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Terça-feira, 24/6/2003
Digestivo nº 137

Julio Daio Borges

>>> FASCÍNIO E REJEIÇÃO Um pouco tarde, mas ainda assim em boa hora, a “Bravo!” decidiu soltar uma edição especial dedicada ao “Império”. Por trás de um trabalho gráfico espetacular (o que desde o seu lançamento tem sido a sua marca registrada), a “Bravo!” pôs pelo menos metade de seus colaboradores para refletir sobre o papel dos Estados Unidos no mundo de hoje. O resultado, ainda que interessante, é desigual. Talvez porque a “Bravo!” siga o único modelo possível de publicação hoje em dia: o modelo da colaboração. Cada colaborador trabalha a “pauta” à sua maneira. Como falta uma direção mais forte para “amarrar as pontas”, o resultado termina desequilibrado, embora bem intencionado na origem. Assim, encontramos ensaios excelentes de Sérgio Augusto e do escritor Milton Hatoum, enquanto que há outros que “batem na trave”, como os de Reinaldo Azevedo e Sérgio Augusto de Andrade. Há ainda as provocações frouxas arrancadas de um Spike Lee por Ana Maria Bahiana e o “morde-e-assopra” aplicado por Almir de Freitas (o diretor de redação) no cineasta Michael Moore. Para completar, há os “trabalhos” dos artistas plásticos convidados: Rubens Gerchman, Alex Flemming, Paulo Climachauska e Nelson Leirner – que, entre brincadeiras com as cores da bandeira (americana), colagens sobre “tapetes voadores”, sugestões com o sinal de menos e interpretações do mapa-múndi, só conseguem soar terrivelmente ingênuos (dada a dimensão do tema). Fora do “assunto de capa”, estão os artigos salvadores de Hugo Estenssoro, sobre uma exposição de Marc Chagall em Paris e sobre o centenário de George Orwell (que, apesar de autor de “1984”, não entrou no pacote “Império”). Estenssoro, um militante das revistas da editora D’Avila, revela-se um crítico como quase não há nos jornais: culto, perspicaz e de texto agradável. Resumindo: nem tudo são flores na proposta colocada pela “Bravo!”, mesmo que haja na revista bons momentos. As publicações culturais brasileiras parece que ainda não “acharam o tom”.
>>> Bravo!
 
>>> LIVROS QUE PINGAM SEMPRE Há basicamente dois tipos de editor no Brasil. Ou é o “vendedor de livros”, que trabalha com grandes volumes. Ou é o profissional criterioso, com ambições intelectuais, que trabalha com tiragens específicas. O primeiro fica rico logo, e o segundo tem uma presença mais marcante na cultura do País. Waldir Martins Fontes, que começou como “livreiro” e que terminou como influência (na linha de didáticos, vide suas coleções de filosofia, artes e direito), não se restringiu a nenhum dos dois tipos. Quem atesta o fato são os grandes nomes do mercado editorial brasileiro hoje: Luiz Schwarcz (Companhia das Letras) e Paulo Rocco, entre outros, no documentário de Alexandre e Evandro Martins Fontes, os filhos do artífice. “Martins” vem de “Martinez” e “Fontes” vem de “Fuentes”, os sobrenomes dos avós espanhóis de Waldir, que nasceu em Santos, a 17 de abril de 1934. Ainda jovem, abandonou um emprego na Petrobrás e foi vender livros de porta em porta. Hábil, tornou-se um dos grandes da Editora Globo (à época, ainda maior do que é hoje). Junto a um irmão e a um sócio, montou uma livraria em sua cidade natal; logo em seguida, uma distribuidora; e, ao embrenhar-se no ramo de importados (ainda incipiente naquele então), fez-se líder do segmento no Brasil. Transferiu-se para São Paulo, montou a editora propriamente dita, fundou as lojas na Rua Doutor Vila Nova e na Avenida Paulista e, mesmo tendo falecido em 2000, eternizou a marca Martins Fontes. O documentário “Waldir Martins Fontes – O Editor e o Homem”, como o próprio título anuncia, além de destacar o “editor”, abre espaço para a figura humana, misturando depoimentos de amigos e familiares. (Até pelo fato do protagonista misturar, em sua vida privada, esses dois universos.) Não é, portanto, o olhar isento do biógrafo que prevalece. De qualquer jeito, a iniciativa tem o mérito de iluminar as realizações desses homens que praticamente inventaram o livro e a leitura no Brasil.
>>> Martins Fontes
 
>>> GIFTS AND SORROWS Embora tenha sido sua grande realização até o momento, Ed Motta não se sentiu compreendido com “Dwitza”, CD majoritariamente instrumental que lançou em 2002. É o que transparece na divulgação de seu atual trabalho, “Poptical”, o primeiro pela gravadora Trama. O músico, que surgiu como o sobrinho prodígio de Tim Maia (em 1988), vem se dividindo, desde então, entre a sonoridade dos anos 70 e uma linha mais sofisticada, que mistura jazz, trilhas para cinema e até aproximações com o “erudito” (no flerte com sinfônicas e similares). O fato é que, independentemente de pressões comerciais, Ed Motta não se decidiu por um ou por outro caminho e, já há algum tempo, tenta conciliá-los. Na época da gravadora Universal, segundo palavras suas, era obrigado por contrato a ser mais “acessível” em dois álbuns (vide os “Manuais Práticos Para Festas, Bailes e Afins”, volumes I e II, de 1997 e 2000), para depois gravar um terceiro à sua maneira, no caso “Dwitza”. Agora, na Trama, uma “independente”, não parece submetido a esse tipo de arranjo – então partiu para uma iniciativa mais ambiciosa: fundir o seu “background” setentista (supostamente mais “palatável”) com sua experiência musical mais elaborada, num único disco, no caso “Poptical”. A intenção não é imediatamente manifesta, mas foi confirmada por uma frase do próprio artista: “‘Poptical’ é o ‘Dwitza’ com letras”. Talvez por isso mesmo (por ser um trabalho de transição entre o “velho” e o “novo” Ed Motta), o álbum soe meio indeciso entre as faixas que são inevitáveis “hits” (“Tem espaço na van”, “Que bom voltar”) e aquelas além da compreensão do grande público (“Rainbow’s end”, “Fox do detetive”). E, como bem coloca o autor do release, fica ao final a pergunta: – O que virá depois? Talvez fosse mais sábio esperar – optando por uma trajetória que, embora já se anuncie, só futuramente vai se consolidar. A não ser que o próprio Ed se sinta “confortável” e tolere a “incompreensão” da audiência entre uma guinada e outra.
>>> Poptical - Ed Motta - Trama
 
>>> CLAREIRAS SUSSURANTES “O ente querido” (“The Loved One”, 1948), de Evelyn Waugh, é a prova cabal de como um livro pode ser divertido. Trata-se da hilariante história de amor entre um funcionário de crematório (para animais de estimação) e uma maquiladora de cadáveres (humanos). Em plena Hollywood do pós-guerra. As ocupações são ridículas e as personagens também são. Mas se fosse no Brasil, o romance seria de mau gosto – o que, pelas mãos de Waugh, está longe de acontecer. As piadas não são gratuitas, não existe a menor possibilidade de se emitir uma grosseria. É sofisticação do começo ao fim. Monstrando, mais uma vez, que o “como” é muito mais importante do que o “o quê”. Evelyn Waugh foi considerado o maior satirista de seu tempo (o século XX) e consegue fazer, inclusive, o leitor brasileiro rolar de rir – por mais mal acostumado que este esteja às execráveis atrações televisivas. Aliás, “O ente querido” pode ser tranquilamente devorado numa noite ou duas; é o que chamam de “page turner”. A saga do jovem poeta inglês que desembarca nos Estados Unidos, não consegue ocupação na promissora indústria do cinema e acaba incinerando cães, gatos, papagaios e até bodes não se estende por mais de 150 páginas. É tragicômica no melhor sentido do termo. Principalmente depois que ele encontra seu par romântico: uma pobre orfã, desorientada, com inclinação para as artes, uma queda especial pelo consultório sentimental, eternamente dividida entre o nosso herói e um embalsamador mais velho, mais feio e ainda mais desinteressante. É natural que tipos tão comuns, em existências tão sem graça, não despertem a atenção de curiosos à primeira vista. Mas isso não é justificativa para deixar de arquirir o volume e entregar-se desbragadamente a ele numa sentada. A editora Globo, que vem desovando Waugh aos poucos (o primeiro título, “A provação de Gilbert Pinfold”, saiu no começo do ano), pode ajudar os nossos “artistas” a serem um pouco menos “sérios” e um pouco menos comprometidos com “causas” aborrecidas e ultrapassadas. A audiência, penhorada, agradece.
>>> O ente querido - Evelyn Waugh - 154 págs. - Globo
 
>>> MAU HUMOR

“Se duas pessoas se amam, não pode haver final feliz.” (Ernest Hemingway)

* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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