Quarta-feira,
22/1/2003
Digestivo nº 117
Julio
Daio Borges
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QUE TUDO SE REALIZE...
Janeiro é geralmente o mês que a imprensa brasileira empurra com a barriga. Começa antes, com a enrolação das retrospectivas do ano anterior e das perspectivas para o próximo, ainda em dezembro. O calendário gira, o ano muda, mas as capas e as manchetes continuam geladíssimas. Explora-se então um único fato novo (já que poucos há à disposição), até a exaustão. No caso de 2003, foi a esperança gerada pelo novo governo - que, para muitos, ainda não começou (embalados que estão por expectativas e confortáveis abstrações). Pululam também as edições de verão (janeiro, fevereiro, às vezes, março), principalmente no que se refere às revistas mensais - pois o saldo de leitores, nessa época (dizem), é baixo. Todo mundo foi viajar. Vira desculpa e, folheando os jornais (com a maioria de seus colunistas em férias), as notícias resolvem também minguar (parece que em combinação com o clima). Assim, as bancas de jornal se rendem ao marasmo e a sensação é de que o tempo parou; ou de que se está acordado enquanto todos dormem. Contudo, algumas publicações decidem trabalhar - se não de todo, pelo menos, em parte. Um exemplo vem da Caros Amigos, cujos colaboradores se dividem entre aqueles que combatiam FHC (e ficaram sem assunto) e aqueles que, ignorando o primeiro mês de governo, ainda soltam vivas a Lula. A entrevista, no entanto, uma das poucas coisas que - às vezes (nem sempre) - justifica comprar a revista, transgrediu a morosidade da temporada e chamou três combatentes do crime organizado. São membros do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime) e prometem revelações aterradoras. Acabam, para decepção geral, proferindo generalidades - tão processados, tão perseguidos e tão desmoralizados que já estão. O que há de novo? Bem, não tão novo, mas vá lá: caracterizam o crime organizado como aquele que envolve o Estado. Ou seja: para que se tenha idéia da podridão, assalto a banco e formação de quadrilha não são considerados crimes organizados; e Fernandinho Beira-Mar é café pequeno perto dos tubarões que esses três senhores perseguem mas - já sabem - nunca vão pegar. Que mais? Falam do poder paralelo. O das drogas, cujo faturamento é equivalente ao PIB do Canadá (a oitava economia do mundo) e que, logo, poderá sentar à mesa com os G-7. Também o dos presídios, administrados, muitas vezes, desde as celas. Um policial que maltrata um detento figurão, ao sair na rua pode ser metralhado, de leve, para ver se se comporta na próxima. Citam ainda o superfaturamento da obra da avenida Águas Espraiadas (a mais cara do planeta, triplicando o orçamento de US$ 250 milhões) e a indústria do roubo de automóveis e cargas (freqüentemente em conluio com os proprietários, para receber o dinheiro do desmonte e do seguro). Pensando bem: que prato indigesto para o início de 2003. Lá se foram todos os anseios por um Brasil e por um mundo melhor... Quem sabe em 2004.
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Caros Amigos |
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EU TÔ CHEGANDO
Logo que o lounge veio à tona, uma interpretação de "Só Tinha de Ser com Você" chamou a atenção. Quem era aquela cantora? Uma voz perdida na onda de um novo ritmo? Ouviríamos mais dela ou acabaria, como muita coisa, passando? Mais tarde, o nome de Fernanda Porto foi ganhando mais projeção, até culminar com o disco homônimo, lançado em 2002, pela Trama. Mas as surpresas não pararam por aí: além de ter tido fôlego para 14 faixas, assinou 13 delas, sozinha ou em parceria (letra ou música). De repente, aquela moça que ameaçava sumir despontou como compositora, deixando sua porção intérprete meio de lado. É muito cedo para inquirir sobre o que Fernanda Porto realmente pretende (tornar-se uma artista no cenário da MPB?). Embora tenha se lançado graças ao boom eletrônico, joga suas iscas no mar da bossa nova, toca violão e piano (formou-se no instrumento e fez faculdade de música). Mas seu público, pelo menos o atual, vai se fixar provavelmente no lado drum'n'bass, ainda que Fernanda Porto queira eletronificar (e não eletrificar) até mesmo o samba. É igualmente cedo para traçar uma genealogia, mas - se possível fosse - arriscar-se-ia algo entre Zizi Possi (a grave) e Daniela Mercury (a aguda). (Leviano? Quem sabe.) Quanto às mensagens cifradas (ela se importa em traduzi-las), há muita pressa nas suas declarações: "Fugir com você, eu quero" (De Costas Pro Mundo); "Você acelerou minha calma" (Tudo de Bom); "Nem sequer podia pensar" (O Amor Não Cala). E, lógico, há o ritmo frenético das paixões guardadas durante anos (uma marca registrada do nosso tempo?): "Você foi tomando um jeito novo" (Jeito Novo); "Frases tuas de insuportável beleza" (Vilarejo Íntimo); "Eu sonhei que o tempo bastaria" (Amor Errado). Para completar, uma versão moderna do Eclesiastes: "Tudo neste mundo tem o seu tempo/ Cada coisa tem a sua ocasião". Fecha o ciclo "1999", versificada em latim, trilha sonora do filme de Toni Venturi. Ainda que o trabalho de Fernanda Porto não seja forte o suficiente para produzir julgamentos categóricos, ao mesmo tempo não compromete. Como todo disco de estréia, aponta caminhos que caberá, ao artífice, seguir ou não.
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Fernanda Porto - Trama |
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A EDUCAÇÃO PELA PEDRA
Por uma dessas fatalidades inexplicáveis, somos obrigados a ler João Cabral de Melo Neto ainda na adolescência. Como se não bastasse, "Morte e vida severina". Só depois de muitos anos o trauma pode ser enfim superado. Acontece que o autor é quase a antipoesia, o caráter estoicamente avesso à música, a contenção historicamente rara em nossa língua - ou seja: como querer que ele se faça compreender por leitores na mais tenra idade, embalados que estão pelos seus hormônios? Ciente desses desacertos todos, a Nova Fronteira lança a série "Novas Seletas" e dedica um volume inteiro a João Cabral de Melo Neto. Com muita inteligência, o organizador, Luiz Raul Machado, pinça os poemas cuidadosamente, justificando sua importância, montando um pequeno léxico, num crescendo de sofisticação e complexidade - para, aí sim, terminar com "Morte e vida severina", na íntegra e sem cortes. São pouco mais de 100 páginas, atendendo à escassez de tempo e às múltiplas solicitações audiovisuais da nova geração. Lá estão os galos, em "Tecendo a manhã", os meandros da escrita, em "Catar feijão", o primor de observação, em "O ovo de galinha", a opção pela matéria, em "O engenheiro", e a vivência na Espanha, em "Sevilha e o progresso". Sempre apontado como um dos maiores poetas do século XX, João Cabral de Melo Netto é menos lembrado que Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade - graças à sua posição antilírica, ao seu repúdio a toda forma de inspiração e à sua persistência, heróica, em nunca se colocar como centro das atenções. Seu estilo, absolutamente livre do supérfluo e do alegórico, deveria servir de modelo para os nossos escrevinhadores: o advérbio é quase proibido; o adjetivo, trocado pelo substantivo; o artigo, sempre que possível, regiamente eliminado. O resultado dessa operação é uma poesia incisiva, objetiva, direta. Não há rodeios, não existem prelúdios ou perorações, a conclusão é inerente a cada verso - como se o texto pudesse ser interrompido, e a tensão suspensa, a qualquer momento. Numa época em que todos temos de ser minimamente lisonjeiros, para com o consumidor, João Cabral de Melo Neto não deve despertar as simpatias mais exaltadas - mas continuará transcendendo os séculos.
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Novas Seletas - João Cabral de Melo Neto - 120 págs. - Nova Fronteira | O ovo de galinha |
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FEELING LUCKY TODAY?
A década de 70 foi do hardware. E da IBM. A década de 80 foi também do hardware. E da Apple. Já a década de 90 foi do software. E da Microsoft. Há algum tempo atrás, todo mundo apostava que os anos 2000 seriam da internet. Mas desde a virada do milênio que não se sabe mais nada, e ninguém quer arriscar. Talvez, em termos de negócios, a Web (e supostamente uma empresa dentro dela) nunca atinja mesmo o gigantismo de uma International Business Machines ou de um Bill Gates. Acontece que, apesar de todos os prognósticos (negativos), a internet vem se tornando onipresente na vida das pessoas. Espera-se que, com o tombo das telecons, finalmente se perceba que o problema não era com a "nova economia", muito menos com a World Wide Web, mas sim se relacionava àquele momento no tempo: ruim para nove entre dez empreendimentos pioneiros. Ainda que o dinheiro não lubrifique as engessadas relações no universo virtual, e não erga o novo monstro empresarial de tentáculos intercontinentais, há fenômenos muito interessantes em curso. Por exemplo, o Google. O mecanismo de busca que arrola para si, modestamente, a autoridade de ditar o Zeitgeist (o "espírito do tempo"). O Google que, no início, era apenas uma ferramenta alternativa ao Yahoo! e ao Altavista, para encontrar uma determinada coisa na internet, e que, de repente, se converteu no oráculo dos internautas ao redor do globo. Abrigando mais de 3 bilhões de endereços e atendendo a mais de 55 bilhões de requisições anuais, o Google é praticamente a porta de entrada da maioria dos que se conectam à WWW. O resultado das enquetes mais freqüentes em 2002 comprova: nos Estados Unidos, a CNN; no Reino Unido, a BBC; e na França, a FNAC. Ou seja, antes de digitar "cnn.com" (o óbvio ululante), os americanos digitam "google.com", e só então procuram pela Cable News Network. Os franceses e os habitantes da Grã-Bretanha fazem igual, com suas respectivas instituições seculares, cujos endereços na Grande Rede deveriam saber de cor. Isso dá uma idéia da força do Google. Não contentes, os fundadores inauguraram o Google News, que rastreia 4 mil sites no planeta, hierarquizando as notícias por ordem de importância e relevância. O que aconteceria se eles se tornassem a referência também nesse setor? A página de busca com design singelo e parco, que já assumiu as funções de dicionário e de gênio da lâmpada, ameaça seriamente tomar o lugar dos deuses de hoje.
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Google | Google Zeitgeist | Google News |
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E LA NAVE VA
Não é assistindo aos filmes de hoje que vamos considerar o cinema mais que uma mera diversão. A partir da atual cinematografia, é quase impossível admitir que, antes, tantas vocações fossem empenhadas na simples ambição de se tornar cineasta. Não levamos o cinema mais tão a sério, esse é o fato. E terminamos sem entender como tantas cabeças jovens, e cheias de idéias, atiravam-se nesse precipício de insatisfação, incompreensão e derrotas. Até que entramos numa sessão de Fellini - aí tudo se justifica. Dizem que toda grande obra encerra um painel completo da existência humana. É o que ocorre em "A Estrada" ("La Strada", 1954), do diretor italiano. O longa conta a saga de Gelsomina (encarnada por Giulietta Masina, mulher de Fellini), que é vendida pela mãe a um artista de circo, Zampanò (Anthony Quinn), e deve acompanhá-lo em suas viagens pela Itália. À medida que o país, as cidades, se revelam a Gelsomina, são-lhe também abertas as portas da idade adulta. É a tal perda da inocência - mas, ao mesmo tempo, a conservação da mesma, que sobrevive para além da própria protagonista, sempre evocada pela trilha sonora de Nino Rota. Gelsomina, uma moça tímida, quase muda, aprende o ofício de artista de circo, ao mesmo tempo em que se adapta à convivência com um homem infiel e bruto. Lança-se à ilusão do casamento, decepciona-se; tenta fugir, mas volta. Muito sutilmente, apaixona-se. Assiste às disputas entre o seu marido e o rival, que têm um desfecho trágico, do qual Gelsomina não se recupera jamais. Nem Zampanò. Parece impossível pensar que o cinema possa ser tão vasto e profundo. Mas é. Fellini é um criador - lá vem o chavão - do tipo que já não existe mais. Ele, sim, pode ter convencido multidões, pelo mundo, a seguí-lo e a seguir seu ofício de realizador. O século XX foi do cinema, não resta dúvida. Já o século XXI... (do que será?). Enquanto não descobrimos, uma cópia nova de "A Estrada" nos aguarda.
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La Strada |
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Julio Daio Borges
Editor |
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