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Terça-feira, 5/8/2003
Digestivo nº 140

Julio Daio Borges

>>> AFORISMOS COM JUÍZO Daniel Piza, como Edmund Wilson, se orgulha de ser um jornalista cultural. Tanto que aceitou o convite da editora Contexto e, engrossando a sua coleção sobre jornalismo, encarregou-se do volume que trata do “cultural”. Daniel chama a atenção para o fato de que talvez seja a primeira obra do gênero no Brasil. E tem razão: além de relegado a um “segundo plano”, na ordem de prioridades das revistas e dos jornais, o jornalismo cultural nunca foi objeto de alguma sistematização, ou mesmo do escrutínio de profissionais gabaritados. Num país em que o noticioso tem um peso mais forte, arrastando consigo multidões, é natural que a análise raramente se afirme ou sequer desperte curiosidade. E como a cultura deve ser alvo de reflexão sempre, o jornalismo a ela associado não provoca no brasileiro, digamos, as paixões mais avassaladoras. Daniel Piza, no entanto, ao abraçar essa vocação, desde 1991 (porém, mais intensamente, desde 1995, ao editar, na “Gazeta Mercantil”, o “Caderno Fim de Semana”), vem arrebanhando um público que parecia perdido ou então estava órfão (tendo de se contentar com as manifestações episódicas dos nossos diários e semanários). Sua carreira, e a projeção por ele alcançada através dela, é de alguma maneira a prova de que o “jornalista cultural” pode (e deve) ocupar uma posição de destaque, e de que o “jornalismo cultural” tem uma audiência cativa, ávida por que lhe dirijam a palavra. O livro, portanto, é quase uma defesa de tese – já que Daniel passa por todas as suas experiências na área (Estadão, Folha, Gazeta e Estadão, de novo), concluindo que a cultura merece do jornalismo brasileiro mais respeito e do leitor, um olhar mais aguçado. Além de carregar essa bandeira, o autor aproveita para traçar, nos primeiros capítulos, uma “genealogia” do jornalismo cultural no mundo e no Brasil. Retrocede até o século XVIII, na Inglaterra, e vai encontrar as últimas iniciativas nacionais no segmento, como, por exemplo, a revista “Bravo!”, da editora D’Avila. O tom é pessoal e Daniel Piza, insiste, não tem a pretensão de contar uma “História”. De qualquer jeito, acaba contando, e fazendo em quase 150 páginas (incluindo bibliografia comentada ao final) justiça à tarefa que lhe foi confiada.
>>> Jornalismo cultural - Daniel Piza - 143 págs. - Contexto
 
>>> VOU DEIXAR A VIDA ME LEVAR “Cosmotron”, o sétimo álbum do Skank, tem sido divulgado como uma imersão no universo dos Beatles e do Clube da Esquina, mas talvez seja mais que isso. É verdade que pode parecer de um certo oportunismo embarcar no “revival” do rock dos anos 60, que começou em meados da década de 90, com o Oasis, até porque Samuel Rosa poderia, inclusive, aproveitar de sua semelhança física e concorrer com os sobrancelhudos Irmãos Gallagher no exterior. Mas isso seria acreditar em teoria da conspiração; afinal, as letras são todas em português e o Skank soube incorporar o tal estilo deixando sua marca nele. “Cosmotron”, logo de início, produz um considerável estranhamento, pois parece saído de uma máquina do tempo, entre 1966 (do “Revolver”, dos Beatles) e 1972 (do “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento e Lô Borges). O fato é que o Skank passou daquela fase de refrões renitentes, irradiados em escala planetária, no rádio e na tevê. Abandonou os metais e os sopros (uma referência aos Paralamas de Herbert Vianna?), e saltou do reggae para o rock. Segundo os entendidos, havia indicativos disso nos álbuns de estúdio imediatamente anteriores – mas a confirmação provavelmente veio com o “MTV ao Vivo” (2001) em Ouro Preto. Nele, a banda soava mais coesa do que o normal, Samuel estava catando melhor e até as canções mais estridentes, das novelas e do “hit parade”, ressurgiam palatáveis. Se na primeira metade da década de 90, era pretensioso declarar uma aproximação com João Gilberto na capa de uma revista de música, hoje fica claro que o Skank, aos trancos e barrancos, aprendeu a valorizar a canção. Independente do gênero, e da guinada, é ela que sai vitoriosa em “Cosmotron”. Numa época de enxugamento, as 14 (catorze) faixas não soam exageradas e apontam para um novo ciclo criativo. A crítica não teve (como sempre) tempo para apreciar esse trabalho, mas o disco parece resistir a inúmeras e criteriosas audições. Talvez porque seja simplesmente bom. E talvez porque o Skank mereça realmente uma reavaliação.
>>> Cosmotron - Skank - Sony
 
>>> TEATRO DE REVISTA O teatro brasileiro oscila muito. Ou vence o apelo televisivo; ou o desejo de fazer “arte” é maior, e o espectador fica em último plano. Então termina assim: ou o público leva uma coleção de risadas para casa e nenhuma lembrança marcante do espetáculo; ou sai sem entender nada, com raiva de ter se arrastado até o centro da cidade, divorciando-se eternamente do palco. Não parece haver solução, mas há. No meio termo entre uma condição e outra, nem tanto à terra nem tanto ao mar, a “Terça Insana” vem se consagrando e recentemente comemorou mais de 100 apresentações. O número é representativo porque, além de ter se mantido semanalmente em cartaz durante todo esse tempo, o grupo nunca repetiu sequer um programa. O conjunto de “esquetes” (quadros, cenas, situações) é renovado a cada terça-feira, demonstrando que existe criatividade, aceitação e vitalidade para tanto. A trupe é comandada por Grace Gianoukas, uma cara conhecida da televisão, mas uma tremenda comediante gaúcha radicada há quase 20 anos em São Paulo. Junto a ela estão, fixos toda semana, Graziella Moretto, Luis Miranda, Marcelo Mansfield, Octávio Mendes e Roberto Camargo. Volta e meia, novos nomes são convidados, arejando o “cast” e demonstrando que o marasmo teatral é injustificável. Quem teve a oportunidade de conferir “O Melhor da Terça Insana”, que ficou pouquíssimo tempo em cartaz no Tom Brasil, pôde rir descontroladamente enquanto guardou a imagem de uma produção inteligente. O sexteto, depois dessas 100 e 1 noites, desenvolveu tipos que são aqueles que comumente encontramos, mas que não remetem aos velhos clichês de sempre. Assim, topamos com o guardador de carros diplomado, com a ex-diva de voz embargada, com a debutante de língua presa, com o moderninho da Avenida Paulista e com o executivo de mil e uma utilidades. A “Terça Insana” não tem papas na língua, o que já lhe rendeu e rende processos. Não tem medo de falar o que pensa e, nesse sentido, é impagável uma apresentação ao vivo dos “Tribalistas”, ops!, “Herbalistas”. Fica provado que o teatro pode ser interessante e fazer valer o ingresso.
>>> Terça Insana
 
>>> OS GRILOS NÃO CANTAM MAIS Fernando Sabino e a editora Record têm feito um belo trabalho com a coleção de cartas do escritor. Primeiro, editou-se sua correspondência com Clarice Lispector (“Cartas Perto do Coração”, 2001). Depois, as missivas compartilhadas entre os amigos da vida inteira: Hélio, Paulo e Otto (“Cartas na mesa”, 2002). Agora, surge mais um volume com a troca de gentilezas (e de grosserias também) entre um incipiente Fernando Sabino e um Mário de Andrade no fim da linha (“Cartas a um jovem escritor e suas respostas”, 2003). O “establishment” literário brasileiro tinha muita curiosidade por esse material – quase sempre referido como de um tempo longínquo, por vezes, inacessível. A impressão inicial é de que Mário foi o grande tutor de Fernando, então com 18 anos, quando o intercâmbio se iniciou. Com a leitura, porém, vamos percebendo que o escritor precoce adquire “maioridade”, publica a consagrada novela “A Marca” (1944), e rompe com Mário de Andrade. Há suspeitas de que o Papa do Modernismo tenha desdenhado do sucesso de seu “protegido” e, enciumado, sugerindo abandono, direcionado-lhe farpas numa carta a Paulo Mendes Campos (parcialmente reproduzida no volume). São futricas – ainda que futricas de grandes nomes da nossa literatura. Talvez não merecessem menção, mas é por causa delas que a correspondência se interrompe e o livro se arrasta, alquebrado, até a morte de Mário (1945). O que há para se destacar é o prefácio carinhoso, do Fernando Sabino de hoje (que, em outubro, completa 80 anos), e a paixão (no melhor sentido do termo) nascida entre os dois homens. O jovem num ardor e numa desorientação que não cabiam no mundo; e o velho “vampirizando-o” (também no bom sentido), dividindo um pouco do seu saber e de suas conclusões sobre os tempos idos. Achados: Mário de Andrade chamando Jorge Amado de ignorante e preferindo Portinari a Lasar Segall; também revendo os “erros” de Macunaíma e compondo o célebre “Frederico Paciência”. Talvez uma das maiores contribuições desse Andrade tenha sido mesmo a epistolar. E Sabino, para a nossa sorte, soube aproveitar.
>>> Cartas a um jovem escritor e suas respostas - Fernando Sabino e Mário de Andrade - 218 págs. - Record
 
>>> MAU HUMOR

“As coisas mais desagradáveis que os nossos piores inimigos nos dizem pela frente não se comparam com as que nossos amigos dizem de nós pelas costas.” (Alfred Musset)

* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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