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Quarta-feira, 24/11/2004
Digestivo nº 202

Julio Daio Borges

>>> DENTRO DO CONTEXTO Num mercado editorial em que a qualidade das publicações é de média para baixa, quando surge um periódico melhor do que o normal, os leitores custam a acreditar – e a assimilar. É o caso da revista Nossa História, que aparentemente tinha um mar de dificuldades para enfrentar – dificuldades, digamos, históricas – mas que, ao mesmo tempo, já está completando um ano de presença mensal nas bancas. Nossa História poderia, por exemplo, fracassar na sua escolha, persistente, em abordar a História do Brasil. Mas, não: fez do tema assunto interessante e trouxe ao presente figuras, no mais, esquecidas nos bancos da escola (ou nos livros mofados da biblioteca). Nossa História poderia, então, se perder no meio do jargão acadêmico, tão contrário ao bom jornalismo, ao investir em luminares das nossas ciências humanas. Mas, não: incluiu uma porção de medalhões em seu conselho editorial e em sua “linha de frente”, sem – nem por um minuto – tornar-se ilegível ou inacessível aos meros mortais. Nossa História poderia, ainda, arrefecer os ânimos depois de seus incansáveis esforços – por um texto polido, por um cuidado inédito com documentos e imagens –, objetivando um público, hoje, inatingível ou simplesmente inerte (que ou demora a responder ou praticamente não responde). Mas, não: Luciano Figueiredo e seus comandados mantiveram o mesmo fôlego e a mesma disposição do início, insistindo num alto nível de exigência, apesar da audiência letrada (ou com ambições para tanto), no Brasil, ser numericamente inexpressiva ou em vias de extinção. Pode-se questionar, é claro, seu modus operandi, sua ligação com a Biblioteca Nacional e até a orientação ideológica de determinados autores – mas são colocações, obviamente, menores dentro da realização maior que é, vale repetir, a revista Nossa História. Basta pensar que, antes desse feito, não havia um espaço nas bancas de jornal, nem nas opções editoriais para “leigos”, reservado à História do Brasil. Não se sabe, porém, se antes, se durante ou se depois, pipocaram outros títulos sobre “História” em geral – mas seria totalmente injusto confundi-los com a iniciativa, por enquanto isolada, da editora Vera Cruz. Por esses e por tantos outros motivos, é importante que se leia, que se consuma e que se conheça a Nossa História. Nela, o Brasil – tão aviltado em outras esferas – merece sempre o respeito devido.
>>> Nossa História
 
>>> MONGÓLIA E os escritores continuam desconfortáveis em sociedade... Se antes não eram reconhecidos, e reclamavam, sentiam-se como párias. Como extraterrenos – algo que se costuma admirar com um interesse zoológico, mas de um ponto de vista antropomórfico. Acontece que os escritores, de repente, deixaram de ser ficção e tornaram-se objeto de diversas honrarias. As mais bizarras, como experiência, são as premiações literárias. Os escritores arrastam-se pelas paredes como lagartixas e se esgueiram quando há um ameaça concreta de contato físico. Muitos nem comparecem às cerimônias de entrega. Outros desfilam com o ar aviltado por ter perdido, e desaparecem o mais depressa possível. Não foi diferente na celebração do II Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira. Apesar de toda a pompa e circunstância (Vinicius de Moraes, Nelson Motta e Júlia Lemmertz), as grandes estrelas da noite não foram propriamente os vencedores, mas, sim, os principais executivos da Portugal Telecom. E não por culpa desses últimos; mas por inabilidade dos primeiros. Marcelo Mirisola, um dos concorrentes, avançava apressadíssimo por entre as fileiras – num temor que misturava: a possibilidade escassa de ser reconhecido e a ameaça iminente de anonimato completo. Já Décio Pignatari, outro concorrente, sabendo-se vencido, desvencilhava-se de mãos efusivas, que o obrigavam a parar, enquanto arrastava sua senhora rumo à saída. Certos estavam os que agiram com fleuma – e levaram o cheque e a estátua. Diante da chance de abocanhar um dos troféus, Sérgio Sant’Anna, entre bandejas de canapés, desviava de si as expectativas: “Tá difícil... Tá difícil...”. Segundos depois, transmutava-se para o telão – onde, do palco, via-se que ficava com o 2ª lugar. No preâmbulo, Carlos Lyra diluiria o alto teor literário do encontro, com histórias do Poetinha, e Olívia Byington iria além das medidas, ao cantar mais que o recomendável. O comentário geral, sobre sua performance, seria: “Podia ter ficado em 3 ou 4 músicas...”. Enfim, tirando a falta de tato dos nossos pares, foi uma homenagem justa às letras nacionais. Sem confundir literatura com MPB, os jurados não incensaram, mais uma vez, Chico Buarque; e, sem embarcar nas vanguardas-que-já-não-são, deixaram os Irmãos Haroldo de fora. Malgrado, portanto, a falta de traquejo do escritor médio brasileiro, a coisa vai ficando cada vez mais séria e interessante.
>>> Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira 2004
 
>>> MENINOS, EU VI... Cícero Dias mal teve tempo de pisar na Faap e de mostrar, aos paulistanos, que o mundo começava no Recife. Soa inverossímil que o pintor falecido há poucos anos tenha sido contemporâneo dos modernistas. Em carta reproduzida na exposição, Manuel Bandeira recomenda-o a Mário de Andrade. Dias auto-exilou-se em Paris e permaneceu, junto com sua obra, encapsulado no Brasil – entre o mais evidente Marc Chagall e o parentesco, por contágio, com Frida Khalo. André Breton, se o encontrasse no México, como encontrou a Frida, provavelmente lhe diria – como disse a ela – que esse (seu) “surrealismo” era o que ele (Breton) e Dalí há tempos perseguiam. Algo como a tarja que colaram, de “realismo fantástico”, em todos os escritores inclassificáveis, de um certo período, na América Latina. A mostra na Faap, como que compactuando com a “imagem cristalizada” de Cícero Dias, restringiu-se às décadas de 20 e 30. Apenas para ficar no seu mural mais conhecido: houve formas inspiradas na elefantíase do Abaporu de Tarsila; houve referências à industrialização representada pela mesma e pelo Portinari comunista; houve o movimento e a embriaguez (ivresse) dos vanguardistas do Velho Continente; e houve um erotismo e um ar de contravenção, ambos muito sutis, que instigaram os bem-pensantes a retalhar 2,5 dos originais 15 metros. Já as cores são um show à parte. Se antecipou os pigmentos fluorescentes em pelo menos meio século, Dias se irmanou à companheira de Diego Rivera não apenas nos tons, mas numa temática que confundia sonho e realidade, um país agrário com outro em processo de modernização a fórceps. Suas aquarelas são de uma alegria quase infantil, e qualquer criança poderia em princípio se deliciar com elas (embora algumas esperneassem dentro da mesma Faap, pouco antes do fim). Num canto, um Cícero Dias idoso proferia uma conferência em videotape, para ninguém ouvir (provavelmente invocando o tradicional hábito tupiniquim de esquecer seus heróis e de, num reflexo tardio, desenterrá-los, em documentários, ainda mortos ou semivivos). Dias circulou pelos salões da capital francesa mas não encontrou o mesmo eco em seu próprio país. Atualmente, como ninguém mais sabe disso, talvez desfrute da compreensão de olhares contemporâneos: regados à estética atordoante de um Pedro Almodóvar; sobreviventes do entorpecimento sessentista à base de psicotrópicos; objeto do bombardeio televisivo e da linguagem alucinada do videoclipe.
>>> Cícero Dias | Faap
 
>>> EVENTOS QUE O DIGESTIVO RECOMENDA



>>> Cafés Filosóficos
* Dos Planetas Habitáveis ao Coração das Estrelas - Eduardo Janot Pacheco (USP) (Qui., 25/11, 19h30, VL)

>>> Palestras
* Semana Moda e Cultura: Abertura - Dhora Costa
(Seg., 22/11, 18hrs., CN)
* Processo criativo - Walter Rodrigues
(Seg., 22/11, 20hrs., CN)
* A evolução da marca Sommer - Marcelo Sommer
(Ter., 23/11, 19hrs., CN)
* Introdução ao Jornalismo de Moda - Tarcísio D'Almeida
(Qua., 24/11, 19hrs., CN)
* Performance Modelo Vivo - Rodrigo Villalba
(Qui., 25/11, 18hrs., CN)
* Design do corpo vestido - Agda Carvalho
(Sex., 26/11, 20hrs., CN)
* Reflexões sobre história da moda - João Braga
(Sáb., 27/11, 15hrs., CN)

>>> Noites de Autógrafos
* Matarazzo - Ronaldo Costa Couto
(Seg., 22/11, 19hrs., CN)
* A história da V.: uma visão da sexualidade feminina - Catherine Blackledge (Ter., 23/11, 19h30, VL)
* Depoimentos da Vida Profissional - Verner Dittmer
(Qui., 25/11, 18h30, VL)

>>> Shows
* Música das Nações - Martin Tuksa (violino) e Ana Cláudia Brito (piano)
(Seg., 22/11, 20hrs., VL)
* Duke Ellington - Traditional Jazz Band
(Sex., 26/11, 20hrs., VL)
* Espaço Aberto - Banda Armazém
(Dom., 28/11, 18hrs., VL)

* Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos (VL): Av. Nações Unidas, nº 4777
** Livraria Cultura Conjunto Nacional (CN): Av. Paulista, nº 2073
*** a Livraria Cultura é parceira do Digestivo Cultural
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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