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Quarta-feira, 12/2/2003
Digestivo nº 120

Julio Daio Borges

>>> NINGUÉM ME CHAMA DE BAUDELAIRE O mercado editorial não sabe mais o que fazer para que as pessoas leiam. Livro só se for de pouco mais de 100 páginas. Ou então para comprar e guardar — não para ler. Crônicas? Com Luis Fernando Verissimo, tiveram o seu auge. Agora, é necessário que um novo paradigma seja inventado. Então pululam essas coletâneas ensaísticas centradas num tema único. 10 ou 15 páginas de cada autor, você só lê aquilo que te interessar. Parece bom. Nessa linha (ou talvez não), saiu "Jornalismo e literatura: a sedução da palavra", pela editora Escrituras, em que Gustavo de Castro e Alex Galeno, junto com mais 16 outros autores, discutem as relações entre um e outro. A idéia, para os iniciados, soa instigante — mas a empreitada falha sob alguns aspectos. Primeiro deles: a maioria dos ensaístas de "Jornalismo e literatura" perde seu tempo comparando os dois. As vantagens e desvantagens. As críticas de Balzac, Calvino e Borges à imprensa. As contradições de Hemingway. Os excessos do "new journalism". Não parece ser o caminho correto. Assumindo que um novo gênero (jornalismo-literário ou literatura-jornalística) existe, melhor partir dele — em vez de se apegar a visões estanques. É o que faz, por exemplo, Marcelo Coelho. Ele tenta provar que a crônica é a "antinotícia" e que, por isso, é tão necessária à sobrevivência do veículo jornal. Mas Marcelo Coelho comete o segundo erro, relativamente comum em "Jornalismo e literatura": subestimar as transformações ocorridas no jornalismo brasileiro dos últimos anos. Com a politização pós-1968, as redações se atribuíram poderes de polícia e os jornalistas partiram para a reivindicação. Ocupados com tanta "realidade", as literatices ficaram de lado (por "alienadas") — e a aridez (da objetividade do fato) se instalou fatal. Não se formam mais cronistas — nem pretensões literárias são alimentadas. Malgrado a tradição. Terceiro erro freqüente em "Jornalismo e literatura": praticamente ignorar o fenômeno internet; ou até considerá-lo, mas limitando seu alcance ao noticiário de hora em hora. Com a morte das personalidades (ou mesmo do "dandismo"), a hiperespecialização e o peso dos cadernos de economia e política — o ciberespaço vem dando vazão a essa geração "em busca do lirismo perdido". (Até quando?) Segue o jornalismo. Segue a literatura. Mas não de acordo com o palpite dos analistas de "Jornalismo e literatura", um tanto quanto desconectados da realidade atual.
>>> Jornalismo e literatura: a sedução da palavra — Gustavo de Castro e Alex Galeno (org.) — Escrituras
 
>>> SEIS ANOS ESTA NOITE Ela conta que Ele, quando acordava de mau humor, punha-se a cantarolar marchinhas de Carnaval. Quanto mais baixo o astral, mas alta a voz e mais elaborada a encenação. Quando a depressão batia forte, o jeito era escrachar com referências de baixo calão e até jingles publicitários. Em geral, até a primeira metade do século XX. E sempre a plenos pulmões. Assim, num dia de maior animação, Ela podia surpreender-se com Ele cercando-a pelos corredores à base de "You're just too good to be true/ Can't take my eyes off of you". Ela ficou seis anos sem contar essas histórias. Rompeu o silêncio agora, por causa da saudade. E por causa de um site em sua homenagem. Em 1997, Ele se foi. Há ainda casos dos amigos lá. Um deles conta que quando Ele ia gravar suas participações na televisão recusava-se a usar teleprompter. Também não ia adiantar: Ele era míope e, diante das câmeras, fazia questão de não usar óculos - só cenográficos. Subia numa espécie de palco e tinha sua fala decorada. Como em teatro. (Em sua juventude, Ele foi ator.) Então começava aquela barulhada da redação - e Ele se desconcentrava. Possuído, descontava sua raiva no criticado daquele dia ou daquela semana. Ele era crítico e fazia inserções nos noticiários para a tevê. Depois de algumas tentativas, encerrava impecável sua participação. Pegava, então, seus livros - e saía, mundo afora, emendando trechos de ópera. "Quem canta seus males espanta", costumava comentar. Apesar de destinar impropérios aos insolentes que ousavam incomodá-lo, Ele era generoso - e maternal. O último adjetivo fica por conta de um outro amigo. O mesmo que, uma vez em Nova York, foi abrigado por Ele em seu escritório. (Há o testemunho de gente que recebeu até dinheiro dele, quando estava precisando. Ele pedia sigilo absoluto. E ninguém nunca soube. Até agora.) No tal site, ainda há fotos dele em suas viagens. Em algumas, Ela também está. Em outras, mais amigos. Em outro setor do site, Ele aprece bebê e, depois, jovem. Já carrancudo. Com o cabelo preto e aquele olhar desafiador. Ela anuncia que outros amigos vão escrever sobre Ele lá - e que, inclusive, jovens vão falar da influência que Ele exerceu. Ela sempre fica triste nesta época do ano. Com o frio e a proximidade do dia 4. Em 2003, porém, Ela resolveu falar.
>>> PauloFrancis.com
 
>>> OS BONS COMPANHEIROS Martin Scorsese é hoje um diretor cooptado pelo sistema. Ainda mais com o anunciado "Gangues de Nova York". A começar pelo elenco (mais famoso do que talentoso), encabeçado por Leonardo Di Caprio e Cameron Diaz. A tibieza da interpretação de ambos é reforçada pelos "coadjuvantes" Daniel Day Lewis e Liam Neeson. São esses e não aqueles que fazem o filme. Mas o cartaz é dos primeiros e os comentários também devem ser. Mais adiante, no que se refere ao argumento, é de se suspeitar que Scorsese tenha escolhido justamente esse tema (Nova York) depois do 11 de setembro. Tudo iria bem - poderíamos aceitar suas mentiras e negativas - não fossem os minutos finais de "Gangues". Embalados pelo refrão lacrimoso do U2 ("These are the hands/ That built America"), deixamos Di Caprio e Diaz lá no século XIX e acompanhamos a evolução do Manhattan Skyline até o século XXI - até as Torres Gêmeas. Sim, elas reaparecem. Num misto de patriotada e pieguice, mas reaparecem. De repente, todo entretenimento converge para essa mensagem subliminar. E o resto fica menor. O resto? Que "resto"? A história das gangues rivais, numa Nova York bárbara, acossada pela imigração irlandesa e ameaçada pela Guerra Civil. O clima é o da terceira classe do "Titanic" (1997), e por isso Leonardo Di Caprio está tão à vontade. Cameron Diaz, também. Ele é o órfão, filho do líder da gangue derrotada ("The Dead Rabbits"), que, crescido, vem vingar a morte do pai (Liam Neeson). Ela é uma beldade abandonada pela sorte, cometendo pequenos furtos para sobreviver. Ambos, cada um à sua maneira, se associam ao chefe da gangue dominante: obviamente, Daniel Day Lewis. Depois disso, não há muitas novidades. A ascensão e queda do garoto prodígio, até a derrubada da "ordem estabelecida". E Scorsese nisso tudo? Dá para sentir que ele se aperfeiçoou nas cenas de carnificina (já há alguns anos, suas preferidas). Basta dizer que o personagem de Lewis é apelidado de "The Butcher" ("O Açougueiro"). A lei é a do Velho Oeste ("Eu sou a lei aqui"), então é de se imaginar o que os "caubóis da máfia" reservam ao espectador. "Gangues de Nova York" começa e acaba com uma luta de todos contra todos - a ponto de, no fim do fim, ser impossível contabilizar sobreviventes, quanto mais vencedores. Nova York, afinal, ficou entregue aos arrivistas irlandeses? Ou impuseram-se os nativistas? Ninguém parece saber. Diante de um desfecho de violência apoteótica, e caótica, Scorsese preferiu concluir com um resplandecente World Trade Center, mais de cem anos depois. Uma imagem para desviar a atenção e calar a fome de sentido. Pena que tenha calado também suas ambições - e produzido apenas mais um filme grandiloqüente.
>>> Gangs of New York
 
>>> AVISO AOS NAVEGANTES

* este é o primeiro Digestivo que implementa as mudanças anunciadas no último Editorial ("Digestivo Essencial", de 3/2/2003)
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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