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Sexta-feira, 29/8/2008
Digestivo nº 379

Julio Daio Borges

>>> DOCES CARIOCAS Com a implosão das gravadoras, aconteceu, também, a implosão das grandes individualidades na música. Começou com as majors rompendo contratos com quem não fosse grande vendedor de discos — Chico Buarque, por exemplo, foi descartado e migrou para (antes) pequenos selos, como a Biscoito Fino. Maria Bethânia, idem. E, de repente, os caciques da MPB estavam abrindo mão da, outrora, "indústria". E quanto aos jovens? Se até os veteranos, de repente, ficaram sem lugar, a nova geração resolveu se aglutinar, como no início, em grupos, conjuntos, ou — para usar uma palavra da moda — "coletivos". Desde bobagens infantis como Os Tribalistas até projetos de renovação do samba, como a Orquestra Imperial, no Rio, não faltou inspiração para esse novo "aglutinado" que agora surge, os Doces Cariocas. Evocando os Doces Bárbaros desde o nome e reafirmando, no release, a herança do Clube da Esquina e até dos Novos Baianos, a turma de Alexia Bomtempo e Pierre Aderne gravou um dos melhores discos de 2008. Com influências desde Beatles até Luiz Gonzaga (juntos em "Blackbird e Asa Branca"), Bomtempo e Aderne contaram com o reforço de outros "jovens" talentos como Domenico Lancelloti (na melhor faixa, a radiofônica "Valsa do Vestido", com Silvia Machete), Wilson Simoninha (reabilitado depois da derrocada na Trama, em "Feito a mão", com Marcelo Costa Santos e o mesmo Pierre), entre outros. Inclusive o lendário Dadi — direto de Acabou Chorare, com passagens até pelo Barão Vermelho — veio emprestar seu baixo de coringa, nesta reunião com pretensões históricas (o que, talvez, se consiga). Afinal, quem presta atenção à enxurrada de independentes em CD, na música brasileira contemporânea, sabe o quão difícil é atravessar um álbum inteiro, do início ao fim, encontrando alguma identidade, algum traço de projeto, algum sinal de futuro. Ainda que os Doces Cariocas seja "mais uma" volta aos anos 60 e 70, e ainda que a influência de Marisa Monte seja excessiva nas cantoras, sua estréia homônima revela um mar de possibilidades para a nossa combalida MPB.
>>> Doces Cariocas
 
>>> IMPÉRIO DOS SONHOS, DE DAVID LYNCH Enquanto João Gilberto — que já apresentava sinais de senilidade musical — reduziu-se ao estado do tatibitate, por causa do nível intelectual de seu último relacionamento (vide Mônica Bergamo, na "Ilustrada" de domingo), David Lynch continua à solta, enganando boas almas, e aplicando peças em críticos inseguros, com seus delírios fílmicos. O último atende pelo nome de Império dos Sonhos, recentemente em DVD (lançado originalmente em 2006), o primeiro "sem roteiro" da carreira do cineasta. Quando perguntado sobre seu magnum opus, o próprio sumarizou: "É a respeito de uma mulher com problemas; é também um 'filme de mistério' — isso é tudo o que eu tenho a dizer". Já os atores principais foram um pouco mais honestos na première: Laura Dern admitiu que não sabia do que se tratava Império dos Sonhos, nem mesmo definiu qual era seu papel no longa, esperando "aprender mais" a cada nova sessão; enquanto Justin Theroux entregou o ouro, revelando sua incapacidade de explicar o filme, e apostando, ainda, que nem o próprio Lynch era capaz disso. Sem nenhum tipo de "plot" — como se diz em inglês —, o diretor entregava, diariamente, calhamaços de novos diálogos aos atores. Nem com as presenças de Jeremy Irons, Nastassja Kinski e até do músico Ben Harper e da voz de Naomi Watts foi possível salvar Império dos Sonhos. Conforme apontou um crítico de Los Angeles, "se começa promissor", o filme "logo se desvanece" e, "com sorte", "se perde"... "para nunca mais". Com ironia, a mesma Dern, musa de Lynch, respondeu a um dos produtores, durante as filmagens (quando o diretor lhe solicitou "uma mulher de uma perna só" e "um macaco", "para as três da tarde"): "Você está numa produção de David Lynch, meu caro: 'Relax and enjoy'" (o que deve ter inspirado nossa então Ministra do Turismo). Como não conseguiu, obviamente, distribuir direito sua obra magna nas salas de cinema, Lynch tentou distribuir, de forma independente, o DVD (com "extras"). Ainda que Império dos Sonhos tenha, infelizmente, chegado até nós, David Lynch realizou-o totalmente em digital, e prometeu nunca mais usar película em suas filmagens. A Sony, seguindo o bom exemplo do Studio Canal, bem que poderia deixar de patrociná-lo.
>>> Império dos Sonhos
 
>>> A PROMESSA DA POLÍTICA, DE HANNAH ARENDT Lamentavelmente aprendemos sobre política lendo os jornais e vendo os telejornais, e não poderia haver pior iniciação. A mídia, espetaculosa como sempre, não dá nenhuma formação política, fica, ao contrário, seguindo as agendas, os interesses e, no Brasil, os escândalos dos políticos. Política — espera-se — deveria ser algo mais que o PT, mais que o funcionalismo público, mais que as Comissões Parlamentares de Inquérito. Mais que as nossas eleições, mais que os "debates" televisivos, mais que o Horário Eleitoral Gratuito. Quem não agüenta mais ler os primeiros cadernos das nossas gazetas, ouvir os comentaristas repetitivos de todos os dias e assistir aos âncoras feito marionetes eletrônicos, um alívio é "dialogar" com Hannah Arendt, através de A Promessa Política — conforme está escrito: a ponte entre duas de suas obras-primas, Origens do Totalitarismo e A Condição Humana. Enquanto nossos representantes não sabem nem falar direito a própria língua, Arendt resgata Sócrates e Platão até Marx, até o famigerado século XX, num percurso desde os ideais mais altos da história da humanidade até às realizações rastejantes de nossos pseudo-representantes. Trocamos o convívio de sindicalistas, ONGs e "politicamente corretos" em geral por espíritos como Martin Heidegger e Karl Jaspers, interlocutores constantes de Hannah Arendt, quando não diretamente presentes, sugeridos nas entrelinhas. Fora que a introdução de Jerome Kohn já vale o livro (e, inclusive, compensa aquela espiadela na livraria, na dúvida entre levar e deixar o volume). Se as nossas faculdades não tivessem se convertido num novo ninho de "líderes" espetaculosos, com programas políticos bem definidos, poderíamos aconselhar a formação universitária — mas Hannah Arendt está hoje menos lá do que em A Promessa da Política. Entre pegar interpretações de segunda mão, mestres mais interessados na retórica do MST e estudantes querendo "viajar" mais que estudar, esta coleção de ensaios e textos pode valer por anos perdidos entre jornais vetustos, subservientes radialistas e telejornalismo apenas oficioso. Eis, uma rara promessa — política — cumprida.
>>> A Promessa da Política
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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