Quarta-feira,
26/1/2005
Digestivo nº 211
Julio
Daio Borges
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LÓGICA DA DESCONSTRUÇÃO
Kant, o filósofo sistemático de Königsberg, costuma ser o terror dos estudantes de filosofia. Acusado de incompreensível, difícil e mal escrito, ganhou uma edição brasileira que contradiz todo esse histórico em 2004. Foi o livro introdutório de Denis Thouard, pesquisador francês, dentro da coleção “Figuras do Saber”, da editora Estação Liberdade. Kant segue atual pois foi o primeiro a querer “matar” a metafísica propondo uma reforma da filosofia, que já se via ameaçada pela emergência da ciência em sua época. Num rasgo de falta de modéstia, comparou sua Crítica à razão pura (1781) à revolução copernicana, que havia começado a tirar a Terra do centro do universo... Como diz o título, Kant criticava quase toda a filosofia anterior, que, a seu ver, não produzia conhecimento, apenas raciocinava em cima de conceitos. Deduzir, por exemplo, da idéia de “água” que ela era insípida, incolor e inodora não lhe parecia de nenhuma valia, afinal, dentro da concepção de “água” já estavam embutidas tais propriedades (desdobrá-las, portanto, soaria falso e redundante). Seguindo a analogia com Copérnico (mas na via oposta), ele sugeria que se adotasse, pela primeira vez, o ponto de vista do sujeito e não do objeto – levando ainda mais adiante a noção de cogito inaugurada por Descartes. Kant afirmaria que quase nada poderia ser conhecido “em si” e que a nós apenas restaria a possibilidade de conhecer certas coisas em determinado momento do tempo e em determinado ponto do espaço – como fenômeno. Assim, ficavam banidas algumas noções que, como meras abstrações, seriam irrealizáveis na prática. O livro de Thouard, em vez de se perder em especulações idiotas sobre a vida de Kant (como é comum), debruça-se sobre suas três principais obras: além da já citada, também a Crítica da razão prática (1788) e a Crítica do juízo (1790). E se alguém ainda precisa de um gancho para lançar-se na investigação de good old Kant (como se referia a ele Nietzsche), basta lembrar de sua influência sobre dois dos mais fundamentais pensadores a moldar o último século: Hegel e Heidegger.
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Kant - Denis Thouard - 172 págs. - Estação Liberdade |
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OLHA QUE ISSO AQUI TÁ MUITO BOM
Roberto Dávila tem se revelado um dos mais constantemente elogiados entrevistadores da televisão. Ao contrário da linha dominante que procura extrair do entrevistado conteúdos bombásticos, Dávila usa de muita educação e parcimônia, inquirindo com suavidade e praticamente deixando o interlocutor falar (coisa rara na atual disputa entre personalidades pelo horário nobre). Quem teve o privilégio de pegá-lo, outro dia, pela noite afora deve ter cruzado com outro personagem arguto e sagaz: Dominguinhos, o sanfoneiro e compositor. Foi um daqueles encontros inacreditáveis que geram dúvidas sobre a transmissão (será que vai sair do ar? será que está mesmo passando?). Dominguinhos, sempre muito modesto e simples em suas aparições, preferindo abrigar-se sob o guarda-chuva de celebridades musicais como Luiz Gonzaga, Gilberto Gil e Chico Buarque, mostrou-se vivíssimo e dono de um papo instigante, com divertidas histórias que poderíamos pedir para nunca mais terminar. Revolveu suas origens em Garanhuns, tocando ainda na infância em feiras, por sugestão da mãe e por impulso do pai (também músico). Evocou a topada de sorte com o Gonzagão, ainda no grupo do tempo de criança, quando recebeu do mestre um contato seu na capital carioca. Revisitou essas experiências em conjunto, quando o pai do Gonzaguinha, em crise, se dizia ultrapassado – e, ao mesmo tempo, encorajava o pupilo a subir no avião, pois, como falava, uma aeronave não podia cair se levava, no seu interior, artistas que trariam “alegria pro povo”. De Gil, recordaria a excursão com o “Xodó” – a canção quase roubada pelos americanos, antes de ser gravada pelo baiano. E de Chico, admiraria a organização: volta e meia o autor da “Banda” desenterraria uma fita, de muitos anos, cuja melodia, já esquecida por Dominguinhos, teria finalmente recebido letra. Roberto Dávila, apesar da contumaz elegância, se deixaria até inebriar pelo charme do convidado, sofrendo lapsos de desinformação, mesmo diante de deduções lógicas, como a de Dominguinhos sugerindo que Luiz Gonzaga teria surrupiado “Asa Branca” de Januário, seu pai. Fora tropeços muito sutis como esse, a conversa fluiu de maneira quase inédita hoje em dia. No meio de um incessante desfile de gente que não tem simplesmente o que dizer na tevê, foi recompensador escutar um músico que não sabe apenas tocar e cantar, mas, também, falar.
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Conexão Roberto Dávila - Dominguinhos (entrevista) |
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NOTHING BUT FLOWERS
Em matéria de cinema brasileiro, hoje a grande discussão é sobre a validade ou não do “entretenimento”. A velha guarda – quando não opta abertamente pelo cinemão (como Cacá Diegues em Deus é brasileiro) – refuga ante a possibilidade de se transformar o cinema nacional em indústria. Como vem fazendo a Globo, entre outras produtoras. Assim, muitos diretores de agora, no próprio ato de lançar um longa, já entram na defensiva se justificando antes mesmo que o público ou a crítica tenha uma opinião sobre seu trabalho. É o caso de Jorge Furtado que, em Época, partiu para o ataque, dizendo que nem todos os filmes devem passar mensagem. Ele tem razão, no sentido de que a arte engajada já atingiu a exaustão em muitos setores (como o da recente “cosmética da fome”), mas erra ao entrar no “trem da alegria” dos quase remakes e da mera aplicação de fórmulas. Como Guel Arraes, na releitura de si próprio (Lisbela e o Prisioneiro é praticamente uma remontagem de O Auto da Compadecida). Aliás, Arraes se associou a Paula Lavigne para produzir o recém-chegado Meu tio matou um cara, de Jorge Furtado. Em que pesem a sempre exemplar atuação de Lázaro Ramos e a revelação de Sophia Reis (a graciosa filha que nem parece o pai, Nando), a fita repete os truques de O homem que copiava (2003), penúltima realização de Furtado. Mais uma vez, encontramos o apoio forte na animação e nos recursos de computador; mais uma vez, trombamos com o narrador-personagem, quase onisciente, onipotente, onipresente; e, mais uma vez, a mocinha com final feliz, a intriga policial light, o assistente desastrado e desajeitado. Um crime, uma musa, uma reviravolta. Nada de novo sob o sol... Talvez a insistência em termos de idéias originais (leia-se, também, roteiros e histórias originais) esconda uma certa implicância nossa com o atual primado da forma. Tudo bem, não precisamos reinventar a roda (e revolucionar) e cada obra – mas será que a reciclagem é etica e artisticamente aceitável, considerando-se uma audiência majoritariamente desatenta e desinformada?
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Meu tio matou um cara | Jorge Furtado em Época |
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Julio Daio Borges
Editor |
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