Quarta-feira,
26/3/2003
Digestivo nº 126
Julio
Daio Borges
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AMOR FATI
Há quase uma semana que tudo é a guerra. Desde o motorista de ônibus até o locutor de rádio FM, passando pela atendente de balcão de lanchonete, todos têm uma opinião sobre a guerra. Um juízo formado dias antes, horas antes do conflito. Ou nem isso. Como se assiste a muita televisão e se lê pouco jornal, as imagens impressionam e produzem uma miríade de conclusões, mas as pessoas não conseguem raciocinar a partir dos fatos (se é que há "fatos"). Muita gente, por exemplo, não relacionou a ausência dos premiados por "melhor filme estrangeiro", no Oscar, à nacionalidade alemã dos mesmos (e ao fato da Alemanha estar contra a guerra). Assim, a maior parte das opiniões apaixonadas deve ser logo descartada, pois, como disse alguém, é de "gente inocente". Tirando o furor inicial, de bombardeios e muito protesto, a guerra promete entrar numa nova fase. Os e-mails denuncistas já estão diminuindo e os combates por terra ameaçam se estender por semanas (como, aliás, o próprio Bush - o maior interessado em que o conflito se encerre - já admitiu). Descontando os habituais lugares-comuns, podemos ainda encontrar alguma sensatez. Como a do sujeito que afirmou textualmente: um dos principais erros desta guerra é achar que ela será "diferente" das outras. Os ataques cirúrgicos, apesar de todo o show pirotécnico, não intimidaram Saddam Hussein - e a coisa se prolongará, inevitavelmente, até o combate homem-a-homem em Bagdá. A "guerra de propaganda", embora exista e influencie a opinião pública, não substitui a guerra tradicional. Os senhores da guerra contra o Iraque querem a rendição do "homem", ou, ao menos, a deposição de seu regime, não importando em quanto esteja o "placar" de vivos ou mortos. É um equívoco, igualmente, pensar que houve um "salto" civilizatório, de um milênio a outro, e de que vamos dispensar o "sangue, suor e lágrimas" de Winston Churchill. Guerra é guerra, e a reedição de alguns dos barbarismos do século XX parece também inevitável. Certos estavam os gregos, que jogavam sobre os deuses a culpa pelos caprichos de seu destino. Dois mil anos se passaram, mas não avançamos nem sequer um passo no entendimento da tragédia.
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Choque e pavor não funcionam com Saddam |
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EM CIMA DO PIANO
Há, no conto brasileiro das últimas décadas, uma certa tendência ao atomismo, que se estabeleceu e se notabilizou graças às investidas de Dalton Trevisan, um mestre no gênero. Também por conta de Rubem Fonseca, que, nos últimos livros, vem partindo para uma simplificação radical da linguagem: abolindo as marcações de diálogo; baseando seu estilo no coloquialismo; e depurando antigos temas cujas trilhas já havia percorrido. Não só por isso, mas talvez por isso, a literatura se fez palatável ao jornalismo, que vem tentando dizer cada vez mais com cada vez menos (uma tendência altamente destrutiva, aliás, como provam os principais cadernos de cultura do País, notadamente o do "Jornal da Tarde"). Enfim, para o bem ou para o mal, a aproximação ocorreu e um dos resultados mais palpáveis são os "contos mínimos" da jornalista e escritora Heloisa Seixas. Ela acaba de lançar, pela Cosac & Naify, "Sete vidas", em que reúne sete narrativas curtas (ou melhor: curtíssimas) sobre felinos. Gatos, para ser mais exato. O volume é compacto, como não poderia deixar de ser, e ricamente ilustrado pelo artista Iran do Espírito Santo. Enquanto Heloisa persegue os gatos em seu entorno, conferindo-lhes três ou quatro dimensões, Iran os representa no plano, em duas dimensões apenas, com formas bastante geométricas, jogando o preto no branco ou vice-versa. Embora seja uma literata (ou, ao menos, centre suas ambições nesse universo), a autora ainda faz um recorte assaz jornalístico de seus bichanos (ou, ao menos, fica na fronteira entre as duas coisas). Seja quando descreve um banho de lambidas; seja quando noticia a aparição de um gato falecido há anos; ou seja quando relaciona, à maneira dos cronistas, um felino seu com outro de uma revista. É sempre a jornalista que emerge da escritora. O que não chega a ser problemático, em absoluto - mas que também não confere a "Sete vidas" o status de literatura pura [isso se, para além da repetição, alguém ainda se importa]. O resultado, acima de tudo, é um livro agradável e distraído, para se ler num piscar de olhos. E, se os escrúpulos permitirem, devorá-lo ainda na livraria - embora a simpatia, o porte e uma certa fleuma nos obriguem a levá-lo para casa. Como um gato.
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Sete vidas - sete contos mínimos de gatos - Heloisa Seixas - 64 págs. - Cosac & Naify |
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LANTERNINHA
"O Pianista", de Roman Polanski, veio a calhar neste tempo de guerra (embora, como todo o resto, não tenha conseguido evitá-la). O apelo inicial é um pouco repetitivo em Hollywood: mais uma vez a perseguição aos judeus, durante a Segunda Guerra, com direito a campos de concentração, etc. Mas isso é só o começo (ou nem isso), porque felizmente as fórmulas não foram repetidas. Talvez, mais que um longa sobre o gueto de Varsóvia, "O Pianista" seja uma grande homenagem à música, e ao poder que dela emana. Afinal, é por causa de sua habilidade ao piano que Wladyslaw Szpilman consegue, mais de uma vez, salvar-se da morte e do genocídio. Sem dizer que, além do lado humano (recorrente na maioria das críticas), algumas das mais belas cenas do filme se referem a execuções diversas de peças de Chopin: seja na rádio de Varsóvia, durante a invasão alemã; seja no apartamento em que o protagonista se refugia (e onde não pode emitir um único som); seja no hospital, que se transforma na sua última morada antes do fim da guerra. Claro que o artista fica apagado dentro do ser humano faminto, perseguido e separado de seus semelhantes. Diante da brutalidade, da humilhação e dos sacrifícios humanos, a música fica menor, mostra-se mesmo impotente e, na versão de Polanski, quase some. Nada impede, contudo, que ela retorne triunfal e que "O Pianista" se encerre com um glorioso concerto de Chopin. A expectativa era de que a fita se convertesse numa nova "Lista de Schindler". Porque não aconteceu?, fica a pergunta. Primeiro, provavelmente, porque o diretor não é nenhum Steven Spielberg (não no sentido cinematográfico, claro). Sem uma máquina de propaganda [não diria nazista, mas quase], hoje qualquer obra-prima passa despercebida e logo desponta para o anonimato. Segundo, porque as platéias parecem ainda menos habituadas à grande arte do que há 10 anos (quando "Schindler's List" emplacou). A audiência tem se mostrado refratária à "longa duração" e uma sessão que não seja minimamente barulhenta, para ela, não tem a menor graça. Terceiro, porque "O Pianista" deu azar: se enroscou na largada com outros lançamentos de alto impacto e, em meio ao bafafá pré-Oscar, mereceu menos comentários que os demais. A esperança é de que se mostre vitorioso a longo prazo, despertando platéias entorpecidas por outras atrações. "O Pianista" é, portanto, obrigatório - ao menos para quem considera o cinema mais que uma simples diversão.
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The Pianist |
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>>> MAU HUMOR
"A civilização começou no Oriente Médio e pelo jeito também é lá que vai acabar." (Sérgio Augusto)
* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
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Julio Daio Borges
Editor |
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