Sexta-feira,
3/6/2005
Digestivo nº 229
Julio
Daio Borges
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QUE SEJA ETERNO ENQUANTO DURE
O maior problema do legado ou, mais precisamente, do espólio de um escritor é conservá-lo. Atualmente é, por exemplo, conhecida a situação, dramática, da Biblioteca Mário de Andrade, que começou, naturalmente, a partir das obras do nosso modernista maior. Recentemente, também, louvou-se a decisão da Casa das Rosas de abrigar os milhares de volumes de Haroldo de Campos, o poeta concretista – mas não são todos os escritores que têm essa sorte. Talvez para mitigar esse sofrimento, de fotos, de cartas, de livros e materiais esparsos, que podem perecer rapidamente na falta de cuidados (como se disse, outro dia, aliás, do baú de Adoniran Barbosa, esse letrista do bairro do Bixiga), a editora Bem-te-vi teve a feliz idéia dos Arquivinhos. São delicadas caixas, pastas ou envelopes contendo versões fac-similares dos guardados de nossos escritores tão queridos. São mergulhos emocionantes na intimidade desses homens que tiveram um relacionamento, quase sempre áspero, com a palavra, e que passaram pela vida deixando registros e rastros os mais variados. Os Arquivinhos estão, geralmente, relacionados a efemérides e, em 2003, a Bem-te-vi soltou um de Vinicius de Moraes (por conta dos seus 90 anos) e, em 2004, outro de Hélio Pellegrino (por conta dos seus 80). No de Vinicius estão os clássicos retratos com Tom, mais o Poetinha em todas as suas fases, desde o quadro de Portinari até o último casamento com Gilda Mattoso, passando pelo manuscrito do “Soneto de Separação”, pelo poema “A Rosa de Hiroxima”, mais bilhetes de seus colegas Drummond, Bandeira e João Cabral, mais uma infinidade de pequenos e ricos detalhes. No de Hélio, como não poderia deixar de ser, o encontro sempre doce com os mineiros do coração (Fernando, Otto e Paulo), a relação com Amílcar de Castro, mais uma maravilhosa minibiografia de Paulo Roberto Pires, mais uma cronologia apurada de sua neta Antonia, mais outros mimos e preciosidades. Já era conhecida a ligação da Bem-te-vi com os nossos mestres da palavra escrita, por meio da edição, em outros anos, de fundamentais volumes de cartas, mas agora, com os Arquivinhos, a editora ocupa uma posição de destaque na memória e pela memória dos nossos autores principais.
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Arquivinhos: Hélio Pellegrino (extratos) | Vinicius de Moares (extratos) - Bem-te-vi |
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BALADA
Em um capítulo do Doutor Fausto de Thomas Mann, há a transcrição de uma palestra inteira sobre uma única sonata de Beethoven. Reza a lenda que Mann, tendo recebido uma visita de Theodor Adorno na noite anterior – onde, além de discutir sobre música, trocaram impressões sobre Schoenberg ao piano –, amanheceu no dia seguinte e despejou tudo no referido capítulo da sua obra sobre o compositor fictício Adrian Leverkühn. Quem nos contou essa história, ao vivo, foi o crítico João Marcos Coelho, um dos últimos baluartes da música erudita no Brasil, quando detalhava seu programa no CPFL Cultural. Alguns jornalistas, quando ouviram, fizeram careta – pois acharam que nunca iria entrar, em sua matéria, esse tipo de informação. Quando, inclusive, perguntado sobre os futuros caminhos da música contemporânea, João Marcos Coelho foi taxativo e não viu outra alternativa que não o atonalismo (mais bocejos da platéia...). De novo. Para quem quer tomar contato com as dissonâncias às quais aparentemente estamos condenados (embora haja dissidências), deve ouvir os dois álbuns da pianista Gilda Oswaldo Cruz, que vive entre Lisboa e Barcelona, pela Biscoito Fino, sobre o compositor brasileiro (mais especificamente, sobre o piano de) Claudio Santoro. (Não, nada a ver com aquele ator da Globo.) Santoro viveu entre 1919 e 1989, deixou mais de 400 composições, entre peças as mais variadas, inclusive óperas, sinfonias, etc. Transitou entre o nacionalismo e o dodecafonismo, e ainda que esses sejam termos difíceis para a maioria das pessoas, nada pode soar mais difícil do que a primeira (segunda, terceira, quarta...) audição desses dois CDs (um de 2001 e outro de 2004). A imagem mais próxima é a de um gato solto em cima do piano, pisando em teclas aleatórias e saltando com diferentes intensidades. Brincadeiras à parte, os climas são geralmente densos e soturnos – não absorvíveis numa primeira instância, o que o marxista Adorno considerou uma “resposta” ao mundo burguês, à pobreza, à feiúra, essas coisas. Para quem só acha que vai sofrer arduamente, há o alívio de alguns instantes de inteligibilidade. No mais, fica o gosto mais de uma incursão arqueológica do que de um prazer estético propriamente dito (como o da música tonal). Afinal, para além do gosto, trata-se de um registro histórico, antes de qualquer coisa.
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Gilda Oswaldo Cruz |
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O ENCOBERTO
A poesia é um gênero considerado, hoje, difícil para a maioria das pessoas. Em algum ponto da vida contemporânea, perdeu-se o ritmo e quase ninguém consegue ler poemas mais. Uma das tentativas de aproximar os potenciais leitores novamente da poesia é transformá-la em música – com intérpretes, por exemplo, da constelação da MPB. Foi o que fez André Luiz Oliveira, que musicou versos de Fernando Pessoa, e que, no segundo volume do CD Mensagem, reuniu vozes as mais notáveis. Apesar de muitos veteranos, os melhores momentos ficaram por conta de gente nova, ou mesmo desconhecida do grande público, como Monica Salmaso (numa interpretação respeitosa em “D. Afonso Henriques”), Paula Rasec (num arranjo econômico para “‘Nun’ Alvares Pereira”) e Zeca Baleiro (trabalhando bem a rouquidão e a extensão das sílabas em “Ulisses”). Já Cida Moreira exagera no vibrato e na dissonância; Gilberto Gil só consegue soar burocrático e protocolar (como em tudo o que atualmente faz); Elba Ramalho está perdida em uma floresta de violinos e grita mais do que seria recomendável; Edson Cordeiro não deveria ter voltado do esquecimento, “eletro-operístico”, onde havia se enfiado; e Daniela Mercury, depois de tantas transformações malsucedidas e camaleônicas, perdeu completamente a identidade (se é que um dia teve alguma). O erro, na maioria dos casos, é carregar demais na interpretação e converter Pessoa em arte dramática. Se o houvessem realmente lido, em livro, saberiam que seu estilo não combina com os excessos e os floreios de voz empostada, muito menos com qualquer sotaque, e menos ainda com a entonação chorosa do fado. As melodias é provável que estejam corretas (difícil avaliar): aliás, não deve ter sido fácil transpor o “silêncio” dos versos brancos e livres por definição. De qualquer modo, não há sentido maior que não seja o de incitar à leitura. Afinal o poeta que ambiciona apenas virar música (como o escritor que ambiciona virar roteiro de filme ou seriado de televisão) entendeu muito pouco, ou quase nada, da sua profissão.
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Mensagem (ouça as faixas) - André Luiz Oliveira |
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>>> E O CONSELHEIRO CONTINUA POLEMIZANDO NA INTERNET
Jornalismo digital, jornalismo on-line, webjornalismo? Que raios, afinal, fazemos nós que disponibilizamos – ah, ironia... – informações jornalísticas na Internet? Que práticas são essas que encontramos no espaço-informação que tanto confundem a cabeça de quem lida com material informativo? Vocês podem não dar a menor trela para isso, mas está rolando um puta bafafá sobre questões como essas na – aham – Internet brasileira. Julio Daio Borges, editor do Digestivo Cultural, considera que o jornalismo como o conhecíamos morreu, que não há mais lugar para o jornalismo grife dos jornalões, que manter essa idéia e formato é seguir receita falha. Pedro Doria, leitura obrigatória para os urgentistas que ainda restam, cutuca a falta de uma prática jornalística habitual nos blogs brazucas. Mas, apesar de serem espetadas válidas, os artigos são inconclusivos – talvez seja aquela velha história de estimular uma discussão...
Jorge Rocha, em "Jornalismo o quê?".
>>> E O CONSELHEIRO TAMBÉM PUBLICA NO RASCUNHO
No edição nº 61 do Rascunho, confira "Um Churchill ainda sem sangue, suor e lágrimas", texto inédito de Julio Daio Borges.
>>> EVENTOS QUE O DIGESTIVO RECOMENDA
>>> Cafés Filosóficos
* É possível conciliar ética e moral? - Sébastien Charles
(Seg., 6/6, 19h30, CN)
* Princípio Antrópico: O Universo e o Homem - Oscar Toshiaki Matsuura
(Ter., 7/6, 19hs., CN)
* Os junhos que separam as Copas do Mundo - Martín Kohan
(Qua., 8/6, 19h30, CN)
* As novas formas do sentir - Mario Perniola
(Qui., 9/6, 19h30, CN)
>>> Palestras
* Grávida em boa forma - Angélica Banhara
(Qua., 8/6, 19h30, VL)
* Vencendo em serviços - Waldemar Schimdt
(Qui., 9/6, 19hs., VL)
>>> Noites de Autógrafos
* A Política Externa Brasileira na Visão de seus Protagonistas - Henrique Altemani de Oliveira e José Augusto Guilhon Albuquerque (orgs.)
(Seg., 6/6, 18h30, CN)
* Redes entre organizações - João Amato Neto
(Ter., 7/6, 19hs., VL)
* Duas Vezes Junho - Martín Kohan
(Qua., 8/6, 19h30, CN)
* Investigação Sobre Ariel - Silvio Fiorani
(Qua., 1º/6, 18h30, CN)
* O Sex Appeal do Inorgânico - Mario Perniola
(Qui., 9/6, 19h30, CN)
>>> Shows
* The Swing Era - Traditional Jazz Band
(Sex., 10/6, 20hs., VL)
* Espaço Aberto - Chico Saraiva
(Dom., 12/6, 18hs., VL)
* Livraria Cultura Shopping Villa-Lobos (VL): Av. Nações Unidas, nº 4777
** Livraria Cultura Conjunto Nacional (CN): Av. Paulista, nº 2073
*** a Livraria Cultura é parceira do Digestivo Cultural
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Julio Daio Borges
Editor |
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