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Quarta-feira, 5/9/2001
Digestivo nº 48

Julio Daio Borges

>>> REALITY SHOWS Depois do seqüestro de pai e filha, a imprensa tem se dividido entre aquela que comanda o show e aquela que se insurge em alarmismo (com propriedade, diga-se). O primeiro ato (a captura e o retorno da filha pródiga) mereceu uma cobertura bem ao estilo "triunfal": a heroína vence os bandidos - após converter-los - mostrando-lhes a face inconfundível de Deus (santa blasfêmia). O enredo se releva tão convincente que até o pai da vítima acredita que a família está "acima do bem e do mal", permitindo que o criminoso retorne ao local do crime (regra que, dessa vez, não tardou, nem falhou). O segundo ato (a reclusão e a soltura do pai pelo Estado) mereceu uma cobertura em tons de "tragédia": o septuagenário de um bilhão de dólares fica à mercê de um jovem celerado, condenado à morte e sem nenhum tostão. O "thriller" provoca tamanho frisson que, encerrada a negociação, inaugura-se novo ponto turístico na cidade de São Paulo (todos querem ver o cenário onde se instalou o suspense). Na contramão dessa gente que quer converter tudo em aventura e "seriado" (ou então em Globo Repórter), surge uma facção que, bem ao estilo do "abre o olho", proclama que o Brasil se transformou na mais nova Faixa de Gaza, em que se mata grosseiramente mais de um Vietnã (40 mil) por ano. Pai e filha, se sensatos forem, vão abandonar o faroeste (também a Semana do Presidente, o Geraldo, a Suplicy e o Suplicy - que, na primeira oportunidade humanitária, vai dormir no Carandiru com o Dutra Pinto). Tirando quem vive do espetáculo e quem aproveita para difamar o Governo Constituído (qual seja), será que alguém ainda se preocupa em olhar o Brasil em perspectiva (500 anos para frente e 500 anos para trás) antes que a guerra civil seja declarada e que prevaleça a indústria do crime? É uma pergunta sem resposta. Por enquanto, desvia-se da bala perdida e lamenta-se a violência praticada contra o vizinho. Mas, do jeito que a onda vai, um dia eles chegam. Ah, se chegam.
>>> Carta Capital
 
>>> O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE) Hum é o nome do simpático guia gastronômico de Rubens Filho. O primeiro "prato-a-prato da cidade", segundo seu autor. Ao contrário das consagradas edições de Veja e Quatro Rodas, ele pretende varrer as especialidades de São Paulo, apontando os melhores estabelecimentos para desfrutá-las. Divide basicamente o território em sete categorias: aperitivos, bebidas, doces, pães, pratos, sanduíches e bizarrices. Não tem fotos ou ilustrações rebuscadas, mas vai direto ao ponto. É quase um livro de bolso, o mais recomendado para se carregar no "porta-luvas" do carro. Como o realizador não é um gastrônomo profissional (ou pelo menos, não o era até a publicação), torna-se interessante um confronto entre as suas preferências e a do leitor que gosta de se aventurar no tema. Depois de percorridas as pouco mais de 100 páginas do Hum, chega-se a um ranking de preferências que, grosso modo, pode ser apresentado assim: Rubaiyat (como o melhor em carnes e feijoadas); Castelões e Speranza (como os melhores em pizza); Bar do Léo (como o melhor chopp e tira-gosto); Jardim de Napoli e Buttina (como os reis da massa); La Douce France (como o melhor doce); Ritz, Fifties e New Dog (como o melhor sanduíche). Rubens Filho é detalhista e suas descrições, embora sucintas e carregadas de exclamações, deixam qualquer um com água na boca. Outro de seus méritos é o de procurar espalhar suas dicas pelas zonas norte, sul, leste e oeste da capital, desviando (quando possível) do eixo Centro-Jardins-Itaim-Moema. Por R$ 12, tem-se diversão garantida por alguns meses: desde o acarajé até a lingüiça frita no álcool; desde a manjubinha até a saltenha; desde o ataif até o panini; desde o pastel de Santa Clara até o sanduíche de pernil; desde o baião-de-dois até o camarão empanado. Uma extensão da empreitada na internet (www.guiahum.com.br) pretende completar o que ficou faltando.
>>> "Guia Hum" - Rubens Filho - Editora DBA
 
>>> CROFT & KIDMAN Quando as lojas de disco ameaçam repetir-se em nomes e compact discs, a saída é refugiar-se na seção "trilhas". Existe todo um universo inexplorado de música feita para o cinema. Nos Estados Unidos, ele subsiste paralelamente ao "mercado", e às vezes até "alavanca" carreiras de artistas esquecidos. No Brasil, poucos têm o hábito de levar esse gênero a sério (dadas, possivelmente, as coletâneas para televisão, que nada acrescentaram ao panorama musical tupiniquim). Enfim. Se algum dia, o Pop, a MPB, o Jazz e o Clássico (os quatro reinos em que se dividem as discotecas) apresentarem, mais uma vez, aquelas velhas estantes, vale à pena correr para os compositores que adornam a Sétima Arte. No âmbito da moderna música eletrônica, por exemplo, tem-se agora os hits que ilustram as peripécias de Lara Croft, a "Tomb Raider". O disco abre com U2, numa versão mais viril de "Elevation" (com todas as guitarras que faltaram em All that you can leave behind). Segue com os nomes que são vanguarda nas pistas: Chemical Brothers, Fatboy Slim, Outkast, Moby, Delerium e Fluke (dentre outros). Gente que têm menos de 15 minutos de fama e que explode como uma supernova nas "paradas". (Não é aconselhável para quem está, esteticamente, muito longe das batidas e dos refrões minimalistas.) Outra possibilidade, talvez, é embarcar nos sussurros de Nicole Kidman, que estreou há pouco mais de uma semana com "Moulin Rouge". Quem, dessa vez, faz as honras da casa é David Bowie, numa de suas performances "míticas", bem ao estilo de Labirinto (1996). O clima segue entre o "musical" e os efeitos especiais, com "cantantes" da mais nova safra latina dos EUA. Um acento "brega" às vezes salta nas baladas e recriações, como Your Song e Elephant Love Medley (em que Kidman divide os vocais com um "cover" descarado de Freddie Mercury). O resultado final é aquela ingenuidade dos contos-de-fada, que aliena e conforta, feito Walt Disney. Avalizam ainda, o álbum, José Feliciano e Beck. Mas quem conclui é Bowie. We can be heroes. Just for one day.
>>> Moulin Rouge
 
>>> TOGETHER FOREVER Tillsammans é o título de um filme sueco que está em cartaz na cidade desde 27 de julho. A chance de vê-lo é a mesma que se tem de ficar preso no trânsito (num dia chuvoso), quando o rodízio municipal se reinicia às 17 horas retendo a vítima até às 20 em plena Rua Augusta (que algum dia rimou com "120 por hora"). Lukas Moodyson é uma espécie de diretor prodígio, informa Luiz Carlos Merten (o maior crítico de cinema da atualidade militando na imprensa diária). Precoce, publicou poemas aos 17 anos e, com menos de 32, já realizou três produções cinematográficas, incluindo Tillsammans (cuja tradução para o inglês ficou em "Together", e cuja tradução para o português ficou em "Bem-vindos"). Apesar da fedelhice, o filme é razoável e, pelo produto final, ninguém vai dizer que foi feito por um principiante. O tema é gasto: a contracultura dos anos 70. A primeira meia hora, portanto, cansa, pois ameaça levar a sério justamente essa bobagem consagrada de "querer andar na contramão" (ou de "ser do contra", como se diz). No fim, porém, Moodyson prova (através da história) que tudo não passa de mais um modismo, e que a alegria suprema está jogar futebol ouvindo ABBA (ironicamente a faixa escolhida é "S.O.S."). Ou seja: o "proletariado", por mais "intelectualizado" que tente se mostrar, gosta mesmo é de pão e circo. Afinal, o que uma pessoa que se contenta com a profissão de encanador (ou de soldador) pode ambicionar? Os anseios das gerações de 1960 e de 1970, que queriam mudar o mundo para melhor (já que "para pior" é fácil), só podiam terminar em piada. Em piada engraçada. É sintomático: em algum momento na fita, as crianças olham para os pais cabeludos, barbudos, e comentam: "os adultos são mesmo uns idiotas". (Moodyson estava, obviamente, entre esses sagazes menininhos e menininhas.) Se a intenção é rir da "revolução", do "feminismo" e da "exploração do homem pelo homem", Bem-vindos surge como programa ideal. (Em tempo: a ideologia deles, embora derrotada na prática, venceu a guerra. Por isso, o século XXI não escapa de ser também motivo de chacota.)
>>> O Estado de S. Paulo
 
>>> MILESTONES O Ano Miles Davis chegou agora na revista Bravo, e dá-lhe páginas com adjetivos e imagens de fazer o queixo cair. A publicação, que há quatro anos prometia uma saída para a Imprensa Cultural, acabou se especializando em embalagem (imbatível) e em insossos textos. Mais uma vez a capa sugere um ensaio revelador, mas oferece (na prática) um artigo que chove no molhado, talvez porque o público peça por obviedades. Como todo mundo sabe, existem dois Miles Davis: um, mais conhecido, que atravessou a fronteira do jazz e foi parar no pop; outro, que arrastou a música negra norte-americana do bebop ao fusion, passando pelo cool. Para o público, os dois não se cruzam, porque quem aprecia sua fase jazz não suporta sua fase pop - e vice-versa. É sempre precipitado julgar um artista desse tamanho, mas Howard Mandel (o pai da matéria na Bravo) deixa subentendido que Miles teria se impressionado com as cores e as figuras do rock e seus sucedâneos. Seguindo esse raciocínio: pareceu-lhe irresistível a possibilidade de converter-se em ícone, o que resultou no "tímido espalhafatoso" dos últimos anos - um mudo embrulhado em papel alumínio. O resumo da ópera são os álbuns da era "hardbop" (Cookin', Workin', Relaxin' e Steamin'); a revolução contida em Birth of the Cool; os caminhos cruzados com John Coltrane (culminando em Kind of Blue); a fase orquestral com Gil Evans (Miles Ahead e a releitura de Porgy and Bess); e - para os jazzistas - a derradeira época dos Young Lions (de Miles In Antibes até E. S. P.). Já quem tem estômago para experimentações segue até Decoy e Tutu, passando por Bitches Brew (onde cada músico gravava sua parte sem entender patavina do contexto geral). Como sempre, a obra é muito maior do que a imagem do artífice forjada pela mídia. Miles Davis é muito mais complexo do que as fotografias e o garoto propaganda da Apple (think different). A solução é fechar o bico e ouvi-lo. Até a próxima efeméride.
>>> Bravo!
 
>>> MINHA PÁTRIA É MINHA LÍNGUA
"Agora mesmo, eu tô com a sensação de que tá caindo alguma coisa... Será que é a pressão?"
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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