |
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ACAREAÇÃO
A aparência é de um elepê (LP) duplo ou triplo. Bem vermelho mesmo. Como um estojo. Então você puxa a revista lá de dentro. Ela se chama "Ácaro". Foi aquela que o Mathew Shirts citou na coluna dele, mas que, na banca, estava meio difícil de se ver. No suplemento dominical "menas!", encartado internamente, entendemos que Ácaro sugere Ícaro (a revista de bordo). Mas não tem nada a ver. Ácaro é literária. E não me venha com essa de medo (só porque eu falei). Até porque não é literatuuura, literatuuura. Da metade para frente, tem bastante humor (por exemplo). Olha isso aqui: "Meu coração pulseira ao ver o teu colar." Chama-se "Adorno" e é parte de um texto de Ivana Arruda Leite. E que tal isso (um pouco mais pornográfico, admito): "Amo aquela mulher / desde o momento / em que a vi mijando / descontrolada em pé // aquela mulher / era o puro amor". Quem assina é Fabrício Corsaletti. [Desse, você gostou. Não?] Então leia sobre o "auto-resumo", uma ferramenta que o seu computador tinha e você nem sabia: (...) "qualquer PC doméstico já é capaz de condensar imensas obras, ajustando ao tamanho que se desejar". E, agora, o auto-resumo de "Dom Casmurro", de Machado de Assis: "- Que é? / - Que é? - Que é? / é que... Não? - Não! - Não! - Que é? / - Que é? / De que sexo?". Tá bom, chega de gracinhas. Mesmo porque Ácaro é séria até a metade. [Temos que respeitar.] Antonio Carlos Viana, por exemplo, destrincha os contos de Mário de Andrade, sugerindo sua leitura nas escolas. Afirma que respiram. (Nem tanto, nem tanto...) André Viana joga com as palavras e com a atual volúpia pelos presidiários. Compõe "Amor Condicional". Alberto Martins é eleito o melhor poeta. E Dionisio Jacob, o melhor ficcionista, com "Ata de Reunião" - uma narrativa original sobre uma reunião de cúpula numa empresa brasileira. Logo atrás está Reinaldo Moares, com "Life is a many splendored shit" - sobre um fim de semana na praia (provavelmente Long Beach), em que a desquitada, o namorado de meia-idade e o filho pequeno tentam se enlouquecer mutuamente. Ácaro é, portanto, legível. Mais que legível, é comprável. De projeto gráfico agradável (apesar do seu peculiar formato). Compre. Nossas letras precisam de você.
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Ácaro | Auto-resumo |
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AFFIRMATIVE ACTION
Dentro da mostra "Meninas Malcomportadas", no Centro Cultural Banco do Brasil, está um dos filmes mais contundentes de David Mamet. Em 1994, o mesmo diretor de "Mera Coincidência" (1997) e "Deu a louca nos astros" (2000) resolveu dar sua resposta à onda do politicamente correto norte-americano. Foi através de "Oleanna", possivelmente inédito no Brasil, uma das mais bem realizadas críticas ao patrulhamento das esquerdas, à inversão de valores e às minorias oprimidas. A história se desenrola nas dependências de uma universidade nos Estados Unidos. Como não sai do gabinete de um professor e de sua sala de aula, transfere ao espectador a agonia lenta do protagonista. John (William H. Macy) e sua aluna, Carol (Debra Eisenstadt), começam uma disputa por questões de nota e terminam sua contenda na corte suprema. Num país onde a justiça não tarda e não falha. (Aliás, funciona até demais.) É um dos grandes absurdos retratados pela fita. Inconformada por ter sido reprovada, a estudante inicialmente se faz de desentendida, de ressentida, de perseguida desde a infância. Seu professor tenta mostrar-lhe que, quando jovem, também se sentia assim: um eterno incompreendido. Chega ao limite de provar que o sistema educacional, tradicional, não passa de um equívoco. Propõe, enfim, uma nova forma de avaliação, baseada em sessões privativas. O cinéfilo de primeira viagem não pesca, mas é justamente a "deixa" de que moça precisa. A partir dessa proposta (não se sabe se indecente) e da retórica exaltada de seu mestre, a aluna arruína-lhe a carreira - e a vida. Queixa-se ao conselho de professores que o suspende de imediato. Suspendido, perde a promoção e a casa que iria comprar. (Provavelmente, naufraga também seu casamento.) Junto a outros colegas, a estudante cria um movimento contra o "abuso de poder". O professor acaba expulso da universidade. Para completar, move-lhe uma ação por estupro - já que, numa das sessões, encostara em seu corpo. É um primor - e a platéia saí com dor de barriga. Não há, em sétima arte, uma representação mais fiel da atual histeria academicista. Mamet prova, mais uma vez, que, ao falar de seu país, não tem papas na língua.
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Mostra Meninas Malcomportadas | Oleanna |
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>>> "CHARGE DA SEMANA" POR
DIOGO SALLES
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Julio Daio Borges
Editor |
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