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Quarta-feira, 24/12/2003
Digestivo nº 154

Julio Daio Borges

>>> SECOS & MOLHADOS E Joelmir Beting “rodou”, no Globo e no Estadão. Para além das considerações “éticas” (se ele pode ou não fazer a campanha do Bradesco), os dois jornais perderam o melhor colunista diário da imprensa brasileira. Pena que ninguém abra os cadernos de economia; muitas vezes, mais interessantes e úteis que os de cultura, por exemplo. Joelmir tinha um estilo de escrever que merecia citação de Millôr Fernandes: – “Ele divide os artigos em notas; você vai lendo uma por uma e, quando percebe, leu o artigo todo. O Joelmir Beting faz isso muito bem – e com humor!”. Alguns reclamavam de suas metáforas, por vezes, excessivas – a ponto de se parar e pensar: “Sobre o que ele está falando mesmo?”. Foi infatigável de terça a domingo; sempre com informações precisas e um assunto quente na ponta da língua; na crista da onda. Seus comentários na Globo (televisão) ensinaram a muita gente o bê-á-bá da economia; parece que ele perdeu sua tribuna lá também... Mas voltando à vaca fria, foi correta a execução sumária que Joelmir Beting mereceu do Grupo Estado e das Organizações Globo? Um profissional com tantos anos de casa e com tantos serviços prestados não tem direito à capitulação? Parece que não. As reações de seus colegas jornalistas são as mais variadas. Muitos pensam que a decisão dos “empregadores” foi correta, e que jamais Joelmir poderia ter associado sua credibilidade a um dos maiores bancos privados do País. Uma geração menos “xiita” (que vem chegando) compara a atitude de Joelmir à das celebridades televisivas, que anunciam de tudo: desde imóveis que não saem da planta até financeiras que tiram dinheiro de quem não tem onde cair morto. Uma coisa é certa: se o jornalismo não tivesse perdido o status de profissão, e ainda fosse bem remunerado, nada disso teria acontecido. Infelizmente, ao tentar procurar um culpado no episódio Joelmir Beting, voltamos à velha história da galinha e do ovo: “Pagam mal porque se recebe por fora?” ou “Recebe-se por fora porque pagam mal?”. Atire a primeira pedra quem resolver o enigma.
>>> Posso falar? - Joelmir Beting
 
>>> A MINA DE SAMPA Rita Lee virou ídolo de televisão. A cabo. Está perdida. A cada disco, agora, tem de agradar também suas colegas de “Saia Justa” (Fernanda Young, Marisa Orth, Monica Waldvogel) e os telespectadores do GNT. O “Saia Justa”, aliás, às vezes parece um “blog” – em que cada participante destila suas misérias. Deveria haver alguma lei contra a superexposição; contemplando desde os “blogueiros” anônimos até as personalidades televisivas. Mas, voltando ao disco, parece que Rita Lee finalmente se rendeu ao seu lado “besteirol”, “circense”, “clown”. O encarte colorido e as intervenções do DJ Memê confirmam isso. Nada da introspecção confessional de “Mutante” (1981); nada da densidade amorosa de “Shangrilá” (1980); nada do bossa-novismo de “Desculpe o Auê” (1983); e nada dos “rocks” de “Fruto Proibido” (1975). A instrumentação, inclusive, em “Balacobaco” (esse é o nome do disco) está tão leve que vai acabar virando trilha sonora de dentista. Mesmo quando tenta soar ofensiva (em, por exemplo, “Tudo Vira Bosta” [sic]), Rita Lee só consegue soar... inofensiva. A Titia Rita – que rasgava certidão de casamento no programa da Hebe; que cuspia na cabeça de quem integrava as passeatas da TFP – hoje não assombra mais. Está pronta para ser avó. (Será que é isso?) Está pensando na sua “reputação”; na “posteridade” e em seus “netinhos”. Entre alguns jogos habilidosos de palavras (como “Amor e Sexo”), o melhor momento é, sem dúvida, “A Gripe do Amor”. Rita Lee, como Lulu Santos (que prometeu o CD “Lee à la Lulu” – e não cumpriu), deveria se deixar “memerizar” pelo DJ. Alcançou a leveza das pistas e poderia dispensar as guitarras de Roberto de Carvalho. “Balacobaco” fica então como um registro da transição entre os Beatles (e os Rolling Stones) e a sua incursão na música eletrônica. (A propósito: como ninguém pensou nisso antes – se até o “Olhar 43” do RPM sucumbiu aos “embalos de sábado à noite”?) “Over the Rainbow” está, portanto, deslocada; e a filosofice de “Eu e Mim”, mais ainda. Rita Lee poderia igualmente abandonar o “Hino dos Malucos”, que, de tão banal, poderia se chamar “Hino dos Normais” (em homenagem aos novos parceiros: Alexandre Machado e sua esposa).
>>> Balacobaco - Rita Lee - Som Livre
 
>>> RAPSÓDIA Numa recente palestra na Livraria Cultura, por ocasião do relançamento de “Literatura como Missão” (Cia. das Letras, 2003), Nicolau Sevcenko saiu em defesa do que chamou de “Núcleo Notável”: Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto e Cruz e Souza – que, na aurora do século XX, viram nascer a república brasileira e, ato contínuo, desiludiram-se com ela. Nicolau não se conforma que hoje os “Pais Fundadores” da moderna literatura brasileira sejam classificados como “Pré-Modernos”: como se configurassem uma geração “incompleta”; que não “chegou a ser”; e que, portanto, “não se realizou”. Põe parte da culpa nos “Modernistas” que dividiram a História em “antes” e “depois” (deles, obviamente). A outra parte (da culpa) põe em Getúlio Vargas que, num dos discursos da Revolução de 30, aproveitou o “gancho” da Semana de 22 para se apropriar de suas conquistas, e sepultar, definitivamente, o “Brasil-de-antes”. Num momento de revisionismo como o nosso, é importante que se reedite “O tupi e o alaúde” (1979), de Gilda de Mello e Souza, sobre a obra máxima de Mário de Andrade: “Macunaíma” (1928). Gilda, ex-colaboradora da lendária revista “Clima” (do grupo de Antonio Cândido), estruturou seu estudo como uma resposta a “Morfologia do Macunaíma” (1973), de Haroldo de Campos. Gilda revela que a pequena composição, feita entre Natal e Ano Novo, em menos de uma semana, só assumiu para Mário de Andrade o caráter de “obra-prima” quando ele se viu, de repente, incensado pelos amigos, entusiasmados com o manuscrito. “Macunaíma” bebe da fonte da tradição oral brasileira e também da mística do (anti-)herói medieval. Deve muito a Cervantes, Rabelais e Dickens – criadores por quem Mário tinha apreço especial. O mérito de Gilda de Mello e Souza está, assim, em novamente “humanizar” a figura agigantada do homem (e de sua obra), relembrando, inclusive, os puxões de orelha de Manuel Bandeira (sempre ele; que achava certos “chistes” absolutamente desnecessários). O Modernismo que, com a empáfia típica do século XX, produziu visões auto-referentes e “estanques” precisa ser urgentemente revisitado, para que o próprio Brasil se enxergue em sua “totalidade”.
>>> O tupi e o alaúde - Gilda de Mello e Souza - 94 págs. - 34
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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