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Terça-feira, 14/10/2003
Digestivo nº 145

Julio Daio Borges

>>> MEU BEM, MEU MAL Hoje todo mundo quer ser revista. Revista de marca. É um fenômeno relativamente recente. Paulo Lima, da Trip Editora, foi o pioneiro? Difícil dizer. Sabe-se que, sob o seu guarda-chuva, abrigam-se hoje as da Daslu, da Mitsubishi e da Gol, entre outras. Outro expoente do setor, falecido tragica e recentemente, foi Andrea Carta – que, repetindo a receita da Vogue (que por estas plagas representou), produziu uma revista para o Shopping Iguatemi que é um primor de anúncios e que reabilitou Ignácio de Loyola Brandão. Qual a fórmula? Estampar na capa uma celebridade (ou uma “instant darling”); no interior, traçar-lhe um perfil (ou então desnudá-la num amplo ensaio fotográfico); convidar alguns colunistas que não comprometam (jornalistas e formadores de opinião não são recomendáveis); rechear o resto com famosos, colunáveis ou simplesmente “beautiful people”; temperar com editoriais de moda; salgar com um pouco de “cultura” a gosto. Funciona? Ninguém sabe dizer. Quanto essa febre vai durar? Outra coisa que ninguém sabe. Para engrossar esse coro, entraram agora as empresas de telecom que, como a Oi, ensaiam passos com título próprio. (Como alguém disse brincando: o que seria do mercado publicitário atual sem os investimentos maciços do setor de telefonia? Provavelmente estaria à míngua.) No limite, a iniciativa corre o risco de enterrar a maior parte das revistas conhecidas. Para que anunciar numa outra (revista), se uma marca pode ter a sua própria? É melhor para os profissionais da área, muitos podem advogar. Nem sempre: algumas delas são produzidas em série, pela mesma equipe; ou então como um projeto paralelo de uma “redação” que já existe. E o consumidor, o que diz disso? Geralmente não reclama, porque pode obter muitas delas de graça (via “mailing”, ou quando caminha pelas dependências físicas do patrocinador). É pouco provável também que chegue a lê-la (afinal o que há para ler?). Folheia? Folheia e não enjoa; de modo que, no mês que vem, pode pegar distraidamente outra. Assim, não convém demonizá-las. As revistas de marca podem ser tanto uma tendência quanto um capricho. Lamentavelmente, ninguém sabe. Ou, sabiamente, finge não saber.
>>> Carta Editorial | Trip
 
>>> UMA RELAÇÃO ORGÂNICA COM A REDE Pollyana Ferrari, praticamente mãe do site "Época On-line" (enquanto ele existiu) e ex-diretora de conteúdo do iG (quando este tinha outras ambições), escreveu "Jornalismo Digital", pela coleção da editora Contexto. O livro, apesar de breve (menos de 100 páginas de texto), é um prato cheio para quem quer saber o que foi o "boom" jornalístico da Web brasileira no final dos anos 90. Pollyana, que também é professora da Eca (USP), basicamente fala de sua experiência no veículo internet — o que equivale à visão de um jornalista de "grande imprensa" do fenômeno. É o que dá a dimensão e, ao mesmo tempo, limita a obra. A autora obviamente raciocina nos moldes das redações "de papel" (como chama), embora, felizmente, compreenda o que é trabalhar nos padrões da Grande Rede (principalmente pré-"Bolha"). Acontece que não trata, em nenhum momento, do jornalismo (ou do pseudojornalismo, se preferirem) exclusivamente oriundo da internet brasileira, mas desamparado das grandes corporações de mídia. Aquele que não foi "mainstream" e que foi "independente" (um termo gasto, mas...), fazendo igualmente "História" na Web tupiniquim. Aquele de sites, de revistas eletrônicas, e hoje, quem sabe, de blogs — longe das ramificações de grupos como Folha, Abril, Globo, Estado, etc. (Muitos, claro, já extintos [porque a fase do heroísmo já passou]). Desse "jornalismo digital" (por abuso de linguagem, talvez?), Pollyana Ferrari não fala. Mas não convém crucificá-la. Afinal, Ferrari faz a defesa apaixonada do "jornalista digital" (ou do que entende por isso), louvando as investidas da academia na formação desse profissional e, em paralelo, condenando os barões da notícia no Brasil, que, depois do tombo virtual de 2000, reduziram as oportunidades a quase zero. Sim, a conclusão é triste: o "jornalismo digital", se um dia houve, no ponto de vista de Pollyana Ferrari, já acabou. E, mesmo raciocinando por outras categorias, talvez ela tenha razão. O romantismo de quem ia mudar o mundo, via WWW, não se encontra mais em qualquer esquina — e, independentemente de quem "ganhou" ou de quem "perdeu", isso não é bom. O livro, portanto, permanece como um testemunho do que "foi" (e, provavelmente, do que "poderia ter sido"). Nisso, ele se justifica. Quiçá estimule o "contar" de outras "histórias". Certamente com menos glórias, mas, na mesma medida, importantes.
>>> Jornalismo Digital - Pollyana Ferrari - 120 págs. - Contexto
 
>>> LÁGRIMAS DE POETA Alguma coisa impede a Kuarup de se afirmar, sabida e notoriamente, como uma das maiores gravadoras de música brasileira. O que será? Serão as capas? Será o marketing (ou a ausência dele)? Será o excesso de modéstia e humildade, a exemplo de seu fundador, para efetivamente assumir um lugar de destaque? Não se sabe. E essa contradição (de não ser efetivamente o que se é) revela-se ofuscante em lançamentos como o de Henrique Annes: “Violão Pernambucano”. Mesmo desconhecendo de quem se trata, dois integrantes do “regional” que acompanham o músico merecem destaque: Maurício Carrilho (também ao violão) e Luciana Rabello (ao cavaquinho). O primeiro deu forma ao CD de estréia de Yamandú Costa (o prodígio que virou “figurinha fácil” na mídia), e a segunda é irmã daquele violonista lendário, morto precocemente, que felizmente ninguém esqueceu (Raphael Rabello). Só por isso, mais essa iniciativa da Kuarup merecia os holofotes dos jornais e das revistas. Mas, se você perguntar, ninguém viu ou ouviu falar. Passando por cima da omissão dos nossos “divulgadores” de sempre, é preciso ainda dizer que Henrique Annes, para quem não sabe, segue aquela tradição pernambucana que remonta, obviamente, a João Pernambuco (o compositor de choros) e a Jaime Florence, o Meira, professor de nada mais nada menos que Baden Powell. O presente CD sinaliza com composições de Annes, tremendo intérprete, que conquista já nas “caribeanas” (números 1, 2, 3 e 4, que abrem o disco), atravessando o universo do chorinho (“Choro para Maurício Carrilho”, “Choro para Edson”) e impressionando definitivamente, os incautos, com os “prelúdios” (números: 1, 2 e 3), que não deixam nada a dever aos de Villa-Lobos. Fora que, em meio aos descaminhos que conduziu a música brasileira ao seu paupérrimo viés “eletrônico”, é um alívio topar com um álbum 100% melódico, que “envolve” e permite novos mergulhos, sem se esgotar nas primeiras (ou mesmo na primeira das) audições. E, para quem gosta de nomes, há ainda os de Altamiro Carrilho (o flautista, numa faixa) e Paulo Sérgio Santos (o clarinetista, em outra). Com um “cast” desses, a Kuarup merecia as primeiras páginas das publicações musicais (se elas existissem), ou então os louvores da crítica especializada (se ela não estivesse abafada ou agonizante). Enquanto não chega esse dia, promove banquetes a poucos privilegiados.
>>> Violão Pernambucano - Henrique Annes - Kuarup
 
>>> O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE) O Caluma fica no Centro Empresarial Nações Unidas. Na verdade, um shopping center contíguo ao chique “D&D”, ao qual se tem acesso de carro pela mesma avenida (daí o nome), e a pé por uma passagem lateral. Não há placas indicativas no exterior, o que gera dúvida, mas os lojistas desconfiam que simplesmente há má vontade por parte dos criadores do “D&D”, que temem a concorrência. O fato é que o restaurante Caluma acaba pouco conhecido do público em geral, ficando restrito aos “breakfasts”, almoços e “happy hours” corporativos. O que é uma pena, porque seus proprietários investiram solidamente em qualidade e, inclusive, contrataram, para montar o cardápio e estruturar a cozinha, um dos mais badalados chefs da atualidade: Christophe Besse, do All Seasons. A motivação inicial era apostar em frutos do mar; a arquitetura, aliás, indica. Acontece que as “refeições de negócios” terminaram se estabelecendo e a direção optou por abrir o leque num bufê “self-service”; complementado às quartas, quintas e sextas com música ao vivo. O resultado foi uma casa movimentada, com “foco no cliente”, rimando com as idéias dos gurus da administração moderna. (E, pensando bem, o que há de errado em oferecer o que se pede?) Emerson Ávila e sua trupe já são “restaurateurs” veteranos e não se intimidaram com a suposta sofisticação dos freqüentadores do “Decoração & Design Center”. “Trabalharam a imagem” e venceram o desafio. Os destaques ficam inegavelmente por conta das sobremesas; finas e bem-acabadas (não uma mera imitação de quitutes consagrados). Destaque também para os sushis e sashimis; preparados na hora e continuamente reabastecidos. (As demais opções se alternam entre carnes, massas e saladas. É impossível dar conta de tudo.) No fundo, o Caluma não precisa de propaganda e, como sugere o clichê, “vai bem, obrigado”. A gastronomia paulistana também é feita de “success cases”.
>>> Caluma
 
>>> MAU HUMOR

“Para mim, uma ópera não passa de um bando de chefs italianos gritando receitas de risotos uns para os outros.” (Aristoteles Onassis)

* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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