Quarta-feira,
20/4/2005
Digestivo nº 223
Julio
Daio Borges
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CARTA AO AMIGO AUSENTE
2004 foi, de certa forma, o ano Hélio Pellegrino. No ano em que completaria 80 anos, o psicanalista mineiro, membro da trupe mais badalada da nossa literatura em Minas Gerais, recebeu duas grandes homenagens. Uma foi a caixa, largamente comentada por Ignácio de Loyola Brandão, mas pouco encontrável nas livrarias, lançada pela editora Bem-te-vi. A outra foi a coletânea de escritos de Hélio ao longo do tempo, organizada por sua neta e, de alguma maneira, herdeira literária, Antonia Pellegrino. Antonia, que é também escritora, integra a geração internet e prepara um romance, enfurnou-se nos arquivos do avô, em jornais, revistas e materiais de época, para encontrar esse homem que se recusou tenazmente a publicar. No volume, Lucidez Embriagada, com bela capa de Joca Reiners Terron, pela editora Planeta, há, inclusive, uma entrevista de Hélio a Clarice Lispector, em que ela, incisivamente, pergunta de sua recusa em publicar. Pellegrino sai pela tangente e confessa manter esse pudor, de virar livro, pelo simples prazer de cultivar, intimamente, uma possibilidade inexplorada em sua vida: a de, justamente, virar escritor. (Como uma reserva de tempo extra, a que poderia recorrer a qualquer momento...) Ao contrário de seus amigos, poetas, cronistas e romancistas devidamente publicados: Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos. Eles estão, obviamente, presentes ao longo das páginas. E algumas das mais comoventes, e valiosas, passagens se referem a essa ligação de décadas. A amizade evolui texto a texto, carta a carta, bilhete a bilhete, foto a foto. Nas palavras de Hélio Pellegrino. Hélio também aparece apaixonado, envolvido em causas políticas e até psicanalíticas, ao lado de, por exemplo, Eduardo Mascarenhas. Afinal, fora a faceta íntima, lírica, havia, igualmente, a perene preocupação com o outro (palavra muito presente, que ele gostava de grafar com letra maiúscula). Embora ao final da leitura, os pruridos de Hélio Pellegrino, de não estar entre capas, talvez se revelem justificados, é a Antonia Pellegrino que devemos esse resgate. Numa investigação atrás de suas origens de escritora, ela enriqueceu seu trabalho e a perspectiva de todos nós.
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Lucidez Embriagada - Antonia Pellegrino (org.) - 200 págs. - Planeta | Carta ao pai morto |
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LAMENTO NO MORRO
Pode até ser lugar-comum, mas muita gente ainda não sabe que a bossa-nova se caracterizou por aquele cantar econômico, por uma poesia lírica mas contida, por um acompanhamento rítmico e minimalista. Vinicius de Moraes, que se derramou na vida, foi um grande letrista para João Gilberto e Tom Jobim porque, apesar dos diminutivos excessivos, captou o espírito da alegria dos 50/60 e a quase imposição modernista do mot juste. De “Chega de Saudade” até “Garota de Ipanema”, principalmente quando interpretadas pelo baiano de Juazeiro, a impressão é a de que não falta nada e, mais do que isso, de que não sobra nada. E todo mundo sabe que Caetano Veloso foi um dos maiores discípulos de João Gilberto, mormente no que concerne ao canto. E que Gal Costa foi considerada, no princípio, um João Gilberto de saias. Agora, tomando tudo isso, o que não dá pra entender, no conjunto, é a recente homenagem de Maria Bethânia a Vinicius de Moraes. Bethânia, que vinha acertando sucessivamente, muito mais do que seus colegas baianos, de repente se descuidou e embarcou num repertório que não tem mais (se é que um dia teve) a sua cara: as canções do Poetinha do Itamaraty. Bethânia, claro, ao contrário de Nara Leão, nunca foi uma intérprete clássica de bossa-nova; e Bethânia, claro, tem toda a liberdade para recriar esse cancioneiro à sua moda. Acontece que se a sua releitura não for genial, por ser Bethânia a dona de um vozeirão, de poderosos gestos cênicos e de grandiloqüência orquestral, dificilmente vai se adaptar aos preceitos do legado de Vinicius & Tom. Toda essa teoria se confirma no álbum Que falta você me faz, pela Biscoito Fino. Onde deveria haver um banquinho e um violão, há um maestro e um manto de cordas (“Minha namorada”); onde deveria haver a pronúncia seca, mínima, inaudita, há o eco, a extensão, o vibrato (“A felicidade”); onde deveria haver a celebração da existência, a festa, a cantoria, há a tensão, o baixo astral, o drama fácil (“Eu não existo sem você”). A gente sabe, óbvio, que Bethânia excursionou com o mestre e que não é, justamente, marinheira de primeira viagem; e igualmente sabe que ela sempre se deu muito bem com Fernando Pessoa (modernista de primeira água). Ocorre, infelizmente, que o resultado final desse CD, computados alguns bons momentos, não é digo nem dela, nem dele, nem da MPB. Bethânia não merece ser apedrejada – porque hoje é quase impossível revisitar Vinicius e não soar banal –, mas, ao mesmo tempo, tem de admitir que, dessa vez, errou.
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Que falta você me faz - Maria Bethânia - Biscoito Fino |
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EU SEI O QUE VOCÊ COMEU NO VERÃO PASSADO
Parece impossível que alguém consiga produzir uma revista masculina legível, mas a editora Escala conseguiu, com a sua Romano. Ao menos no primeiro número (esperamos que continue). Como o próprio nome já diz, a editora trabalha com escala, então tascou David Beckham na capa, o metrossexual por excelência – um dos homens contemporâneos que, aliás, inspiraram o enigmático termo. Beckham, apesar de jogador de futebol (ou talvez por isso mesmo), está para o mundo, ou para a Europa, ou para a Inglaterra mais especificamente, assim como Gisele Bündchen está para o Brasil: é célebre, integra o grupo do beautiful people (mesmo) e – concomitantemente – é milionário, é referência e é cool. Óbvio que, com tantas funções, na mídia, acaba que tem sua imagem desgastada. Como Gisele. No Brasil, no entanto, Beckham é pouco ou mal conhecido, por quem não entende nada de futebol (talvez porque, desde a ressaca de ídolos latinos bregas, os ídolos internacionais não emplacam mais no Brasil – ao menos, não com a mesma força dos ídolos da própria indústria tupiniquim). Enfim, a Romano foge ao estilo Caras de abordar personalidades e produz uma matéria adulta sobre o semideus Beckham. Essa abordagem não tão evidente de temas até convencionais permeia, felizmente, as demais páginas: o psicólogo Ailton Amélio da Silva fala de – claro – sexo; a repórter Ana Holanda escreve sobre saúde; o repórter Fernando Inocente pesquisa sobre cervejas especiais e seus refinados sabores, etc. E assim vai: gastronomia, mulher, compras, tecnologia, dicas de cultura... A receita, bastante conhecida no meio para quem visa as bancas, não pode falhar. Traduzindo: não há muito o que inventar. Se a Romano não fosse mais inteligente, ao falar dessas mesmas coisas, seria apenas uma revista a mais no bolo. Afinal de contas, a sofisticação plástica – em termos de projeto gráfico – já virou commodity, e os assuntos, de tão abordados, só podem oferecer vantagem se forem explorados com maior profundidade. A sua permanência, inevitavelmente, depende da resposta do público. Se ficar provado que existe uma fatia menos viciada ao velho formato (burro), a Romano prossegue. Caso contrário, seguimos condenados à abordagem medíocre para executivos, empresários wannabes e similares.
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Romano |
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Julio Daio Borges
Editor |
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