Terça-feira,
2/9/2003
Digestivo nº 142
Julio
Daio Borges
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ESSE FILME EU JÁ VI
“Lisbela e o Prisioneiro” é “O Auto da Compadecida Reloaded”. Só que sem o texto de Ariano Suassuna e sem a interpretação de Matheus Natchergaele. E com o agravante de que a mesma piada contada duas vezes perde metade da graça. Na verdade, é muita pretensão de Guel Arraes e de Selton Mello achar que poderiam levar o “remake” nas costas, sem os diálogos do dramaturgo paraibano e sem o brilho da estrela de “Woyseck”. Juntando a empáfia dos dois, com as interferências de Paula Lavigne, da sua Natasha Produções e do resto da Família Veloso (Caetano na trilha e o pequeno Zeca numa ponta), tem-se a receita para mais um “Titanic” artístico da Globo Filmes e para o primeiro “blockbuster” de fabricação 100% nacional. Porque Arraes repetiu a fórmula de sucesso do “Auto” (na esperança de atrair, novamente, os mais de 1 milhão de espectadores) e Mello faz, pela segunda ou terceira vez, o mesmo papel de malandro-galã-sonso “do Nordeste”. Aliás, quando é que vamos parar de (daqui do Sul) imitar o sotaque dos nossos compatriotas do Norte, reduzindo a sua cultura a uma meia dúzia de elementos e a sua representação, a três ou quatro trejeitos? Tirando a desonestidade (de reembalar o mesmo produto e entregá-lo, ao consumo, como se fosse “novo”) do diretor e do ator principal, é inacreditável que veteranos como Marco Nanini (no mesmíssimo papel de “matador”) e novatos como Virginia Cavendish (de donzela, no “Auto”, a meretriz, em “Lisbela”) e Bruno Garcia (de valentão a “frouxo”), entre outros, tenham embarcado nessa canoa furada, vendendo gato por lebre, ao público, e mantendo, dentro e fora da fita, uma insustentável cara-de-pau. A platéia, seguindo a tradição de conservadorismo que perpetrou a Rede Globo, rende-se à previsibilidade do roteiro, ri ou chora conforme a música, aceitando alegremente uma segunda porção cinematográfica daquele mesmo universo, aparentemente renovado, mas que se repete em seqüências de irritar o espectador mais atento (ou com uma inteligência menos suscetível às lorotas “globais”). E nós que pensávamos que, com a morte do patriarca do clã dos Marinho, os tentáculos da Vênus Platinada não se estenderiam com a mesma avidez e ambição de antes... Talvez seja mesmo o caso de, como alguém sugeriu, Lula “assumir” esse colosso monstruoso de dívidas, e convertê-lo numa autêntica prestadora de serviços. Preservando, logicamente, a Sétima Arte, de repetecos aberrantes (como esse “Lisbela”), que podem muito bem “colar” na telinha, mas que poderiam nos poupar do desgosto, na telona.
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Mais um capítulo no casamento entre cinema e TV |
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DAS KUNSTWERK DER ZUKUNFT
Quem trabalhou (ou trabalha) na região da Avenida Paulista lembra de ouvir música ao meio-dia e de ver uma pequena audiência reunida em volta. Não importa o gênero, os interessados sempre acabam aparecendo. Música erudita, no entanto, é mais rara e mais exigente aos ouvidos. Embora haja a oferta, nem sempre lembrada, de recitais ao vivo (inclusive em outras praças). Isso é em São Paulo. No Rio, funciona, no Paço Imperial, a programação do “ComPasso” (clássico): focada no repertório brasileiro, semanalmente às doze horas de sexta-feira. A Biscoito Fino gravou em disco e o resultado, para quem não conhece, é espantoso. A BF já havia registrado a modalidade “Samba e Choro” (em mais de quatro volumes), mas o prazer de topar com versões inusitadas e elegantes de peças como “O Trenzinho do Caipira”, de Villa-Lobos (na harpa de Cristina Braga), ou da “Bachiana Brasileira nº 1”, do mesmo compositor (na execução da Camerata de Violões, comandada por Paulo Pedrassoli), foge a qualquer descrição. Há ainda a flauta e a bateria, respectivamente de Odette Ernest Dias e Roberto Rutigliano, tocando Bach e Telemann (extrapolando o território nacional), e também o Trio ao Vento abrindo solene o CD com Darius Milhaud. Talvez o maior desafio do repertório dito “erudito” seja provar, ao grande público, que esse tipo de música não é coisa só para “iniciados”. Quantos, em outras épocas, não foram “alfabetizados” musicalmente ouvindo música clássica? Essa discussão nem se coloca no Brasil, onde música popular de qualidade já soa elitista (depois do advento da tevê de massas e, dizem, do Plano Real). Por isso, essas coletâneas (e iniciativas, em locais públicos) são tão admiráveis e necessárias à formação de uma sensibilidade mais apurada. Que a série da Biscoito Fino se desdobre em mais volumes – e que o projeto “ComPasso” encontre equivalente em São Paulo (quem sabe no vão livre do Masp?).
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PrimeiroComPassoClássico - Biscoito Fino |
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QUE FILME VAMOS VER HOJE?
Marcel Plasse. Quem leu mais atentamente sobre cinema ou música, nestes 10 ou 15 anos, conhece o nome. Foi ele um dos criadores da revista “Set”; escreveu críticas antológicas no “Estadão” e na “Folha”; hoje colabora com o “Valor Econômico”. Plasse, no entanto, apesar de ser uma assinatura na grande imprensa, tem uma visão muito peculiar da crise que afeta o setor – e decidiu partir para uma empreitada inovadora, e solo. Sua editora, a Caffeine, está produzindo a revista “Pipoca Moderna”, sobre lançamentos em DVD. Com ela, Marcel derruba alguns paradigmas – ou digamos que, simplesmente, leva algumas tendências atuais dos impressos ao limite. Primeiro: a “Pipoca Moderna” é grátis e não passa por distribuição em banca. Plasse acha que o sistema está falido e culpa-o pelo encolhimento das principais redações. Sua revista pode ser encontrada em locadoras, lojas especializadas e estabelecimentos afins (livrarias, cafeterias, etc.). Quem financia o empreendimento, portanto, são as promoções e os anúncios. Segundo: “Pipoca Moderna” fala evidentemente de sétima arte mas ignora solenemente a programação das salas de cinema e, obviamente, o moribundo mercado de VHS. A escolha é consciente e o foco setorizado no DVD é uma aposta pessoal do editor, que assistiu à derrocada do comércio de CDs (pelos piratas) e à migração das próprias gravadoras (de música) para o universo dos Digital Versatile Discs. Terceiro: “Pipoca Moderna” tem 16 páginas, textos exemplares e diagramação corretíssima – sendo, de ponta a ponta, o que poderíamos chamar de “one-man show”. Plasse, ao mesmo tempo em que “vende espaço” (para a publicidade), assina matérias; ao mesmo tempo em que cuida da “arte”, monta o site da publicação na internet; ao mesmo tempo em que fala ao telefone, atende à campainha e responde ao e-mail. A pergunta crucial é: – Tanto esforço vale a pena? Segundo o próprio realizador: é verdade que tomou prejuízo no primeiro número, mas já empatou a partir do segundo e espera lucrar, sem falsa modéstia, depois de alguns meses. “Pipoca Moderna” já vende assinaturas semestrais e circula com tiragem ambiciosa de 30 mil exemplares. Oxalá continue confirmando as teorias de Marcel Plasse.
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Pipoca Moderna |
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A ÚLTIMA TECNO-RAVE
Don DeLillo deu o ar da graça no festival literário de Paraty e foi muito criticado pela imprensa local em seu novo livro, “Cosmópolis” (Cia. das Letras, 2003). Acontece que pode ter escrito algumas das 50 melhores páginas iniciais de um volume em muito tempo, quando narra as peripécias de um superexecutivo dos anos 2000 que circula incessantemente em sua limusine branca pelas ruas de Nova York. Chamam-no de “surrealista” (?) apenas porque retrata as situações de seu país, os Estados Unidos, com toda a pompa e com todo o exagero que lhes é inerente. DeLillo não mente, e sabe escrever – duas qualidades em falta ultimamente. Sua novela (?) de quase duzentas páginas tem um quê de joyceana, porque se passa toda em um único dia do protagonista. Eric Packer é um desses garotos-prodígio do tempo da “bolha” especulativa, que acumulou bilhões de dólares e vive como um semideus capitalista, com direito a onisciência, onipresença e onipotência. Não tem escritório fixo em nenhum lugar: está em todos ao mesmo tempo, graças às manobras de seu motorista, um performático esquema de segurança e o entra-e-sai dos principais diretores de sua empresa, que falam através de metáforas. (A ambição de DeLillo é oracular e filosófica e, alguns podem achar, ele resvala nos delírios místicos e cibernéticos da geração X, Y, Z ou qual seja.) Além de se alimentar do fluxo de informações de seus monitores de plasma, ler em alemão em suas noites de insônia e decorar nomes científicos de plantas, o sujeito é um atleta sexual, e se reveza entre suas amantes espalhadas pelos bairros da Big Apple. É também casado, com uma poetisa, que herdou uma herança (igualmente bilionária, mas não, como ele, “nouveau riche”) – a qual encontra sempre “by chance” (em locais inusitados), e com quem divide não mais que as refeições do dia. Esse tipinho insolente, que caça na Sibéria e que, por esporte, pilota um bombardeiro russo (pelo qual desembolsou alguns milhões de dólares), ainda aposta sua fortuna contra o iene, enquanto se submete a checkups diários. Irônico que se entregue à morte de braços abertos. (Ninguém se assuste com a revelação: não se trata de um livro de mistério.) DeLillo não explica o final – e nem deve explicar; não é o seu papel. Para quem não gostou: que se atenha às primeiras 50 páginas – essas valem as demais (assim como o conselho vale a repetição).
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Cosmópolis - Don DeLillo - 197 págs. - Companhia das Letras | Don DeLillo encerrou Festa Literária em Paraty |
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>>> MAU HUMOR
“Use toda a sua saúde a ponto de esgotá-la. E gaste todo o seu dinheiro antes de morrer. Não vale a pena sobreviver a essas coisas.” (George Bernard Shaw)
* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
>>> CHARGE DA HORA: "SE A MODA PEGA..." POR DIOGO
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Julio Daio Borges
Editor |
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